A São Paulo de todos os povos bem acolhe os imigrantes e refugiados?

Especialmente os de origem latina e africana encontram dificuldades para a inserção social e oportunidades de emprego. Igreja atua para promover a integração dos estrangeiros na maior cidade do Brasil

Imigrantes e refugiados à espera pelos serviços ofertados gratuitamente na sede da Missão Paz, no bairro do Glicério
Luciney Martins/O SÃO PAULO – abr.2014

A acolhida dos estrangeiros no Brasil é tema de reflexões neste mês de junho, especialmente em razão de duas datas: o Dia Mundial do Refugiado, celebrado em 20 de junho, e o Dia do Imigrante, 25. 

Além disso, prossegue até domingo, 19, a 37º Semana do Migrante, organizada pelo Serviço Pastoral dos Migrantes (SPM), este ano com o tema “Migração e Saberes”. No texto-base da atual edição, é apontado que a sociedade brasileira deve acolhê-los, ouvi-los e “compreender, a partir deles, os elementos que acentuam a injustiça e o que resulta desse processo de sobrevivência que nos permite abrir novas perspectivas para entender por onde passa o enfrentamento das desigualdades sociais que ainda persistem em nosso País”. 

Conforme explica o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur), é considerado refugiado aquele que deixa seu país de origem para escapar de conflitos armados ou perseguições por questões de raça, religião, opinião política ou pertencimento a um grupo social específico. Já os imigrantes escolhem se deslocar, sem serem forçados para tal, na tentativa de melhorar sua condição de vida. 

Sejam imigrantes, sejam refugiados, a acolhida aos estrangeiros é uma obra de misericórdia que a Igreja recomenda ao cristão. Na mensagem para o 108º Dia Mundial do Migrante e do Refugiado, a ser celebrado em 25 de setembro, o Papa Francisco ressalta que o plano divino é inclusivo, sendo o Reino de Deus também feito por migrantes e refugiados, cuja contribuição, ao longo da história, se mostrou “fundamental para o crescimento socioeconômico das nossas sociedades; e continua a sê-lo hoje. O seu trabalho, capacidade de sacrifício, juventude e entusiasmo enriquecem as comunidades que os acolhem”. 

MARCAS HISTÓRICAS

Na arquitetura, nas artes, na culinária, na língua e nas atividades que movimentam a economia das principais cidades do Brasil, é perceptível a contribuição dos imigrantes, que chegaram em maior número ao País entre as décadas de 1890 e 1920.

Ao O SÃO PAULO, o historiador Henrique Trindade, pesquisador do Museu da Imigração do Estado de São Paulo, comentou que a principal motivação para a vinda dos imigrantes europeus naquele período foi de ordem econômica. “No século XIX como um todo, houve uma série de transformações na Europa que atingiram algumas camadas da população, em especial a que estava ligada às atividades no campo, como os camponeses e pequenos proprietários, arrendatários e pequenos comerciantes”, comentou, detalhando que também a vinda dos japoneses, a partir de 1908, teve essa motivação principal.

“As maiores quantidades foram de italianos, que chegaram especialmente no final do século XIX. Já o grande fluxo de espanhóis e portugueses se deu especialmente nos primeiros anos do século XX; já os alemães e japoneses chegaram especialmente na década de 1920”, explicou Trindade.

Ainda segundo o historiador, os governantes do Brasil e os que detinham o capital financeiro optaram por incentivar a imigração de uma mão de obra europeia e branca por acreditarem que isso traria maior civilidade ao País.

“Aqui em São Paulo, no final do século XIX, a Hospedaria de Imigrantes tinha como principal objetivo o encaminhamento de pessoas para o interior do estado de São Paulo, para o trabalho na lavoura cafeeira. Majoritariamente, vinham imigrantes da região norte da Itália, como Veneto, Lombardia, Friuli, que se fixaram mais no campo, no interior do estado. Depois, no início do século XX, houve um aumento de chegada de imigrantes do sul da Itália, que acabaram trabalhando nas fábricas e no comércio da cidade. Isso também vale para os espanhóis: enquanto os vindos da Andaluzia se fixaram mais no campo, os galegos ficaram na cidade. Os sírio-libaneses se destacam pelo trabalho nas cidades como comerciantes. Já os japoneses acabam se direcionando mais para o campo”, detalhou.

