Crisleine Yamaji: ’Guerra, conflito e divisão não são de Deus’

Crisleine Yamaji (3a à dir.) em foto com membros da Comunidade Sant’Egidio de Nápoles, durante o Encontro Internacional de Oração pela Paz

Representantes de diferentes religiões e personalidades da sociedade civil e da política estiveram em Roma, de 23 a 25 de outubro, para o Encontro Internacional de Oração pela Paz, organizado pela Comunidade Sant’Egidio. 

Um dos momentos marcantes foi no Coliseu, em Roma, quando o Papa fez uma oração conjunta pela paz com outros líderes religiosos. 

Crisleine Yamaji, que integra a Comu-nidade Sant’Egidio, participou deste encontro. Ao O SÃO PAULO, a advogada e professora universitária detalha os principais assuntos refletidos e lembra que diante dos muitos cenários de conflitos mundiais são indispensáveis a “compaixão, criatividade, fraternidade social e oração, incansável oração a Deus”. 

O SÃO PAULO – Quando teve início este encontro internacional de oração? 

Crisleine Yamaji – Em outubro de 1986, o Papa João Paulo II convocou uma Jornada Mundial de Oração pela Paz, em Assis, convidando representantes de todas as religiões mundiais a se reunirem para um apelo comum e fraterno de paz no mundo. Ele, um visionário da paz, nos convidou a viver a mensagem de paz no espírito de Assis e, desde então, a Comunidade Sant’Egidio assumiu com o Papa o compromisso de repetir anualmente esse encontro de diálogo inter-religioso e de oração incansável pela paz. Conheci a Comunidade Sant’Egidio em Roma, em 2012. Participei, desde então, de cinco encontros de oração pela paz – em Assis e em Roma, na Itália; em Sarajevo, na Bósnia; em Tirana, na Albânia; e em Münster, na Alemanha, para um testemunho desse diálogo de paz e comunhão entre os povos. 

Fale-nos um pouco sobre o carisma da Comunidade Sant’Egidio? 

Sant’Egidio é um movimento que nasceu em 1968, em Roma. Está presente em mais de 70 países, com forte atuação nas periferias. O Papa Francisco resume o carisma de Sant’Egidio com os 3 P: preghiera (oração), poveri (pobres) e pace (paz): uma oração em comunidade sempre ancorada na Palavra de Deus, que deve ser o guia norteador da comunidade cristã; uma atuação aos pobres que são irmãos, cujo encontro leva ao próprio Cristo; e uma consciência de paz e um diálogo pela paz, em todos os níveis, inclusive, de forma in- ter-religiosa, algo primordial para a defesa dos mais pobres. 

“O grito de paz: religiões e culturas em diálogo” foi o tema escolhido para a 36º edição do encontro. A partir desta temática, quais foram as reflexões centrais? 

O grito de paz é necessário quando a paz é gravemente violada. É proposto em um momento em que estamos prestes a um agravamento do cenário de guerra na Europa, com riscos de uma guerra nuclear, a 3º guerra mundial. Representa, como disse o Papa, um grito de angústia de filhos frágeis que somos de Nosso Senhor; representa a invocação que nasce no coração das mães para proteger seus filhos, dos refugiados de guerra que perdem suas casas e suas vidas em uma guerra que massacra e humilha. Reforça algo que une as religiões, pois a paz está no cerne de todas as religiões. 

O Papa também se posicionou contra a retórica e a defesa das armas e pelo mal da indiferença, algo que nasce antes da guerra e conduz à situação de conflito, ressentimento, prevalência de forças do mal. E demonstrou enorme preocupação com uma nova situação de guerra atômica, com armas nucleares que continuaram a ser produzidas e servem de ameaça no uso da força, mesmo após Hiroshima e Nagasaki. 

O grito de paz nasce, portanto, em um contexto que o Papa qualificou como sombrio; expressa nossa dor, nosso medo e nosso horror à guerra, mãe de todas as pobrezas (expressão do Professor Andrea Riccardi – fundador da Comunidade Sant’Egidio –retoma- da pelo Papa). 

