Dom Georg: Bento XVI viveu amando o Senhor até o fim

Entrevista nos estúdios do Vatican News com o secretário do Papa emérito que faleceu dia 31 de dezembro: a comovedora recordação das suas últimas horas e dos muitos anos passados a seu lado.

@FrancoPiroli/Vatican Media

Cansado, emocionado, mas ao mesmo tempo em paz. O arcebispo Georg Gänswein, prefeito da Casa Pontifícia e secretário particular, primeiro do cardeal Joseph Ratzinger e depois do Papa Bento XVI, veio aos estúdios da Rádio Vaticano – Vatican News na manhã desta quarta-feira (04). Em uma entrevista narra os últimos momentos da vida terrena do homem que de 2005 a 2013 serviu à Igreja como Bispo de Roma e depois fez uma escolha histórica com sua demissão do papado há quase dez anos.

Milhares de fiéis prestaram homenagem aos restos mortais do Papa Emérito. O senhor passou grande parte da sua vida ao seu lado, como vive este momento?

Humanamente, muito sofredor. Me faz mal, sofro muito… Espiritualmente, muito bem. Eu sei que o Papa Bento agora se encontra aonde queria ir.

Com qual espírito Bento XVI viveu estes últimos dias? Quais foram suas últimas palavras?

Eu não ouvi suas últimas palavras com meus próprios ouvidos, mas na noite anterior à sua morte, um dos enfermeiros da noite as ouviu. Por volta das três horas ele disse: “Senhor, eu te amo”. O enfermeiro me disse isso pela manhã logo que entrei no quarto, estas foram as suas últimas palavras realmente compreensíveis. Normalmente, rezávamos as laudes ao lado de sua cama: também naquela manhã, eu disse ao Santo Padre: “Vamos fazer como ontem: eu rezo em voz alta e o senhor se une espiritualmente”. Com efeito, ele não tinha mais condições de rezar em voz alta, estava realmente fatigado. Naquele momento ele apenas abriu um pouco os olhos – tinha entendido a pergunta – e acenou com a cabeça sim. Então, eu comecei. Por volta das 8 horas, ele começou a respirar cada vez com mais dificuldade. Havia dois médicos no quarto – o dr. Polisca e um reanimador – e me disseram: “Tememos que esteja chegando o momento dele enfrentar a sua última luta terrena”. Chamei as consagradas “Memores” e também a irmã Brígida, disse-lhes para virem porque ele estava em agonia. Naquele momento, ele estava lúcido. Eu havia preparado com antecedência as orações de acompanhamento para o moribundo, e rezamos por cerca de 15 minutos, todos juntos, enquanto Bento XVI respirava cada vez com mais dificuldade, víamos que ele quase não conseguia respirar bem. Então olhei para um dos médicos e perguntei: “Mas, ele está em agonia?” Ele me respondeu: “Sim, já começou, mas não sabemos quanto tempo dura”.

E o que aconteceu depois?

Estávamos lá, todos rezavam em silêncio, e às 9h34 da manhã ele deu seu último suspiro. Então continuamos as orações não mais pelos moribundos, mas pelos mortos. E concluímos cantando “Alma Redemptoris Mater”. Faleceu na oitava de Natal, seu tempo litúrgico preferido, no dia de um de seus antecessores – São Silvestre, Papa sob o Imperador Constantino. Ele foi eleito na data em que se comemora a memória de um Papa alemão, São Leão IX, da Alsácia; e morreu no dia de um Papa romano, São Silvestre. Eu disse a todos: “Vou ligar para o Papa Francisco, é o primeiro que deve saber”. Eu o chamei, e ele disse: “Estou indo agora!”. Quando chegou, eu o acompanhei até o quarto onde ele morreu e disse a todos: “Fiquem”. O Papa saudou, eu lhe ofereci uma cadeira, ele se sentou ao lado da cama e rezou. Deu a bênção e depois se despediu. Isto aconteceu no dia 31 de dezembro de 2022.

Quais palavras de seu testamento espiritual lhe tocaram mais?

O testamento como tal me tocou muito. Devo dizer que é difícil escolher algumas palavras. Mas este testamento foi escrito em 29 de agosto de 2006: a festa litúrgica do martírio de São João Batista. Está escrito à mão, com letras pequenas, mas legível, no segundo ano de seu pontificado. Em alemão se diz “O-Ton Benedikt”, que significa “este é de fato Bento”. Se eu tivesse um texto como tal, sem conhecer o autor, eu o teria reconhecido. Dentro está o espírito de Bento. Lendo-o ou meditando sobre ele, percebe-se que é seu. Ele está todo dentro destas duas páginas.

Em síntese é um agradecimento a Deus e à família …

Sim. É um agradecimento, mas é também um encorajamento aos fiéis, a não se deixarem enganar por nenhuma hipótese, seja no campo teológico ou filosófico ou em qualquer outro. No final, é a Igreja que comunica, é a Igreja, o Corpo de Cristo que vive, que comunica a fé a todos e para todos. Às vezes, mesmo na teologia, se há teorias muito iluminadas, ou teorias que parecem ser assim, pode ser que depois de um ou dois anos elas já tenham passado. É a fé da Igreja Católica, é isto que verdadeiramente nos leva à libertação e nos coloca em contato com o Senhor.

Qual é a mensagem mais forte de seu pontificado?

