‘Memória Oculta’

Você se recorda de quando nasceu? Ou quem sabe dos dois primeiros anos de vida? Talvez alguém se recordará de algo marcante aos 3 anos. Aos 4, encontraremos “retratos” da memória pouco nítidos para uns e melhores para outros. Aos 5, já seremos capazes de recordar a casa, alguns lugares em que moramos, pessoas com quem convivíamos mais frequentemente. Este é o caminho da maioria das pessoas, podendo existir casos excepcionais. No entanto, se chegamos aqui é porque, certamente, passamos pelos primeiros anos da vida. 

A memória é um capítulo complexo do estudo da mente, no seu aspecto fisiológico e psicológico. Não é nosso intuito seguir por aí. Contudo, reconhecer que o que vivemos, desde que passamos a existir, está “guardado” em nós é fato. Mesmo antes do nascimento, por técnicas de hipnose, se alcança uma memória gestacional, em alguns casos. Este armazenamento está no que podemos denominar uma “memória oculta”. Memória, porque é um registro do que vivemos; oculta, porque não está livremente acessível ao nosso consciente. Em uma maneira mais simples: você não lembra, mas você viveu e registrou. 

Recordo-me dos tempos de faculdade quando passava na enfermaria, onde permaneciam crianças muito pequenas, que tiveram a infelicidade de sofrer queimaduras muito extensas, que permaneceriam, infelizmente, como cicatrizes para sempre no corpo, sem a reparação sequer por uma cirurgia plástica realizada por exímio cirurgião. As crianças cresceriam com as cicatrizes, sem saberem, sem recordarem o que provocou aquilo. Faço uma correlação física com eventos que poderão “queimar” a pessoa, não no seu corpo, mas em episódios emocionais, vivências psicológicas, agressões percebidas. A diferença que estas não ficam reveladas na pele, mas se manifestarão no comportamento futuro.

O contrário ocorre se uma criança pequena é acolhida carinhosamente pelos pais e irmãos. Recebida com afeto. Apresentada ao mundo conforme a capacidade de suas percepções. Introduzida na realidade, respeitando-se os seus limites de perturbação sonora e visual. Conhecendo pessoas novas à medida que se sente segura com a mãe. Tudo isso vai contextualizando uma memória agradável, que, sem ser recordada, influenciará decididamente no seu desenvolvimento futuro. 

Interessante notar que, sem ter aprendido conceitos do amigo e do carrancudo, do alegre e do agressivo, do barulhento e do harmonioso, o bebê manifesta seu sorriso (linguagem universal) nas condições que são compatíveis com o belo, o bom, o amoroso. Pelo contrário, é capaz de chorar da careta brava, do barulho, do agressivo. Alguém diria: “É lógico”. Por quê? Porque fomos criados para conviver com o bem que acolhe, que está sintonizado com o amor. O estado natural da criança é sorrir. Se chora, é porque foi assustada, a fralda suja incomoda, a fome chegou… O maior sentido da criança nos primeiros meses está na pele, no tato, pelo qual ela sente a presença física do toque, a segurança de quem a aperta nos braços carinhosamente. Este é o seu canal de comunicação.

Penso que o amigo leitor percebe a importância da memória oculta em cada um de nós. Assim como das consequências que se seguem desta percepção. Às vezes, não entendemos certos medos, sem explicação aparente. Não faz sentido certas manifestações de repulsa numa criança maior ou mesmo em um adolescente, diante de seus pais, que hoje vivem um clima amigável (mas que não foi assim no passado). Uma tristeza sem causa da jovem que sem saber havia sido rejeitada ainda no ventre materno de sua gestação. Os exemplos compõem uma lista sem fim, e também não podemos afirmar serem estes os únicos responsáveis pelo comportamento futuro, evidentemente.

Portanto, pais, estejamos atentos aos primeiros dias, semanas e meses de nossos filhos. Sei o quanto isto é difícil, ou quase impossível a muitos pais. Peço aos avós que façam o seu papel, sempre que possível, com esforço pessoal, para oferecerem uma atmosfera de família. Mães, procurem uma gestação com ambiente tranquilo, e sem barulhos. Conversem com o bebê mesmo antes de nascer. Falem do amor que sentem e da alegria pela sua chegada. Se possível, adiem o retorno ao trabalho, pelo tempo máximo possível da licença. Cada mês, nesta etapa da vida, que passarem mais juntos, dará uma grande diferença futura. Construam uma “memória oculta” com fatos de carinho, paciência, compreensão, alegrias, amor… e seus filhos terão uma maior possibilidade de manifestar isto, quando forem adultos, em atitudes de amor ao próximo.

Valdir Reginato é médico de família. E-mail: reginatovaldir@gmail.com

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