A oração do ateu 

Orare, no latim, originalmente significa “pronunciar uma fórmula ritual, um pedido”. Dada a influência do latim na Igreja, enfatizou-se o sentido de suplicar a Deus, rezar. No grego, atheos significa “sem Deus, que nega e abandona os deuses”. Quem não crê em Deus ou em qualquer “ser superior” é ateu. De alguma forma, todos, incluindo os ateus, temos sempre ligação com a raiz do nosso ser, que nada mais é do que a ligação com o Criador. 

“Sou ateu, graças a Deus” é uma expressão do cineasta Luis Buñuel, criada para criticar a religiosidade. Uma espécie de questionamento da possibilidade do contato (re-ligar) com o Criador sem uma profissão de fé e fora do ambiente religioso. Uma provocação irônica, que nega e, ao mesmo tempo, coloca Deus em relevo. Nela, coexistem o esforço de negar e o imperativo impulso de aceitar, pela força da própria existência de Deus e da nossa relação intrínseca com o Criador. 

Na relação de amor, na busca da origem, ainda que apenas no intelecto, nos aproximamos do divino, e este é um modo de tocar o eterno, a raiz da nossa criação. Os poetas, escritores, artistas plásticos, muitas vezes revelam verdades profundas em suas obras, acerca de realidades que eles mesmos desconhecem. 

A arte pode expor a Deus até mesmo sem a consciência do autor. 

Oração é também silêncio e introspecção no nosso mundo barulhento e superficial, e assim propõe Gilberto Gil: “Se eu quiser falar com Deus/Tenho que ficar a sós/Tenho que apagar a luz/Tenho que calar a voz”. 

Ernst Bloch é outro que invoca concepções de ateísmo e religiosidade, como filósofo das utopias e esperanças, para provocar uma libertação do crente diante de certas correntes de formalidade, e afirma: “Só um ateu pode ser um bom cristão”. 

Na minha juventude, fiquei profundamente impressionado com a conversão de André Frossard (filho de um dos fundadores do Partido Comunista da França), a partir de um contato casual com a oração de piedosas senhoras, enquanto rezavam o Terço diante do Sacrário. Entrara naquela igreja apenas para mostrar a beleza do templo ao seu amigo arquiteto. Ateu até aquele momento, relata sua adesão à fé no livro: “Deus existe – eu O encontrei” (Editora Record, 1969). 

Nas várias circunstâncias da vida, diante das inúmeras possibilidades que podem emoldurar o nascimento de uma pessoa neste ou naquele ambiente cultural e religioso, sempre imaginei um Deus Amor, que salva justamente pelo amor que podemos colocar em nossas atitudes, muito mais do que pela formalidade delas. 

A inserção na Igreja, a partir da fé, é uma graça incomensurável, mas que pode, por variados motivos, não se dar da mesma maneira para todos. Mas o amor intrínseco de Deus que existe na natureza das pessoas, pois inerente ao Criador e parte das criaturas, este é universal. E o amor tudo pode. 

O Catecismo da Igreja Católica (No 1023) diz que “os que morrerem na graça e na amizade de Deus e estiverem perfeitamente purificados, viverão para sempre com Cristo”. Quem ama vive na amizade com Deus, pois pratica o mandamento maior: “Amar uns aos outros como Eu vos amei”. O amor purifica. Deus é o único que sabe os caminhos de cada um de nós. 

Como canta Renato Teixeira: 

“Me disseram, porém, que eu viesse aqui 
Pra pedir de romaria e prece 
Paz nos desaventos
Como eu não sei rezar, só queria mostrar 
Meu olhar, meu olhar, meu olhar”. 

Luiz Antonio Araujo Pierre, membro do Movimento dos Focolares. Professor e advogado. Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais. 

As opiniões expressas na seção “Opinião” são de responsabilidade do autor e não refletem, necessariamente, os posicionamentos editorais do jornal O SÃO PAULO.

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TEREZA MITSUE HORIBE
TEREZA MITSUE HORIBE
1 ano atrás

Podemos encontrar Deus em tantas circunstâncias que bastaria olhar ao redor e veríamos resplandecer um mundo melhor, mais justo, mais fraterno. Até um sorriso que brota do fundo coração, não custa nada e pode levar a paz tanto necessitamos!

Arthur Barros
Arthur Barros
4 meses atrás

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