O corpo humano: resultado da evolução, redimido pelo Cristo

No final de 2022, o biólogo evolutivo italiano Telmo Pievani publicou um interessante artigo sobre a evolução humana intitulado “As partes do corpo que não fazem sentido” (por exemplo, a uretra que passa no meio da próstata, nos homens, e o estreitamento do canal vaginal, nas mulheres, que tanta dor causa no parto). Nossa história evolutiva assemelha-se, interpreto eu, a uma moradia que começa como uma pequena casa em região de periferia que, ao longo dos anos vai sendo remodelada, ganha “puxadinhos” e novas lajes sobre lajes. Décadas depois, o resultado divide opiniões. Alguns veem uma casa malfeita, disfuncional e desconfortável. Outros veem soluções engenhosas encontradas pela família, mais bem adaptadas ao meio em que viviam e aos recursos que tinham—medalha de ouro! A casa é o nosso corpo, nosso organismo, nossa inteligência. Para aqueles cristãos acostumados a certo tipo de leitura literal do livro do Gênesis, isso é meio absurdo, pois Deus havia criado Adão e Eva como perfeitos em tudo, física e moralmente, e com o pecado original o homem decaiu para esse estado corporal “mal ajambrado” que temos hoje.

Não é fácil reconciliar as duas narrativas, como já argumentei, pois diz-se que Deus “criou o homem à sua imagem e semelhança” e “viu tudo o que tinha feito: e era muito bom” (Gn 1, 27; 31). Mas a história prossegue sob um outro ângulo: “então Deus modelou o homem com a argila do solo e insuflou em suas narinas um hálito de vida” (Gn 2,7). Em outras palavras, nós somos pó e cinzas, e vivemos pela graça de Deus. O paradoxo do divino e do humano é bem captado pelo Salmo 8: “que é um mortal, para dele te lembrares, e um filho de Adão, para vires visitá-lo? E o fizeste pouco menos que um Deus, coroando-o de glória e beleza” (8, 5-6).

Esse paradoxo foi captado no Novo Testamento, ao se identificar o Cristo na Paixão ao Servo Sofredor de Isaias: “Não tinha beleza nem esplendor que pudesse atrair nosso olhar.., como pessoa de quem todos escondem o rosto… E, no entanto, eram nossos sofrimentos que ele levava sobre si” (53, 2-4). É desse homem que Pilatos fala: Ecce Homo!

A teoria da evolução fala tanto do humano bem adaptado ao seu ambiente e das soluções inteligentes encontradas quanto de “custos”, do ônus de se recorrer a “puxadinhos” ao longo do caminho, que tantos sofrimentos nos causam. Sob a luz da fé, a criação, dentro de uma perspectiva cristológica, fala tanto do Adão representado por Michelângelo na capela Sistina quanto do sofredor, do marginalizado, do deficiente, do invisível. Paradoxalmente, um não ocorre sem o outro.

No Cristo sofredor e crucificado, que entretanto ressuscitou, encontramos a resolução desse paradoxo, o novo homem que é simultaneamente fruto da longa evolução descrita pelas teorias científica e da contínua vinda de Cristo. Viver esse paradoxo exige do cristão discernimento ante a tensão nas concordâncias e divergências entre teoria científica e dado revelado.

Eduardo R. Cruz é professor titular do Departamento de Ciência da Religião da PUC-SP, tendo graus avançados em Física e Teologia; publicou extensamente sobre o relacionamento entre ciências naturais e fé cristã.

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