Bento XVI e a ditadura do relativismo

Faz pouco mais de um mês que Bento XVI foi sepultado, e o transcurso do tempo não deixará de trazer sempre mais à luz a grande riqueza espiritual que este Papa teólogo nos legou – mas desde agora já podemos nos admirar da clareza e acuidade com que ele penetrava os principais desafios da Igreja e da sociedade de nossos dias. Tornou-se frequente, por exemplo, falar-se de uma “ditadura do relativismo” – expressão por ele cunhada na Missa Pro Eligendo Pontifice, que presidiu em 18/04/2005 como Decano do Colégio de Cardeais, às vésperas de ser eleito, ele próprio, Bispo de Roma. Para entendermos melhor o que o então Cardeal Ratzinger queria dizer por essa expressão – e comprovarmos a pertinência de suas observações – é interessante repassar o conteúdo da conferência que ele havia ministrado poucos dias antes, em 01/04/2005, no Mosteiro de Santa Escolástica, em Subiaco, sobre “A Europa na crise das culturas”.

Naquela ocasião, Ratzinger apontava as deficiências de uma cultura iluminista radical, que rejeita suas tradições morais e religiosas e erige a autonomia de autoafirmação do indivíduo como valor supremo. Esse endeusamento da “liberdade” a qualquer custo acaba redundando, tragicamente, em graves danos ao próprio ser humano: quer pelos inevitáveis conflitos entre caprichos e interesses opostos (“O homem sabe clonar outros homens, e usá-los como ‘armazéns’ de órgãos para outros homens, e por isso o faz; porque essa parece ser uma exigência de sua liberdade”), quer pelo aprisionamento da inteligência que se recusa a se abrir à luz da verdade objetiva (como os chamados terianos, pessoas que se identificam com animais, como lobos ou cachorros, e exigem ser assim tratadas pelos demais membros da sociedade). 

A maioria de nós brasileiros, felizmente, ainda acreditamos que um ser humano não pode pretender ser um lobo sem fazer violência ao mundo real – mas permanece a pergunta: como foi que chegamos ao ponto de debater seriamente esta questão? Ratzinger apontava que a origem do problema está naquela “mentalidade tecnicista, que confina a moral ao âmbito subjetivo”. O progresso da técnica ocidental, alcançado pelo rigor metódico das ciências empíricas, é certamente digno de louvor – o problema, no entanto, é quando esta forma de racionalidade passa a se pretender absoluta e universal, e a afirmar que “somente é racional o que pode ser provado com experimentos”. Os atuais instrumentos de observação até poderiam medir a atividade neural de um médico nazista, ao assassinar suas vítimas, ou os batimentos cardíacos de um voluntário das Forças Aliadas, ao se colocar em risco para defender a vida e a liberdade de seus concidadãos – mas nunca conseguiremos medir e observar a maldade ou a bondade de suas ações. Na verdade, a ideologia do cientificismo, que pretendia justamente “libertar” o homem das amarras da religião e da moral, acaba por desembocar no determinismo de alguns naturalistas radicais, para os quais o ser humano não passa de um animal como outro qualquer, sem qualquer liberdade de decisão ante as leis da física e da matéria.

O relativismo, portanto, com toda a angústia e infelicidade que traz para o homem e para a sociedade, é resultado desse reducionismo da razão humana, e dessa sua relutância em se abrir às suas raízes e tradições filosófico-religiosas. Mas qual a solução que propunha Ratzinger para este impasse? Por um lado, relembrarmos que o Cristianismo é, por excelência, “a Religião do Logos (cf. Jo 1,1ss), da razão e da razoabilidade, em que o mundo é concebido como um cosmo ordenado, reflexo da racionalidade de seu Criador (cf. Catecismo, n. 346). Apoiados nessa certeza, por outro lado, podemos nos entregar confiantes a este Deus cujo maior desejo e glória não é outro senão o pleno desabrochar de seus filhos. Se o fizermos, tornaremo-nos “homens cuja inteligência Deus ilumina e cujo coração Deus abre, para que nosso intelecto possa falar ao intelecto dos outros e nosso coração possa abrir o coração dos outros. Somente através de homens assim tocados por Deus é que Deus poderá retornar depressa aos homens”.

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Mônica
Mônica
1 ano atrás

Um texto reflexivo muito bem elaborado e fundamentado no amor de Deus por nós.A possibidade da Ciência a serviço de Deus nas mãos de quem Nele crê e se faz instrumento dele nos cuidados com a vida que a Ele pertence .Muito bom o artigo escrito e não importa o passar de anos ou décadas , mas a essência será sempre a mesma : amar tudo que Ele criou ,pois onde há vida ali estará a presença de Deus.