Cirurgias intrauterinas: a manutenção da vida mesmo antes do nascimento

Novas técnicas e procedimentos, desenvolvidos por médicos brasileiros, ajudam a salvar os bebês ainda no útero materno e garantem a qualidade de vida pós-parto

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Graças ao contínuo avanço tecnológico das últimas décadas, as mais diversas áreas do saber têm atingido um patamar de conquistas nunca visto até então. A Medicina, hoje, por exemplo, pode oferecer novas formas de tratamento, menos invasivas e mais seguras, que permitem não somente curar doenças, mas também salvar vidas, além de suprimir sequelas e garantir a qualidade de vida e o bem-estar dos pacientes.

Nesse contexto, a Medicina Fetal – uma subespecialidade da Ginecologia e da Obstetrícia, cujo objetivo é acompanhar o crescimento do feto e a gravidez inteira –, tem conseguido prevenir condições e doenças diversas, por meio de intervenções e procedimentos durante a gestação, e, assim, preservar a saúde do bebê e da mãe

“A Medicina Fetal tem, no máximo, 30 anos. É uma especialidade muito nova e as coisas que estão sendo feitas são verdadeiros milagres de Deus”, afirmou o doutor Antonio Rahme Amaro, médico e diretor do Grupo Santa Joana, que engloba os Hospitais e Maternidades Santa Joana, Pro Matre e Santa Maria, referência em neonatologia, gestações múltiplas e de alto risco, com sede em São Paulo.

CIRURGIAS INTRAUTERINAS

Bebês acometidos por más-formações podem ter graves sequelas de desenvolvimento e cognição, e até mesmo ir a óbito, elevando, assim, as taxas de mortalidade infantil. As mais recentes estatísticas revelam que 2% a 3% dos recém-nascidos são afetados por uma ou mais más-formações congênitas, as quais são responsáveis por 20% da mortalidade neonatal e 30% a 50% da mortalidade perinatal em países desenvolvidos.

São muitas as condições que requerem intervenções intrauterinas, entre as quais estão a transfusão feto-fetal (gestação caracterizada pela presença de gêmeos univitelinos que, por compartilharem uma única placenta, podem ter a circulação de sangue entre eles, pelos vasos placentários, de forma desequilibrada, o que, em 90% dos casos, acarreta a morte de um deles e gera danos neurológicos no que sobrevive), a hérnia diafragmática (um “buraco” no músculo entre o tórax e o abdômen, que impede o adequado desenvolvimento dos pulmões da criança) e a mielomeningocele fetal – esta última mais conhecida como espinha bífida aberta, é uma má-formação congênita da coluna vertebral da criança em que as meninges, a medula e as raízes nervosas do tubo neural estão expostas, podendo acarretar paralisia dos membros inferiores, restrições no desenvolvimento cognitivo-intelectual e severas disfunções intestinais, gênito-urinárias e ortopédicas.

Estima-se que, no Brasil, uma em cada mil crianças apresente essa anomalia.

“Quando a medula tem contato com o ar ambiente, se a camada que a reveste não estiver formada, ela sofre um processo de oxidação e a criança pode ficar paralítica, com retardo mental ou desenvolver hidrocefalia. A doença sempre existiu, porém não se sabia diagnosticá-la com precisão, qualificando-a somente por suas consequências e não pelas causas”, explicou Amaro.

PIONEIRISMO

O estudo da doença é, portanto, recente e seu diagnóstico foi concluído há cerca de 20 anos.

A primeira cirurgia intrauterina reparadora a céu aberto no Brasil (ou seja, quando o útero da mãe é aberto e o bebê é operado diretamente) foi feita no Hospital Santa Joana, em 2011, ou seja, há apenas dez anos, abrindo o horizonte ao pioneirismo da instituição e permitindo desde então um ganho considerável na perspectiva de cura e manutenção de qualidade de vida dos pacientes.

Arquivo pessoal

ESPERANÇA

Com 24 semanas, ou seja, seis meses de gestação, se for detectada qualquer anomalia por meio de um exame de ultrassom, o feto pode ser submetido a uma cirurgia intrauterina.

