‘A religião sempre foi uma força mobilizada durante as eleições’

Durante as segundas-feiras deste mês e também em 4 de julho, sempre das 19h30 às 21h30, acontece de modo on-line e gratuito o curso “Cidadania e Política – Religiões e Representação Política”, promovido pela Oficina Municipal – uma escola de cidadania e gestão pública – e a Fundação Konrad Adenauer. O curso, cujas inscrições ainda podem ser feitas pelo link https://bit.ly/3GpSKqR –, tem o propósito de analisar as relações entre a fé e a política no Brasil, América Latina, África e Oriente Médio. 

Nesta entrevista ao O SÃO PAULO, um dos professores do curso, o cientista político Fábio Lacerda, doutor em Ciência Política pela USP e docente no Centro Universitário FEI e no Ibmec-SP, fala sobre o assunto central e da temática que apresentará na aula do dia 20, a respeito do “Crescimento evangélico e representação política na América Latina”. 

Arquivo pessoal

O SÃO PAULO – Quão próximas estão a influência da religião na sociedade e a representação política? 

Fábio Lacerda – Um dos aspectos centrais e definidores das democracias liberais é a existência de eleições competitivas. Democracias supõem eleições nas quais candidatos competem pelos votos da população. Essas eleições assumem diferentes formas – podem ser eleições para o Legislativo ou para o Executivo, por exemplo. Cada uma tem uma lógica distinta. A religião sempre foi uma força mobilizada durante as eleições. No entanto, a relevância da religião em disputas eleitorais está condicionada a outras variáveis. No caso do Brasil, as últimas décadas foram marcadas por um crescimento notável da população evangélica, e isso contribuiu para o aumento do número de deputados evangélicos. Além disso, esse crescimento contribuiu para uma influência maior do eleitorado evangélico nas eleições para o Executivo. Vale lembrar o peso do voto evangélico na eleição de Jair Bolsonaro [em 25 de outubro de 2018, às vésperas do 2o turno das eleições presidenciais, pesquisa Datafolha mostrou que 59% dos evangélicos declararam a intenção de voto no então candidato do PSL]. 

No curso, o senhor falará sobre o “Crescimento evangélico e a representação política na América Latina”. Qual relação há entre estes aspectos? 

O crescimento evangélico ocorreu não apenas no Brasil, mas em quase toda a América Latina. No entanto, isso não se traduziu necessariamente em mais parlamentares evangélicos eleitos. O Brasil é um dos casos mais conhecidos e de maior sucesso eleitoral evangélico latino-americano. O Chile, por outro lado, mesmo com um dos movimentos protestantes mais antigos da região, possui uma proporção de parlamentares evangélicos menor do que a verificada no Brasil, na Colômbia e em outros países. Isso ocorre porque, como foi dito, a relação entre religião e representação política está condicionada a outros fatores, tais como o sistema eleitoral, o sistema partidário e a estrutura das organizações religiosas do país. 

É natural que políticos busquem se posicionar sobre temas relevantes para sua comunidade. O mesmo vale para políticos religiosos. Porém, isso por vezes leva à crítica de que eles estariam “instrumentalizando” a religião. É claro que essa instrumentalização ocorre em algum grau. No entanto, a meu ver, é importante destacar que a instrumentalização de temas morais é algo característico de qualquer político, e não apenas dos religiosos. É parte do processo de representação política. 

A preocupação de praticantes de religiões minoritárias sobre como o Estado vai lidar com elas é legítima e pode ensejar um voto em candidatos que atuem para proteger sua religião. A priori, não há nada de errado com isso. É claro que candidatos podem tentar manipular comunidades religiosas, afirmando que o partido A, B ou C representa uma ameaça existencial à sua religião. Isso faz parte do jogo eleitoral. Cabe aos eleitores buscar discernir a verdade contida nessas alegações. 

Em maio de 2019, falando a participantes de um curso sobre Doutrina Social da Igreja, o Papa Francisco alertou para a necessidade de “uma nova presença de católicos na política na América Latina”, não apenas com novos rostos nas campanhas eleitorais, mas, principalmente, com novos métodos que permitam construir alternativas que sejam críticas e construtivas. No Brasil, este chamado do Papa está sendo ouvido? 

Essa é uma pergunta mais difícil do que parece. Como cientista político, devo destacar que a participação política pode assumir diversas formas em nossa sociedade. Ser um candidato em uma eleição é apenas uma delas. É algo muito importante, claro, mas é um papel reservado a poucas pessoas. A grande maioria dos católicos brasileiros não vai se candidatar a um cargo Legislativo. Mesmo assim, podem desempenhar uma participação política relevante, seja militando em partidos políticos, seja participando de instituições da sociedade civil, seja se expressando politicamente nas redes sociais etc. Sobre esses “novos métodos”, eu não sei quais são. O que precisamos é parar de demonizar a política e os políticos. 

A pauta dos bons costumes e dos valores caros à família tende a estar no centro dos debates das eleições deste ano no Brasil. Quais recomendações o senhor daria a um católico para que saiba filtrar o que são discursos preocupados com esses valores daqueles que buscam apenas a instrumentalização de tal retórica para obter mais votos? 

Minha recomendação ao eleitorado católico seria essencialmente a mesma que daria ao eleitorado cristão em geral. A decisão do voto é difícil. Não há regra simples. É como uma equação com inúmeras variáveis. Você pode dar maior peso a uma variável ou à outra. Há muito espaço para divergência legítima. Não existe isso de “católico só poder votar em fulano”. Vou dar um exemplo: alguns católicos argumentam que católicos não deveriam votar em candidatos que defendem a legalização do aborto. No entanto, suponha uma eleição presidencial hipotética na qual o 2o turno é disputado entre um candidato democrata agnóstico pró-aborto e um candidato autoritário católico contra o aborto (um Franco ou um Pinochet, por exemplo). Deveria um católico votar no candidato autoritário? A menos que você considere que ser contra o aborto é mais importante do que viver em uma democracia, a resposta seria “não”. 

Também não se pode descartar que haja a instrumentalização do discurso religioso quando se apresentam propostas para o combate à fome e à pobreza. Nesse caso, como discernir bem entre o que são propostas alinhadas à Doutrina Social da Igreja e o que é simples “retórica eleitoreira”? 

O Brasil é um país muito desigual. É trivial e óbvio dizer isso, mas, ao mesmo tempo, parece necessário lembrar essa questão. Em países tão desiguais, sempre haverá muitos indivíduos interessados em votar em partidos com propostas redistributivas mais fortes. Em geral, são os partidos de esquerda que defendem essas propostas. Vivemos numa situação tal, que se pensarmos em termos econômicos, a mediana dos rendimentos da população está muito à esquerda da média dos rendimentos, ou seja, existem muitas pessoas para quem a redistribuição da renda será benéfica e, enquanto uma situação como essa perdurar, partidos de esquerda vão ter muitos votos porque defendem uma proposta redistributiva mais forte. Desse modo, não cabe, a meu ver, falar em “instrumentalização do problema da pobreza”. A pobreza e a desigualdade são o grande problema do Brasil. Para um político concorrendo à Presidência ganhar votos no Brasil, ele precisa enfrentar esse problema, precisa oferecer redistribuição de renda via políticas sociais, tributação etc. Não há outro caminho. 

As opiniões expressas na seção “Com a Palavra” são de responsabilidade do entrevistado e não refletem, necessariamente, os posicionamentos editoriais do jornal O SÃO PAULO

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