Dom Cláudio testemunhou o amor a Cristo nas diferentes realidades

Reportagem especial do O SÃO PAULO apresenta a biografia e os feitos do episcopado do Cardeal Hummes

Fotos: Arquivo O SÃO PAULO (de Luciney Martins e Douglas Mansour)

“Devemos ser fiéis para dar respostas pastorais adequadas… Primordialmente, isso significa acentuar a evangelização, conduzir o povo de Deus à adesão a Jesus e à Igreja. Uma vez feita essa adesão, vem a prática do amor aos mais sofridos, como consequência do que Jesus nos pede. Não dá para separar uma coisa da outra, mas a missão da Igreja é despertar a religiosidade do povo e como consequência ou quase simultaneamente vem a solidariedade aos pobres. A solidariedade cristã é uma consequência da adesão a Jesus”.

A resposta dada por Dom Cláudio Hummes em entrevista ao O SÃO PAULO, em abril de 1998, às vésperas de assumir a Arquidiocese de São Paulo como seu 6o Arcebispo, bem expressa o que foi sua vida como frade franciscano, bispo de grandes cidades e cardeal da Igreja: o pastor que testemunhou o amor de Cristo nas diferentes realidades humanas e difundiu o ideal da fraternidade cristã, fiel ao seu lema episcopal: “Vós sois todos irmãos”.

Nos textos e imagens a seguir, apresentamos passagens da biografia e do pastoreio de Dom Cláudio Hummes, que faleceu na segunda-feira, 4, aos 87 anos.

UMA VOCAÇÃO INSPIRADA EM SÃO FRANCISCO DE ASSIS

Aury Afonso Hummes – nome de registro de Dom Cláudio – nasceu em 8 de agosto de 1934, no atual território da cidade de Salvador do Sul (RS), à época pertencente ao município gaúcho de Montenegro.

Ele se encantou pela vida franciscana ainda na adolescência. “Um dia passou por lá [no bairro onde morava] um franciscano, Frei Olímpio Reichert. Ninguém jamais tinha visto um franciscano na região e ele foi à minha escola. Era um homem de fala muito agradável, e perguntou quem queria ser padre”, recordou Dom Cláudio em entrevista ao site IHU on-line, em 2016.

“Fazendo um exame de consciência para entender por que será que me encantei com aquele Franciscano, eu me lembrei de uma capela que havia numa comunidade ali perto, em Linha Bonita. Era uma capela de Santo Antônio, e sempre gostei muito daquela imagem de Santo Antônio que havia lá. Era um olhar muito vivo, e existe essa imagem até hoje. Penso que aquilo deve ter funcionado como uma certa identificação na minha cabeça, daquele Franciscano e aquela imagem de Santo Antônio”, disse na mesma entrevista.

O jovem Aury, então, ingressou na Escola Paroquial Santo André, no Seminário São Francisco, em Taquari (RS). Oito anos depois, começou o noviciado e, ao completar 18 anos, em 1952, iniciou uma nova etapa na formação, ainda com a dor da perda da mãe, que falecera um ano antes.

Também no Rio Grande do Sul, na cidade de Garibaldi, formou-se em Filosofia pelo Convento Boaventura, em 1954. Em Divinópolis (MG), em 1958, concluiu o curso de Teologia. Em agosto do mesmo ano, ordenou-se sacerdote pela Ordem Franciscana dos Frades Menores.

Enviado a Roma, em 1962, então com 28 anos de idade, obteve o título de Doutor em Filosofia, pela Pontifícia Universidade Antonianum. Quando retornou ao Brasil, passou a ensinar Filosofia na Paróquia do Distrito de Daltro Filho, no município de Garibaldi (RS).

JUNTO COM OS TRABALHADORES EM SANTO ANDRÉ

Foto: Memorial da Democracia

Frei Cláudio Hummes foi nomeado por São Paulo VI, em março de 1975, como Bispo Coadjutor da Diocese de Santo André (SP), sendo ordenado em maio do mesmo ano, em Porto Alegre (RS), por Dom Aloísio Lorscheider, e meses depois, em dezembro, foi empossado como Bispo daquela diocese paulista.

