Martírio em tempos de secularização

Há poucos anos, perguntaram ao já idoso Dom Estanislao Karlic, bispo e teólogo argentino, o que pensava da possibilidade de grandes nações atuais, cada vez mais ateias, serem “recristianizadas”. Ele respondeu que já havia pensado nessa hipótese, fazendo com que se entristecesse e rezasse. Ficava triste, dizia ele, porque nenhuma nação se converteria sem o testemunho de mártires, e ele sofria ao pensar em todos esses cristãos que ainda de- veriam sofrer para que o mundo se convertesse.

Nestes tempos, em que nos preocupamos tanto com a cristofobia e nos escandalizamos com o cancela- mento cultural dos valores cristãos – a “perseguição educada”, nas palavras do Papa Francisco –, vale a pena nos determos mais na contribuição do martírio para nossa vida cristã.

Se no Ocidente cristão, após a 2a Guerra Mundial, os conflitos sangrentos por motivos religiosos se tornaram muito raros, acontecendo apenas em função de disputas étnicas e nacionalistas em algumas regiões; na Ásia e na África, particularmente em países sujeitos à perseguição islâmica e à comunista, o martírio cresceu – a ponto de o século XX poder ser considerado um “século de mártires” e o século XXI seguir pelo mesmo rumo. Paradoxal- mente, ou nem tão paradoxalmente assim, o Cristianismo se expande mais na África e na Ásia, enquanto parece minguar no mundo ocidental.

Por que o Cristianismo parece depender tanto do martírio para sobreviver? Uma resposta até sociológica dirá que a firme convicção dos mártires tem um enorme poder de convencimento. Em alguns casos, o espírito de doação dos mártires que se sacrificaram para salvar a outros ou para levar-lhes a mensagem cristã gera comoção e gratidão. O fato é que o martírio revela uma abundância de vida e de amor, capaz de superar o sofrimento e a morte.

Contudo, aos olhos da fé, o martírio não é só a extrema e mais injusta provação, mas também a possibilidade de os cristãos se assemelharem mais a Cristo e colaborarem, de forma radical, com a construção da Igreja. Radical, é bom frisar, não só no sentido de extremada, mas na exata etimologia da palavra: aquela que está na raiz, na origem do fenômeno – em nosso caso, a identificação com o próprio Cristo.

Assim, a sobrevivência e até a expansão da Igreja que vive sob o martírio não pode ser compreendida apenas em termos sociológicos, mas deve ser vista como manifestação mesma da graça misteriosa que vem de Deus. Todos nós, cristãos, no horizonte místico da comunhão dos santos, somos devedores de nossos irmãos que viveram e vivem o martírio. Qual país teria conhecido a Cristo sem a dedicação dos missionários? Pois não existe missão sem histórias de martírio. Ainda hoje, os sacrifícios dos mártires nos ajudam – de forma tão invisível quanto a da oração – a manter nossa fé e nos encontrarmos com Cristo.

No domingo, 15, o Papa Francisco canonizou dez novos santos, dentre estes o indiano Lázaro Devasahayam e o holandês Tito Brandsma. Eles e o francês Charles de Foucauld, que dedicou sua vida aos últimos, sendo assassinado entre a população per- seguida na Argélia, são exemplos importantes para termos diante dos olhos e guardados no coração.

Quando o Império Romano deixou de perseguir os cristãos, muitos deles, desejosos de viver a radicalidade cristã, de “morrer para o mundo” de modo a desde logo “viver com Cristo”, se refugiaram no deserto e optaram pela vida eremítica. Mais tarde, foram se reunindo em comunidades, criando o monaquismo cristão. Sua experiência, de renúncia extrema à vida mundana, é conhecida como o “martírio branco”, em oposição ao “martírio de sangue”.

De um modo ou de outro, continuamos devedores ao testemunho radical desses nossos irmãos e irmãs. Que, neste mundo cada vez mais secularizado, possamos viver uma vida à altura dos dons que recebemos por meio de seus sacrifícios.

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