A Igreja e a escravidão

Sergio Ricciuto Conte

Neste mês, o dia 13 de maio recordou-nos os 134 anos da abolição jurídica da escravidão no Brasil. Mais de um século nos separam desse acontecimento. Suas consequências, em alguns aspectos, no entanto, ainda hoje são sentidas, ora em episódios explícitos de racismo, ora em regimes de trabalho similares à servidão ou na negação de políticas públicas reparadoras de injustiças passadas. 

A relação entre Igreja e Escravidão, embora hoje seja uma postura clara e bastante definida, já foi complexa e, não raro, obtusa. Até meados do século XV a posição oficial da Igreja era de certa leniência e até cooperação com o processo escravocrata. Papas como Gregório I e Nicolau V, para citar exemplos, eram cônscios dos meandros da escravidão e em certa medida rechaçavam posturas abolicionistas ou libertárias de escravos. Com o Papa Eugênio IV, mormente na bula Sicut dudum, essa postura foi alterada. O Pontífice pedia explicitamente a restituição de liberdade aos escravos nas ilhas canárias. Na esteira desse papa, outros foram se manifestando e delineando a profunda aversão da Igreja ao processo escravocrata e reafirmando a defesa de liberdade de todos os povos, raças e culturas.

No caso do Brasil, desde os tempos coloniais, foi introduzido o processo de escravidão. Em certa medida, a Igreja colaborou nesse percurso. Há registros de que ordens e congregações religiosas possuíam escravos. Mesmo que se afirme que  recebessem um tratamento diferenciado, eram pessoas em situação de privação de liberdade e sujeitos à condição servil. No processo abolicionista, mesmo que no entardecer desse movimento, muitos bispos e padres apoiaram o fim da escravidão, dentre eles, Dom Lino Deodato Rodrigues de Carvalho, ordinário local, da época, da diocese de São Paulo. A carta In plurimis, de Leão XIII, dirigida ao episcopado brasileiro, fazia decisiva condenação da escravidão e pedia aos bispos que defendessem o fim dessa situação. Ela só foi conhecida no Brasil após a proclamação da libertação dos escravos, contudo foi a retificação da posição da Igreja acerca da situação de um dos últimos países a acabar com a escravidão.

Mais de um século após a abolição da escravidão, reminiscências da cultura escravocrata ainda são sentidas. Trabalhos análogos a escravidão e racismo estrutural  ainda não foram abolidos do nosso horizonte. Trata-se de um choque para a civilização ocidental, uma contradição insolúvel que ainda salta aos olhos nos nossos tempos. A Igreja, sem negar sua história e seu passado, na atualidade defende a liberdade de todos e condena, como fez recentemente o Papa Francisco na sua última encíclica chamada Fratelli tutti, o trabalho escravo (Ft 118,248) e, mais ainda, convida a humanidade a uma fraternidade universal e amizade social. Urge, pois, que esse discurso penetre agudamente até a mais profunda epiderme da estrutura eclesial.

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