Em Santo André, onde permaneceu por 21 anos, Dom Cláudio Hummes acompanhou de perto a pujança do movimento operário no Brasil, incluindo a histórica greve geral dos metalúrgicos do ABC no fim da década de 1970. O Bispo, muitas vezes, abriu as portas da Catedral Metropolitana para assembleias e presidiu missas com a participação dos grevistas. “Embora os militares proibissem manifestações públicas nas praças, nós abrimos as igrejas para hospedar as assembleias dos grevistas. Foi uma decisão sábia. Assim, foram evitadas desordens e mortes nas ruas”, comentou, em 2009, em uma entrevista à jornalista Pina Baglioni.

Ao comemorar os 40 anos de sua ordenação sacerdotal, em maio de 2015, o Cardeal Hummes presidiu uma missa em ação de graças na Catedral Nossa Senhora do Carmo, em Santo André.  “Descobri que aqui era uma grande diocese de trabalhadores que lutavam pelos seus direitos, mas sempre com métodos pacíficos”, recordou na ocasião. “Vocês me ensinaram a ser Bispo”, enfatizou.  

RÁPIDA E INTENSA PASSAGEM NA ARQUIDIOCESE DE FORTALEZA

Em maio de 1996, Dom Cláudio foi nomeado Arcebispo de Fortaleza (CE) por São João Paulo II, permanecendo nesta Arquidiocese por 21 meses, até abril de 1998, período em que estimulou um intenso trabalho com as famílias, especialmente as mais pobres e endividadas, no contexto da preparação do 2º Encontro Mundial das Famílias, com São João Paulo II, e do Congresso Teológico Pastoral sobre a Família, em outubro de 1997, ambos no Rio de Janeiro, uma vez que era responsável pelo Setor Família da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e um dos articuladores do encontro com o Papa.

Em 24 de agosto de 1997, Dom Cláudio liderou o simbólico abraço na Catedral Metropolitana de Fortaleza, com a participação de cerca de 10 mil pessoas, a fim de divulgar uma campanha de arrecadação para construir a torre repetidora do sinal da Rede Vida de Televisão na capital cearense.

Em 1998, o Arcebispo também aprovou o reconhecimento canônico em âmbito diocesano dos estatutos da Comunidade Shalom, à época uma associação de fiéis. “Para mim, foi uma bela surpresa, porque era uma organização de leigos – embora tenha também sacerdotes – fundada por leigos e que tinha uma presença muito forte também na cidade de Fortaleza. Eles eram capazes de mover a cidade em termos de agilização, de celebração”, recordou o Cardeal Hummes, em entrevista ao Vatican News, em 2012.

EM SÃO PAULO, DIANTE DOS DESAFIOS DA GRANDE METRÓPOLE

Nomeado Arcebispo de São Paulo em 15 de abril de 1998, Dom Cláudio Hummes tomou posse da maior Arquidiocese do País em 23 de maio do mesmo ano, em missa solene na Catedral da Sé. Na homilia, afirmou que a evangelização da cidade era seu principal projeto. Também defendeu o diálogo e falou da importância da ação dos padres, seminaristas, religiosos e leigos. Disse ainda que assumiria um compromisso para atenuar os problemas da “pobreza das periferias e do desemprego” na cidade.

E, de fato, Dom Cláudio preocupou-se com a condição de vida das pessoas mais pobres, fazendo com que a Arquidiocese apoiasse projetos de emprego e geração de renda, além de ter realizado o “Seminário da Caridade”, a partir de 2001, para mapear todas as ações caritativas que a Igreja em São Paulo realizava naquele momento.

Naquele mesmo ano, foi feito cardeal da Igreja por São João Paulo II. Em 2005, participou do conclave que elegeu como pontífice o Cardeal Joseph Ratzinger, Papa Bento XVI; e em 2013, do conclave em que foi eleito pontífice o Cardeal Jorge Mario Bergoglio, Papa Francisco.

Foto: Vatican Media

Dom Cláudio também não mediu esforços para a evangelização, o que envolveu melhorias na formação contínua do clero, com os cursos anuais de atualização teológica e pastoral; a criação do Centro Vocacional Arquidiocesano e da Escola Diaconal São José, ambos no ano 2000; a reestruturação dos seminários; e o convite ao clero e a todo o povo de Deus para a saída missionária nas diferentes realidades.

