A realidade sobre o aborto

Ganharam as manchetes, na semana que passou, as novas declarações do ex-presidente Lula sobre o aborto. No dia 5, em evento na Fundação Perseu Abramo, o presidenciável disse que o aborto “deveria ser transformado em uma questão de saúde pública e todo mundo ter direito [a ele] e não vergonha”. Dois dias depois, e diante da efervescência de manifestações contrárias, Lula apresentou su- postos fundamentos para sua posição: Mesmo eu sendo contra o aborto, ele existe (…). É apenas uma questão de bom senso. Ele existe, por mais que a lei proíba, por mais que a religião não goste. Ele existe e muitas mulheres são vítimas disso”, declarou em entrevista à rádio Jangadeiro BandNews, de Fortaleza (CE). Como o tema retornou, mais uma vez, aos holofotes, é bom recolocarmos as ideias no lugar, desfazendo os erros contidos no raciocínio do presidenciável.

Em primeiro lugar, é verdade que os cristãos são, por definição, contrários à legalização do aborto (ser “católico pelo direito de abortar” faz tanto sentido quanto ser “solteiro casado”, ou “corintiano que torce pela derrota do Corinthians”). No entanto, como já explicou o próprio Papa Francisco, esta “não é principalmente uma questão de de religião, mas de ética humana, antes mesmo de qualquer confissão religiosa” (resposta ao grupo pró-vida argentino Mujeres de las Villas; 26/11/2020). A causa pró-vida é um movimento que não se limita nem se fundamenta, estritamente, na doutrina católica: antes, reúne católicos, evangélicos, membros de outras confissões (espíritas, muçulmanos, judeus, hindus, budistas etc.), agnósticos e ateus.

Mas de que forma a “ética humana” nos leva a ser radicalmente contra o aborto? Não seria o caso, afinal, de que a ocorrência de abortos é uma realidade, independentemente de qual seja a postura da lei a seu respeito?

O problema, aqui, é que os abortistas costumam igualar uma situação de fato com o todo da realidade. A opressão do homem em campos de concentração, o trabalho escravo, o genocídio: tudo isso são, em diversos contextos históricos, situações de fato – e nem por isso devem ser normalizadas. A realidade, em todos esses casos, é que existe um ser mais profundo do homem, cujo desenvolvimento deveria ser protegido. “E a lei não existe para manter situações de fato, mas para (…) reconhecer a realidade autêntica do homem, exigindo que seja respeitada e favorecida. Ela não deve ratificar ‘situações de fato’, senão procurar modificá-las quando não protegem nem favorecem a realidade profunda do homem” (Juan Cruz Cruz, Derecho a nacer, p. 58-59).

De fato, as leis estatais não são meros “remédios técnicos” para cada situação sociológica, elas não são “neutras” com relação ao bem ou o mal da sociedade. Pelo contrário: a lei sempre tem não apenas o papel de corrigir os desvios e reprimir os abusos, mas também de ensinar sobre a vida reta, como mestra e pedagoga. Ora, mas se o primeiro direito do homem (o direito à vida inocente) fica violado, com qual autoridade serão resguardados os demais direitos? Como disse Santa Teresa de Calcutá ao receber o Prêmio Nobel da Paz, em 1994: Se aceitarmos que uma mãe possa matar o seu próprio filho, como podemos dizer aos outros que não se matem?”.

Se as leis que proíbem o assassinato de nascituros estão sendo violadas, a solução é torná-las mais eficazes – não tanto punindo as mães, mas sim as clínicas clandestinas, e, principalmente, atuando pela via preventiva, criando condições de suporte às gestantes em situação de vulnerabilidade (como aliás já fazem, pelo Brasil inteiro, dezenas de organizações civis pró-vida).

Neste ano de eleições, nós, católicos, precisamos deixar claro a todos os candidatos que qualquer proposta de facilitação do aborto é intrinsecamente má” e incompatível com a dignidade da pessoa; [e] não pode ser resgatada pela bondade de qualquer fim, intenção, consequência ou circunstância (Discurso do Papa Bento XVI aos Prelados da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, CNBB, em visita ad limina, 28/10/2010).

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Leila
Leila
1 ano atrás

Eu penso que se fossem punidos também os pais, o número de abortos diminuiria consideravelmente. É fácil para o homem engravidar uma mulher ou uma menina e não ter responsabilidade nenhuma sobre isso. Deixar pra uma pessoa em estado vulnerável tomar a decisão de ter um filho sozinha e passar pela vergonha de não poder, muitas vezes, dizer quem é o pai pois, muitas vezes, são homens casados, são abusadores, são estupradores. E nunca são punidos. Sequer são cobrados ou questionados. Quantas vezes são esses homens até, que obrigam essas mulheres a abortar e as levam pra essas clínicas clandestinas. E quem tem que ser punidas são as clínicas?! Que tal punir os homens?

Eloisa Marques Miguez
Eloisa Marques Miguez
1 ano atrás

Texto breve, mas excelente. Seria muito bom que estivesse num espaço como “tendências e debates” da Folha de São Paulo, que preza tanto uma colocação como a do presidenciável citado.