Entre as reflexões centrais, houve não só o reforço do papel da Palavra de Deus em novos sonhos e visões de um mundo de paz, mas, também, a chamada pela responsabilidade dos países que detêm as armas e as forças para desencadear e manter o mundo em guerra. O Arcebispo de Bolonha e presidente da Conferência Episcopal Italiana (CEI), Cardeal Matteo Zuppi, em diversos momentos, clamou por uma sociedade que se empenhe na aplicação da encíclica Fratelli tutti, do Papa Francisco, com sua proposta corajosa de fraternidade e amizade social. 

No primeiro dia de atividades, o senhor Andrea Riccardi disse que o evento deveria ser visto como uma nova abertura “para enfrentar os novos cenários do mundo” diante da guerra. Quais são estes novos cenários e as formas para enfrentá-los? 

Os novos cenários do mundo são cenários de conflito que surgem a cada dia e que não se resumem somente ao ataque de um Estado soberano contra o outro, mas são fundamentados no ódio, na divisão, na indiferença e na pobreza que nascem dentro dos nossos próprios Estados. Estão por toda parte. Nascem da falta de dignidade humana, da indiferença, do esgotamento dos recursos naturais, do ressentimento, do ódio e de questões meramente econômicas. Enfrentam-se esses cenários com compaixão, criatividade, fraternidade social e oração, incansável oração a Deus. 

Para a senhora, o que representou aquele momento de oração do Papa e outros líderes religiosos no Coliseu? 

Representou a esperança de paz, e tanta comoção em ver nosso Papa como mensageiro de paz, capaz de tocar o coração de tantos representantes de todas as religiões do mundo, humanistas, políticos, leigos e religiosos, com seu jeito humilde e acessível, aberto ao diálogo, à compreensão do outro, ao bem comum. O Papa reforçou a necessidade do espírito de fraternidade que inspirou São João Paulo II. 

Qual papel as religiões têm no mundo de hoje para a promoção da paz? 

Quando cada religião compreende seu papel na defesa da paz, que é Santa, começa a atuar para que a paz seja um imperativo no dia a dia e se torna religião de encontro e de diálogo, de busca de compreensão do outro em uma sociedade em que parece prevalecer a divisão e o conflito. Esse é o espírito de Assis que prevalece em detrimento de qualquer qualificação religiosa e leva a um ecumenismo em prol da paz e do bem comum. 

O Papa, citando a Fratelli tutti, disse que a guerra “é um fracasso da política e da humanidade”. Como é possível reverter este fracasso? 

Antes de tudo, por meio do diálogo e da compreensão do outro. Em seguida, com a compaixão por quem sofre, não importando de qual religião, escolha política ou nacionalidade se trate. E na convicção de que guerra, conflito e divisão não são de Deus. Como disse o Papa, nenhuma guerra é santa. 

No Brasil, há um acirramento das polarizações em decorrência do atual momento político. Concluídas as eleições, como o ‘Grito pela paz’ que ecoa de Roma pode ajudar a pacificar os ânimos em nosso País? 

O Papa tem sido claro ao dizer que a polarização e a divisão não são de Deus, mas do diabo. Igreja é comunhão, aceitação do outro. Temos liberdade de defender o candidato com projeto político que melhor se adapte à nossa história de vida, aos nossos valores e às nossas convicções, mas, na discordância, temos que respeitar as diferenças e estar unidos como Igreja. 

De um lado e de outro, vimos pessoas se posicionando como únicos entendedores da Verdade, como os bons e verdadeiros cristãos. Tem havido muito uso do nome de Deus em vão. A Igreja deve se posicionar pela vida, pela dignidade, pela paz social e não é, como diz o Papa, nem de direita, nem de esquerda. É Igreja de Cristo, o mesmo que deixou claro não vir para combater o reino dos romanos e dos césares; o Reino de Deus é outro, reino de amor, compreensão e unidade. 

Nos últimos anos, vivemos em clima de ódio e de conflito no nosso País, com uma defesa armamentista inaceitável na construção da paz. Apesar de não estarmos imersos em uma guerra e não sentirmos diretamente seus efeitos, como no caso da Europa, vivemos em tensão na sociedade brasileira. E essa tensão e esse conflito que permeia nosso dia a dia, esse medo do outro, também são uma afronta à paz. 

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