Em 2001, o Cardeal Hummes promoveu o Ano Vocacional na Arquidiocese, que buscou despertar muitas vocações para a vida consagrada e o sacerdócio. Em junho de 2005, inaugurou as instalações do Seminário de Teologia Bom Pastor, menos de um ano após ter sido lançada a pedra fundamental dessa casa de formação no bairro do Ipiranga. “Nos seminários, devemos sublinhar a questão da espiritualidade. Esta casa deverá ser sempre uma escola e uma comunidade de vida”, comentou na ocasião.

Sua preocupação com a formação dos futuros padres e diáconos e com a atualização permanente do clero foi manifestada em muitos momentos, como neste artigo para a seção “Encontro com o Pastor”, do jornal O SÃO PAULO, de 1o de agosto de 2006, em que enfatizou que a boa formação dos presbíteros é “uma tarefa, ou melhor, um ministério pastoral central na vida da Igreja, pois dos pastores depende, em grande parte, o presente e o futuro da Igreja. Bons e santos pastores, missionários e dedicados ao povo, em especial aos pobres, são uma bênção e trarão muitos frutos, segundo o coração de Deus”.

Em âmbito administrativo, elaborou o Estatuto Civil da Arquidiocese; profissionalizou e modernizou a administração das finanças da Igreja em São Paulo; instituiu a partilha mensal das paróquias para ajudar na manutenção dos seminários e das pastorais arquidiocesanas; elaborou um novo plano de manutenção financeira da Arquidiocese; conduziu o restauro da Catedral da Sé, entre 1999 e 2002; reequilibrou as finanças da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP); e concretizou a reinauguração da rádio 9 de Julho, em outubro de 1999, concluindo um processo que fora iniciado por seu antecessor, o Cardeal Paulo Evaristo Arns.

Dom Cláudio foi nomeado pelo Papa Bento XVI como Prefeito da Congregação para o Clero, em outubro de 2006. Antes, porém, já mantinha constantes diálogos com o Pontífice por causa dos preparativos para V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e Caribenho, que ocorreria em Aparecida, em maio de 2007, e pediu ao Santo Padre que nesta vinda ao Brasil também passasse pela capital paulista. “O Papa havia comunicado que não visitaria nenhuma cidade a não ser Aparecida. Naquela época, eu era o Arcebispo de São Paulo e escrevi uma carta a ele ponderando o quanto seria importante que viesse a São Paulo […] Pedi para que ele canonizasse Frei Galvão aqui em São Paulo, Frei Galvão o primeiro Santo nascido no Brasil. E o Papa aceitou e veio”, contou o Cardeal Hummes em entrevista ao O SÃO PAULO, em março de 2013.

Dom Cláudio Hummes despediu-se da Arquidiocese de São Paulo em missa na Catedral da Sé, em 26 de novembro de 2006.

“Agradeço a todo o povo de São Paulo, de modo muito especial aos católicos das nossas comunidades. Quero agradecer o carinho, a acolhida fraterna com que sempre fui recebido. Vocês me ajudaram a construir uma comunhão eclesial muito bonita. Agradeço aos padres, de coração. Nós fomos, juntos, um corpo de pastores fiéis, a quem foi confiada esta Igreja, e este corpo fez, de fato, um trabalho admirável”, disse em entrevista ao semanário arquidiocesano.  

RESPONSÁVEL POR 400 MIL SACERDOTES

Como Prefeito da Congregação para o Clero, de 2006 a 2010, no Vaticano, o Cardeal Hummes foi responsável por mais de 400 mil sacerdotes espalhados pelos cinco continentes, um trabalho que cumpriu com dedicação, solicitude e obediência ao Santo Padre.

Na função, teve que enfrentar questões difíceis, como os casos de pedofilia e o abandono do sacerdócio por uma parcela dos presbíteros.