“Há 30 anos, não imaginávamos que isto seria possível: a mãe é anestesiada para que a medicação chegue até o bebê por meio do cordão umbilical e, assim, ele não sinta dor. O útero é então aberto, o líquido amniótico é retirado, e, após realizar a intervenção cirúrgica por meio de uma incisão de 3cm a 4cm, tudo é recomposto como nas condições originais para que a gestação prossiga normalmente. Como médicos, nós nos encantamos porque a ciência é realmente utilizada em prol do ser humano”, afirmou a médica Monica Maria Siaulys, professora e doutora pela Faculdade de Medicina da USP, médica anestesiologista e diretora médica do Grupo Santa Joana.

DIVULGAÇÃO

Nas regiões de periferia, por exemplo, em que o acesso à assistência médica é mais restrito, quando se consegue fazer o diagnóstico de alguma anomalia, muitas vezes o fim da história deixa de ser promissor pelo fato de a mãe achar que o seu bebê tem uma condição irreversível e será uma criança doente pelo resto da vida.

“As mulheres normalmente fazem o pré-natal e, nesses casos, o diagnóstico é muito fácil de ser concluído. Quando a mãe descobre uma má-formação, se não for bem orientada, ela se desespera e, por uma desinformação do profissional que a acompanha, acaba optando pelo aborto. A mãe dá a vida pelo filho e, assim, se for oferecida uma oportunidade a ela, a situação muda”, explicou Amaro.

Quando, ao contrário, não se tem o diagnóstico da anomalia, a criança nasce com uma série de deficiências, como incontinência fecal e urinária e hidrocefalia, necessitando do uso de cadeira de rodas, o que gera custos para o Estado e transtornos para a família.

Ambas as situações acima são contornáveis e é por essa razão que existe um grande interesse na divulgação da existência do tratamento, justamente porque o objetivo primário é salvar vidas e proporcionar o devido bem-estar a quem necessita.

EQUIPE

O médico Fábio Peralta, doutor em Medicina Obstétrica pela Faculdade de Medicina da USP, pós-doutor em Medicina Fetal no King’s College Hospital, da Universidade de Londres, no Reino Unido, e chefe do Departamento de Cirurgia e Medicina Fetal do Hospital e Maternidade Pro Matre, afirma que o trabalho com o foco no tratamento das anomalias e o consequente desenvolvimento das técnicas cirúrgicas intrauterinas somente é possível porque há uma equipe multidisciplinar que proporciona o suporte necessário, aliada a todo o instrumental de última geração que a instituição oferece.

“Sempre trabalhei com pesquisa e o trabalho tomou corpo quando tive a oportunidade de estudar na Europa, no início dos anos 2000. Participei do desenvolvimento de três técnicas diferentes para tratamento da mielomeningocele e uma da hérnia diafragmática e as pesquisas mostram que quanto mais cedo se trata a criança intrauterinamente, mais chances de cura e menos sequelas ela tem, uma vez que se consegue proteger o cérebro de possíveis danos com mais antecedência”, conclui.

PARCERIAS

Por meio de uma iniciativa filantrópica e com o objetivo de salvar vidas e manter a qualidade de vida dos pacientes, o Hospital e Maternidade Santa Joana firmou um convênio tanto com a Prefeitura quanto com o governo do Estado para disseminar a técnica das cirurgias intrauterinas na rede pública de atendimento hospitalar.

Assim, uma equipe médica e os respectivos equipamentos e instrumentais foram enviados (estes últimos, também doados) para o Hospital Municipal de Vila Nova Cachoeirinha, na zona Noroeste, que já realizou três cirurgias com a nova técnica, e para o Hospital Mandaqui, na zona Norte, com duas cirurgias realizadas, a fim de proporcionar o acesso ao conhecimento científico, que estava muito concentrado e não viabilizava, na prática, a implantação, num futuro próximo, de Centros de Medicinal Fetal nesses hospitais.

“O propósito, portanto, é dotar a rede pública de espaços que sirvam de referência para essa prática cirúrgica ultracomplexa. A etapa de capacitação de profissionais já foi feita, tanto pelo doutor Antônio Moron quanto pelo doutor Fábio Peralta, que treinaram as equipes dos hospitais públicos e as supervisionam. Como o tratamento é complexo, pensou- -se, de fato, em oferecer uma tutoria e, assim, propagar o conhecimento que salva vidas”, concluiu Amaro.

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