A usura em tempos de pandemia

Em tempos de dificuldade econômica e crise social, sempre vêm à tona práticas de cobranças excessivas e ilegítimas de juros, que acabam por explorar as mais básicas necessidades humanas e a agravar situações de fome e de miséria humana. Esse é o caso de prática de agiotagem verificada durante a pandemia.

A agiotagem costuma ser empregada em operações econômicas com ágio. Entre seus diversos significados, o ágio é entendido por ser ganho, lucro ou juros pelo uso ou pela disponibilidade da moeda no tempo. Trata-se da concessão da disponibilidade financeira daquele que tem a moeda de sobra para aquele que dela necessita. Nesse último sentido, vem vinculado à usura na medida em que se trate de algo exagerado, acima dos limites, contrário ao que se considera equitativo e aceitável em uma determinada sociedade. Os juros podem ser remuneratórios, valores cobrados pela remuneração do uso da moeda, caso dos juros cobrados junto a parcelas de um empréstimo, ou podem ser moratórios, cobrados pela verificação de um atraso no pagamento do valor devido.

Vamos focar nesta coluna na prática de cobrança de juros entre negociações entre pessoas comuns, sem considerar o tratamento e cobrança dos juros por instituições financeiras ou assemelhadas, permitida de maneira diversa e padrões superiores, por ser atividade principal dessas instituições, conforme legislação aplicável ao setor. A permissão sofre também suas limitações e é sempre revista e questionada pelos tribunais e pela própria Doutrina Social da Igreja (DSI), 341, quando aferida de forma abusiva. Procuraremos tratar desse assunto na próxima coluna.

É popular na literatura mundial a figura do agiota Shylock, o personagem caricato retratado por Shakespeare no seu livro O mercador de Veneza. Ao emprestar seu dinheiro, pede em garantia uma libra de carne de seu rival Antonio. Com o empréstimo do dinheiro, coloca em risco a própria vida do rival. 

Há muito a Igreja condena a agiotagem e a usura, colocando a prática da usura entre os pecados mais graves. A Doutrina Social da Igreja aceita o lucro, contanto que represente um uso adequado dos meios de produção e que seja voltado à equitativa satisfação das necessidades humanas (DSI, 340; carta encíclica Centesimus annus, 35). O lucro exacerbado e a cobrança exagerada de juros (usura) são considerados, no entanto, prática moralmente condenada e realidade vil capaz de aniquilar vidas humanas e provocar fome e miséria (DSI, 341).  A cobrança excessiva de juros é resultado de uma prática da atividade econômica contrária à Justiça e ao Bem Comum. 

A legislação brasileira – Código Civil e Decreto 22.626 (Lei da Usura) – não somente estabelece limites aos juros, mas também sanciona operações com cobranças excessivas de juros com nulidade. Essa legislação chega a enquadrar a usura como um delito sujeito à prisão, com pena agravada ao sujeito que se vale da inexperiência ou das circunstâncias de aflição do seu devedor. Protege a população contra práticas atentatórias à economia popular. 

Para estabelecer limites à usura, a legislação estabelece padrões do que é permitido e proibido, limitando ganhos e vantagens de um em relação ao outro e determinando que os juros não podem ser estipulados acima do dobro da taxa legal, ou seja, ou dobro da taxa SELIC, a taxa básica de juros da economia. Acima disso, estamos a tratar de juros usurários, não equitativos, ilegítimos e inaceitáveis. Nossa legislação segue, nessa linha, padrões de outras legislações de sistemas jurídicos romano-germânicos, de influência cristã em sua conformação. 

Muito se deparou, durante a pandemia, com a situação de falta de dinheiro para o atendimento de necessidades humanas básicas e da submissão a situações de agiotagem e usura entre pessoas comuns, práticas que continuam a ser condenadas por nossa sociedade e pela Igreja. Na próxima coluna, trataremos de juros aplicáveis a empréstimos bancários e dos limites acima dos quais sua cobrança pode ser considerada abusiva pelos tribunais.

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