Em 2008, na carta escrita por ocasião do Dia Mundial de Oração pela Santificação dos Sacerdotes, Dom Cláudio falou aos clérigos sobre a necessidade de “recordar a prioridade da oração em relação à ação, porque dela depende a incisividade da ação”, e alertou sobre o perigo do ativismo e da secularização: “Não nos cansemos de haurir da Sua Misericórdia, de deixa-lo ver e curar as nossas chagas dolorosas do nosso pecado para ficarmos estupefatos diante do milagre, sempre novo, da nossa humanidade redimida […] Esta consciência da relação com Ele é cotidianamente submetida à purificação da prova. Todos os dias, de novo, nos apercebemos que este drama não é poupado nem sequer a nós, ministros que agem in Persona Christi Capitis: não podemos viver, um só momento na Sua presença, sem o doce anseio por reconhecê-Lo, conhecê-Lo e aderir de novo a Ele. Não cedamos à tentação de olhar para o nosso ser sacerdotes como para um inevitável e indelegável peso, já assumido, o qual se pode cumprir ‘mecanicamente’, até com um programa pastoral organizado e coerente. O Sacerdócio é a vocação, o caminho, o modo por meio do qual Cristo nos salva, com o qual nos chamou, e nos chama agora, a viver com Ele”.

Também como Prefeito da Congregação para o Clero, Dom Cláudio contribuiu para a aprovação do Acordo Brasil – Santa Sé, em 2008, trabalhou em prol da canonização do Apóstolo do Brasil, Beato José de Anchieta (algo que seria efetivado em 2014), e se empenhou na organização e realização do Ano Sacerdotal 2009-2010.

O OLHAR VOLTADO PARA A AMAZÔNIA

Após renunciar à Congregação para o Clero por ter alcançado os 75 anos de idade, Dom Cláudio Hummes retornou ao Brasil e aceitou, em 2011, o convite da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil para presidir a Comissão Episcopal para a Amazônia.

Em 2014, ajudou a criar a Rede Eclesial Pan-Amazônica (Repam), da qual foi o primeiro Presidente. Em 2019, foi Relator-geral do Sínodo para a Amazônia e, de julho de 2020 a março de 2022, presidiu a Conferência Eclesial da Amazônia (Ceama).

Falando na COP21, a cúpula internacional sobre o clima, em dezembro de 2015, Dom Cláudio fez enfática defesa do modo de vida dos indígenas: “É preciso defendê-los, defender seus direitos, dar-lhes de novo a possibilidade de serem os protagonistas de sua história, os sujeitos de sua história. Deles foi tirado tudo: a identidade, a terra, as línguas, sua cultura, sua história, tudo”.

Em uma entrevista concedida ao site da Repam, às vésperas do Sínodo de 2019, comentou que “a Amazônia está passando por um momento em que está se definindo seu futuro. O Papa Francisco veio com a Laudato si’, que ajudou o mundo, mas sobretudo a nós, cristãos, a pensar mais concretamente sobre o sentido da Amazônia, sua missão, sua vocação, não só como Igreja, senão, também, como região, como área socioambiental”.

Ao assumir a Presidência da Ceama, Dom Cláudio manifestou seu amor pela Amazônia: “É difícil expressar em palavras os sentimentos pela Amazônia. Agradeço muito todo o carinho e creio que podemos continuar a nos dedicar totalmente a essa vocação que o Papa nos confirmou: trabalhar para a evangelização na Amazônia”.

Em junho de 2021, após Dom Cláudio Hummes ter recebido o título de Doutor Honoris Causa da Universidade Nacional de Rosário (UNR), da Argentina, o Papa Francisco escreveu-lhe, agradecendo-lhe pelo “exemplo que me deu durante a sua vida”, recordando duas frases que ficaram na história, pronunciadas pouco depois de ter sido eleito Papa, quando lhe disse, “é assim que o Espírito Santo age”, e, juntamente com isso, “não se esqueça dos pobres”. O Pontífice enfatizou que Dom Cláudio está entre aqueles “líderes que têm a coragem de abrir trilhas, caminhos e de provocar sonhos; a coragem de continuar sempre olhando o horizonte sobre os problemas e dificuldades do caminho”.

Foto: Vatican Media
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CILTO JOSE ROSEMBACH
CILTO JOSE ROSEMBACH
1 ano atrás

Uma bela caminhada pastoral. Esteve na cúpula da igreja deu valiosas contribuições conforme o relato da sua história, mas também se fez sentir nas bases preocupado com o povo mais pobre. Obrigado Dom Cláudio, que a tua história inspire muitos outros.

Márcia M B Pelloso
Márcia M B Pelloso
1 ano atrás

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Artigo: Evangelização e Comunicação
22. Viver como convém a santos.