O sentido humano e cristão da penitência corporal

Há muitos por aí que se comportam como inimigos da cruz de Cristo. O fim deles é a perdição, o deus deles é o estômago, a glória deles está no que é vergonhoso. Só pensam nas coisas terrenas! (cf. Fl 3,18-19). Nesta sequência de reflexões sobre as três obras quaresmais, gostaríamos de tratar do tema da penitência corporal, que os nossos antepassados cristãos apelidaram de jejum.

Falar de penitência no século XXI é como tentar vender guarda-chuvas no deserto: o ambiente cultural em que vivemos nos bombardeia constantemente com a ideia de que felicidade se resume em sentir prazer, o que nos remete ao inevitável desprezo do sentido do sacrifício, tão necessário quando o que se pretende é alcançar grandes ideais. Além disso, a identificação do sentido de vida com a satisfação do próprio eu está na raiz de muitos dos males que afligem a humanidade. Tomemos como exemplo o que acontece com uma criança que tem todos os seus desejos satisfeitos, sem quaisquer formas de limites: seus pais e educadores se dobram a todos os seus caprichos, ficam paralisados e aflitos cada vez que o pequeno ameaça se desatar num choro manhoso? O resulta- do (como qualquer pai ou mãe pode testemunhar) é uma criança mimada e irritadiça, que cresce com uma imensa capacidade de ser infeliz – pois se considera uma vítima do universo, sempre que lhe acontece qualquer mínima contrariedade que nem sequer seria percebida por alguém educado para ter mais fibra moral.

Desde a Antiguidade, os filósofos gregos já haviam percebido essa realidade fundamental do ser humano. Por isso é que, contra o “naturalismo” de Cálicles, que dizia que felicidade é dar livre vazão a seus desejos, Sócrates respondia com a parábola dos homens que buscam encher seus vasos com vinho, leite e mel: o homem temperado possui recipientes fortes e íntegros e consegue saciá-los a seu devido tempo, mas o homem licencioso possui seus vasos furados, e ainda tenta enchê-los com peneiras – de modo que nunca termina de completá-los, e fica tremendamente triste quando desiste de sua empreitada (Górgias, 492-493).

Nós, cristãos, também percebemos essas verdades básicas sobre a nature- za humana – e por isso mesmo é que desde sempre recomendamos a prática da penitência ou ascese (que signifi- ca “exercício”, “musculação da alma”). Não queremos que o nosso deus seja o estômago, não queremos pensar só nas coisas terrenas, e por isso abraçamos com amor algumas renúncias corpo- rais, para que nossa alma domine livre- mente o nosso corpo.

E a penitência tem ainda um sentido de expiação, de reparação pelos nossos pecados! É claro que o perdão dos pecados não vem da mortificação em si – para isso, Deus instituiu um caminho específico: a confissão sacramental, a um sacerdote ordenado (cf. Jo 20,23). Mas o fato é que nossos pecados, mesmo depois de perdoados, ainda deixam certas desordens em nossos afetos: as quais terão de ser purificadas antes de podermos contemplar o Deus de toda pureza. Cada um de nós pode se colocar diante da pergunta: onde prefiro me purificar de minhas faltas, nesta vida ou na outra? Carregando com paciência a pequena cruz de cada dia, ou contemplando agoniado, no Purgatório, o imenso amor de Deus por mim e a extrema maldade das minhas faltas?

Vamos nos esforçar, neste tempo forte de conversão, para colocar diante dos olhos nossa mortalidade, e colocar nossa esperança nos prazeres duradouros e celestes.

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