Vírus, balas e crianças

O palco de guerra se repete com inusitada frequência. Em 22 de março, uma escola primária na cidade do Rio de Janeiro (RJ) se viu envolvida num tiroteio. A cena da professora orientando as crianças de 4 a 7 anos foi filmada. Comoveu e viralizou pelas redes sociais. “Vamos, todas no chão, sentadas e encostadas na parede”, dizia ela, tentando defendê-las do risco das balas perdidas. E continuava: “Aqui, um pouco mais longe umas das outras”, tentando protegê-las do coronavírus.

Entre o medo do vírus e o das balas, a professora e as crianças faziam malabarismos para sobreviver numa terra conflagrada. Conflagrada pela pobreza, miséria e descaso; pela pandemia, que só no Brasil já ceifou a vida de mais de 300 mil pessoas; pela negligência do poder público frente à tamanha tragédia; pelo descompasso entre as medidas tomadas pelos poderes federal, estadual e municipal.

Referimo-nos a crianças inocentes. Sem dúvida, meninos e meninas cheios de energia e entusiasmo, mas sobre cuja ternura e fragilidade devemos erguer o edifício do futuro. O que esperar deles e delas em meio a um cenário quase diariamente marcado pelo som de balas e pela proximidade sombria da morte? E quanto aos profissionais da educação, ou àqueles da saúde, como manter a calma e uma postura íntegra, rodeados que estão de tantos riscos e de tantos conflitos?

Nesse contexto de violência e enfermidade tragicamente combinadas, agravado pelo colapso do sistema de saúde público e privado, em que se encontram de forma especial as grandes metrópoles, as vítimas são sempre os grupos mais vulneráveis e indefesos. Idosos, crianças e mulheres, por um lado, imigrantes, desempregados e subempregados, por outro. É aí que a vida se encontra mais ameaçada. É aí que a fome e a morte batem à porta de maneira conjunta e macabra.

Porém, se é aí que a vida se encontra mais ameaçada, é também para esses grupos que se volta o olhar compassivo e misericordioso de Jesus e do Deus que Ele nos revela nos relatos evangélicos. Mesmo invisível e aparentemente distante, o Pai jamais abandonou seu Filho, de modo especial no momento central e trágico da cruz. E está igualmente junto àqueles que hoje padecem crucificados pela pandemia ou pela violência urbana. O tempo da Quaresma, por exemplo, neste ano de 2021, foi vivenciado e enriquecido pela temática do diálogo e do compromisso, com a reflexão e ação ao redor da Campanha da Fraternidade Ecumênica.

Podemos concluir que, se é nesses grupos que se concentra preferencialmente o coração do Pai e do Filho, movidos pelo amor do Espírito Santo –, a Doutrina Social da Igreja, ao longo do tempo, também tem priorizado a defesa e o direito à dignidade humana, particularmente onde ela se encontra mais esquecida e aviltada. É o que demonstram, de um lado, as palavras interpeladoras do Papa Francisco e, de outro, as ações solidárias desenvolvidas neste momento pela imensa rede das pastorais sociais e movimentos, bem como de tantas comunidades, paróquias e dioceses.

Padre Alfredo José Gonçalves, CS, pertence à Congregação dos Missionários de São Carlos (Scalabrinianos).

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