Hospedaria dos Imigrantes, no início do século XX, local da acolhida inicial aos estrangeiros que chegavam a São Paulo
Museu da Imigração do Estado de São Paulo

TESTEMUNHOS DE FÉ 

Os estrangeiros que permaneceram na capital paulista difundiram sua fé e piedade católica. Um dos exemplos são as festas, hoje centenárias, iniciadas pelos imigrantes italianos em honra a Nossa Senhora de Casaluce, São Vito Mártir, Nossa Senhora Achiropita e San Gennaro. 

Também se instalaram na cidade algumas congregações religiosas, como a das Irmãs de Santa Catarina, de origem alemã, com atuação na área da Saúde; e de Nossa Senhora de Sion, de origem francesa, no ramo da Educação, ambas nos primeiros anos do século XX; e a Congregação dos Missionários de São Carlos (Scalabrinianos), fundada na Itália em 1887, por Dom João Batista Scalabrini, então Bispo de Piacenza, atento à realidade daqueles que migravam para as Américas, e que iniciou trabalhos em São Paulo, ainda na década de 1890, com o Padre José Marchetti e sua irmã, Madre Assunta Marchetti, com a construção de orfanatos para filhos de imigrantes e de escravos abandonados. 

Padre Alfredo José Gonçalves, Scalabriniano, avalia que a fundação das congregações missionárias naquela época representou uma nova sensibilidade da Igreja para com a questão social: “Tais institutos tinham um caráter marcadamente apostólico, voltado para determinadas situações e/ou categorias que, de alguma forma, tinham sofrido as consequências deletérias e turbulentas da Revolução Industrial. Entre tais situações/categorias estão os jovens, as viúvas e órfãos, as mulheres prostituídas, os operários, os migrantes, e assim por diante. Não seria exagero afirmar que essas novas congregações, com seus fundadores, são precursoras remotas do Concílio Vaticano II, enquanto se abrem aos desafios do mundo moderno diante das ‘alegrias e esperanças, das tristezas e angústias dos homens de hoje’ (Gaudium et spes, 1)”. 

INSERÇÃO SOCIAL E TRABALHO 

Embora os estrangeiros tenham tido papel determinante para a identidade de São Paulo, alguns episódios atuais mostram que sua dignidade não é plenamente respeitada. No dia 8, por exemplo, uma mulher paraguaia, de 47 anos, que revende roupas, foi xingada e agredida no centro da capital, após ter sido acusada de furto em uma loja. Em sua testa, escreveram à caneta a palavra “ladra”, e alguns dos insultos a ela proferidos foram “volte para seu país” e “você não tem nenhum direito aqui no Brasil”. 

O antropólogo Thiago Haruo, pesquisador do Museu da Imigração, comentou à reportagem que desde o fim dos anos 1980 tem se verificado a intensificação da imigração de pessoas nascidas em países africanos e sul e centro-americanos, mas que estes não são tão bem recebidos onde chegam, por serem vistos mais como um problema social do que como uma mão de obra oportuna. 

Haruo explicou, ainda, que três tendências mundiais estão inter-relacionadas: a suposta “ilegalidade documental” desse imigrante, que faz com que os Estados dificultem cada vez mais o acesso à documentação que legalize sua situação; a securitização e maior controle das fronteiras, principalmente em países do Hemisfério Norte, principal destino migratório “de pessoas vindas das antigas colônias, mas também de países pobres”; e o maior registro de casos de racismo e xenofobia. 

O antropólogo observou, ainda, que, para os imigrantes com níveis mais altos de escolaridade e especialização, “a dificuldade financeira e o processo de revalidação de diploma aparecem muitas vezes como fatores desestabilizadores da busca por empregos em áreas correlacionadas”, mas que os governos, em parceria com organizações da sociedade, buscam viabilizar sua recolocação profissional. Entretanto, para a maioria dos estrangeiros que chega ao Brasil, as oportunidades de emprego ainda são limitadas, especialmente em razão do idioma e da dificuldade para regularizar a situação migratória, “condição fundamental para alcançar trabalhos dignos. A esses elementos, é necessário transversalizar ainda as dificuldades impostas pelos papéis de gênero no acesso às ofertas de trabalho e às dinâmicas raciais que geram discriminação e marginalização”. 

APOIO DA IGREJA 

A Igreja em São Paulo tem realizado ações com vistas à melhor acolhida de migrantes e refugiados e para que alcancem autonomia financeira. 

A Caritas Arquidiocesana de São Paulo (CASP), por exemplo, mantém o Serviço de Acolhida e Orientação para Refugiados, em convênio com o Acnur. Apenas em 2021 foram realizados 6,5 mil atendimentos. 

