As místicas do século XX

Arte: Sergio Ricciuto Conte

Há pouco mais de 20 anos, São João Paulo II, analisando os desafios deste nosso milênio, clamava-nos a ir para águas mais profundas, apontando-nos inclusive a grande tradição mística da Igreja e o grande patrimônio que é a “teologia vivida dos santos”. Assim escrevia: “Não será porventura um ‘sinal dos tempos’ que se verifique hoje, não obstante os vastos processos de secularização, uma generalizada exigência de espiritualidade, que em grande parte se exprime precisamente numa renovada carência de oração?” (Novo Millennio Ineunte, NMI, 33).

Não podia ser mais atual. Talvez a maior necessidade de nosso tempo – ouso dizer que é uma verdadeira urgência – seja a tarefa de se pôr na escola dos místicos, muito particular- mente das místicas do século XX.

Mas os místicos são difíceis, me dizem. Na verdade, eles são poéticos, inclusive por necessidade. Como traduzir com palavras o inefável? Aqui só a Arte vem em nosso socorro, e entre elas a mais nobre: a poesia. Daí que o místico, não só faz poesia, mas acaba por se tornar poesia perfeita em ação, como Simone Weil escrevia acerca de São Francisco de Assis. Isso, porém, não deve nos dar medo, ao contrário, porque as coisas verdadeiramente importantes na vida exigem ir além da superfície. E este tempo exige de nós, para podermos sobreviver, ir para águas mais profundas. As recentes manchetes dos jornais nos mostraram o quanto ainda experimentamos as profundas chagas do século passado, como ainda estamos marcados com pólvora e sangue pelas ideologias do século XX. Sentimos fortemente como seus fantasmas não nos deixaram, mas ao contrário, parecem, hoje, mais do que nunca, que voltam para nos aterrorizar. Daí a relevância de haurir desta grande riqueza a nós deixada como herança por estas mulheres que sofreram estas mesmas chagas, que sorveram deste cálice amargo, mas que intuíram o único antídoto possível: o Amor.

Portanto, entrar na sua escola nos permitirá resistir ao mal do momento presente, tão cruel e desumanizante. Ao tocarmos com a mão a experiência de Deus destas mulheres, captamos a atualidade das palavras de São Paulo: “Não te deixes vencer pelo mal, mas triunfa do mal com o bem” (Rm 12,21).

O século XX teve uma verdadeira enxurrada de grandes místicas, que nos legaram um patrimônio literário enorme. Mulheres brilhantes que nos deixaram as mais destacadas luzes para a Teologia, para a Filosofia, mas sobretudo para cada um de nós. Elas nos falam de Deus não como especulação filosófica, mas como Amor-Trindade, amam a Jesus não como personalidade histórica, mas como Mestre, Irmão, Amigo, Esposo. E, Nele, veem os homens e mulheres não como meras engrenagens, mas como filhos profundamente amados.

Deve-se destacar também que esta literatura mística feminina não vem exclusivamente do ambiente monástico, mas também de mulheres leigas, sejam casadas, como Concepción Cabrera de Armida, mãe de nove filhos; sejam consagradas no mundo, como Itala Mela, oblata beneditina, escondida no deserto de Deus. Como é incrível e vivaz a ação do Espírito Santo!

De Gemma Galgani, com seu chamado à confiança e intimidade, a Maria Teresa Carloni, a quem o amor leva a romper todas as barreiras, inclusive aquela da Cortina de Ferro. De Maria Bordoni, com seu carisma mariano e sacerdotal, a Chiara Lubich, com seu amor esponsal a Jesus Abandonado.

Multicoloridas,  multifacetadas, entre luzes e sombras, nos mostram ao vivo e em cores o amor misericordioso. Manifestam que viver em Deus é estar num caleidoscópio, porque tal- vez seja essa a grande ajuda que nos darão: nos livrarão da massificação despersonalizante.

As opiniões expressas na seção “Opinião” são de responsabilidade do autor e não refletem, necessariamente, os posicionamentos editorais do jornal O SÃO PAULO.

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Kenzio Galdino
Kenzio Galdino
2 anos atrás

Excelente texto do amigo José Eduardo. São nessas mulheres transfiguradas em Cristo que devemos nos espelhar, afinal, todos nós somos chamados a santidade e está longe quem acha que santos são somente os exemplos Extraordinários, sendo necessário coisas mais simples do que imaginamos para buscar o céu e a recompensa eterna. Que Deus abençoe a todos.

Léo Cruz
Léo Cruz
2 anos atrás

Excelente texto! Ao irmão José Eduardo minhas mais sinceras palavras de incentivo. São anos de amizade né? Rsrsrs… Conte com minha oração e benção paterna! Padre Léo Cruz, CP

Rosangela da Rocha Silva
Rosangela da Rocha Silva
2 anos atrás

Lindo texto, que exalta a força e missão que Deus deixou para as mulheres.
Penso que “tal-vez” seja, hoje, o caminho da santidade das mulheres lutar por seu matrimônio e por criar seus filhos como homens e mulheres temente a Deus e seus ensinamentos. Como mulher sinto-me nadando contra a correnteza do mundo, porém, tenho fé que tenho como bote salva-vidas Jesus Cristo. Aquele que me levará sã e salva para as margens…o céu!
Rosangela 34 anos de matrimônio, 3 filhos e 2 netas

Denise
Denise
2 anos atrás

Excelente texto, José Eduardo! Uma reflexão necessária e que nos leva a querer o aprofundar na vida dessas santas e, também, na vida interior.
Que Deus o abençoe pelas mãos de Nossa Senhora!