Quatro são os eixos de ação na CASP com os refugiados: assistência social (com encaminhamento para abrigos, concessão de uma pequena ajuda financeira, se necessário, ou entrega de itens para necessidades básicas); integração local (por meio de cursos profissionalizantes e de língua portuguesa e auxílio na emissão de documentos); proteção, apoio e orientação jurídica para a regularização migratória; e atenção à saúde mental. 

Também a Missão Paz, mantida pelos Scalabrinianos, atende anualmente pessoas de mais de 70 nacionalidades, com trabalhos de acolhida na Casa do Migrante, ações no Centro Pastoral e de Mediação dos Migrantes (com serviços de assistência documental e jurídica, inserção laboral, capacitação, saúde e serviço social) e no Centro de Estudos Migratórios, além de missas e sacramentos na Igreja Nossa Senhora da Paz, no Glicério. 

Nos últimos dez anos, a Missão Paz atendeu quase 100 mil pessoas, de 132  países. Padre Paolo Parise, Coordenador da Missão Paz, contou que durante a pandemia o número de mulheres que procuram os serviços da Missão Paz se tornou superior ao de homens. Os haitianos são os que mais buscam ajudas materiais, como cestas básicas. Já na Casa do Migrante, tem sido crescente a acolhida a afegãos, especialmente pelo fato de o Brasil lhes oferecer o visto de entrada. 

Uma das frentes da Missão Paz é intermediar o contato com empresas para a contração de imigrantes e refugiados. “A maioria dos que chegam do Afeganistão, por exemplo, é altamente qualificada, têm formação superior. Os casos mais recentes foram de uma anestesista, um arquiteto, duas dentistas, um engenheiro, professores de inglês. São pessoas qualificadas, para as quais são mais frequentes as oportunidades”, comentou. 

Para os que não têm qualificação, a Missão Paz oferece cursos de língua portuguesa e profissionalizantes, como o de culinária. 

Missão Paz

CAMINHOS PARA UMA ACOLHIDA AFETIVA 

Para Thiago Haruo, não se pode falar em acolhida efetiva aos imigrantes sem que lhes seja assegurado o direito “às devidas políticas de regularização, de saúde, de educação e de moradia, que respondam à realidade socioeconômica dessa população”, destacou. “Apesar de apresentar diversas questões e limitações, a memória da Hospedaria de Imigrantes [fechada em 1978] continua sendo uma importante referência para divisarmos o que foi e o que pode ser uma política migratória no Brasil”, concluiu. 

Padre Paolo aponta que, no geral, os imigrantes dizem ser bem acolhidos em São Paulo. Entretanto, os de origem africana e os haitianos relatam com frequência serem vítimas de situações de preconceito racial. Também há menções a episódios de islamofobia. “Os afegãos recorrentemente falam que ‘algumas pessoas acham que somos do Talibã, que nós somos terroristas’, olham a pertença religiosa como uma ameaça ao mundo cristão”, comentou o Padre Paolo. 

“Há ainda um preconceito mais amplo dos que falam que os imigrantes chegam ao Brasil para aumentar os problemas que aqui já ocorrem. Eles relatam ter ouvido ‘existe pouco emprego no Brasil e vocês vêm roubar nossos empregos’”, recordou. 

“Digo, porém, que em todos os lugares onde as empresas acolhem migrantes e refugiados, a economia cresce a curto e médio prazo, pois eles trazem novidades que ajudam o país a se renovar. Entretanto, acima de tudo, eles são seres humanos e nós, do ponto de vista cristão, enxergamos naquele que chega a presença do próprio Cristo, temos, assim, uma razão a mais para acolhê-los”, garante Padre Paolo. 

Padre Alfredo José Gonçalves considera que os imigrantes são profetas e protagonistas. “Como profetas, ao mesmo tempo em que denunciam suas condições precárias nos países de origem, anunciam a necessidade de mudanças urgentes, seja nos países de destino, seja nas relações sociais, políticas e econômicas internacionais. Como protagonistas, na exata medida em que se põem a caminho, fazem marchar a própria história da humanidade.” 

Nesse contexto, o Sacerdote lembrou que a Igreja tem a dupla missão de lhes dar vez e voz, bem como ceder espaços físicos e virtuais para que possam se organizar, resgatar seus valores e expressões culturais. 

“Cada pessoa, cultura, povo, por si só, já é portadora de sementes do Verbo ou da Boa-Nova de Jesus Cristo. Basta preparar o terreno para que possa se desenvolver e dar frutos”, concluiu Padre Alfredo. 

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