Sua força está no lema que escolheu quando se tornou arcebispo de Munique, citando a terceira carta de João: ‘cooperatores veritatis’, ou seja, ‘cooperadores da verdade’, o que significa que a verdade não é algo pensado, mas é uma pessoa: é o Filho de Deus. Deus se encarnou em Jesus Cristo, em Jesus de Nazaré, e esta é a sua mensagem: não seguir uma teoria sobre a verdade, mas seguir o Senhor. “Eu sou o caminho, a verdade e a vida”. Esta é a sua mensagem. Uma mensagem que não é um fardo: ao contrário, é uma ajuda para carregar todos os fardos de cada dia, e isto dá alegria. Os problemas existem, mas quanto mais forte é a fé, a fé deve ter a última palavra.

O mundo jamais esquecerá o 11 de fevereiro de 2013, o anúncio da renúncia. Há aqueles que continuam a dizer que não foi uma escolha livre ou até mesmo que ele de alguma forma quisesse permanecer Papa. O que o senhor acha?

Esta mesma pergunta, eu mesmo lhe fiz em diferentes situações dizendo: “Santo Padre, estão procurando uma dietrologia sobre o anúncio de 11 de fevereiro depois do consistório. Buscam, buscam, buscam…”. Bento respondeu: ‘Aqueles que não acreditam que o que eu disse é o verdadeiro motivo da renúncia não acreditarão em mim mesmo que eu diga agora ‘Acredite, é assim! Esta é e continua sendo a única razão e não devemos esquecê-la. Ele tinha me pré-anunciado esta decisão: “Eu devo fazê-lo”. Eu estava entre os primeiros que tentaram dissuadi-lo. E ele me respondeu com clareza: ‘Olhe, não estou pedindo sua opinião, mas estou comunicando minha decisão’. Rezada, sofrida, tomada coram Deo“. Há aqueles que não acreditam ou fazem teorias, dizendo que “deixaria uma parte mas manteria outra parte”, etc.: todos aqueles que dizem isso apenas fazem teorias sobre uma palavra ou outra e no final não confiam em Bento, no que ele disse. Isto é realmente uma afronta contra ele. É claro que cada um tem sua própria vontade, sua própria liberdade, e pode dizer coisas que fazem sentido ou que fazem menos sentido. Mas a verdade nua e crua é esta: ele não tinha mais forças para liderar a Igreja, como ele disse em latim naquele dia. Eu perguntei: “Santo Padre, por que em latim”? Ele respondeu: “Esta é a língua da Igreja”. Aqueles que pensam que podem ou devem encontrar algum outro motivo estão errados. Ele comunicou o verdadeiro motivo. Amém.

Qual aspecto o impressionou mais ao estar perto de Bento durante o longo período como emérito?

São quase dez anos. Bento – já como cardeal, já como professor – tinha um grande dom. Muitos dizem humildade: sim, isto é verdade, mas também – isto talvez não fosse tão aparente – uma capacidade de aceitar quando as pessoas discordavam do que ele dizia. Como professor, isto é normal: há o confronto, o discurso, a “luta” entre os diversos argumentos. Neste contexto, usam-se também palavras fortes, mas sem nunca machucar e, se possível, sem fazer polêmica. Outra coisa é quando se é bispo e depois Papa: prega e escreve não como uma pessoa privada, mas como alguém que recebeu o mandato de pregar e ser o pastor de um rebanho. O Papa é a primeira testemunha do Evangelho, da verdade do Senhor. E ali vimos que suas palavras, as palavras do Sucessor de Pedro, não foram aceitas. Mas isto nos diz que a liderança da Igreja não se faz apenas comandando, decidindo, mas também sofrendo, e esta parte do sofrimento não foi pouca. Quando ele se tornou emérito, certamente toda a responsabilidade e todo o pontificado tinham terminado para ele. 

Ele pensou que viveria tanto tempo depois de sua renúncia?

Há cerca de três meses eu lhe disse: “Santo Padre, estamos nos aproximando do meu décimo aniversário de episcopado: Epifania 2013, Epifania 2023. Devemos festejar. Mas isso também significa dez anos desde sua renúncia. Algumas pessoas me dizem: ‘Mas ele renunciou dizendo que não tem mais forças e depois ainda vive por dez anos? E ele respondeu: “Devo dizer que sou o primeiro a ficar surpreso de que o Senhor me deu mais tempo”. Eu pensei um ano, no máximo, e Ele me deu dez! E 95 é uma boa idade, mas os anos e a velhice também têm seu peso, mesmo para um Papa emérito”.  Dizia ainda: “Aceitei e tentei fazer o que havia prometido: rezar, estar presente e sobretudo acompanhar meu sucessor com a oração”. E isto é muito bonito. Também recomendo a alguns que têm problemas com isso que releiam o que Bento XVI disse, agradecendo ao Papa Francisco na Sala Clementina no 65º aniversário de sua ordenação sacerdotal. Enfim, eu disse uma vez em tom de brincadeira, de uma maneira não muito elegante: ‘Santo Padre, o senhor fez as contas sem o anfitrião’… Ele respondeu: ‘Eu não fiz nenhuma conta: eu aceitei o que o Senhor me deu’. Ele me deu isto, devo agradecer a Ele. Esta é a minha convicção. Outros podem ter outras ideias, teorias ou convicções, mas esta é a minha”.

Qual foi a maior lição para sua vida e o que mais sentirá falta de Joseph Ratzinger?

O maior ensinamento é que a fé escrita, a fé falada e proclamada não é apenas algo que ele disse e pregou, mas algo que ele viveu. Ou seja, o exemplo para mim é que a fé aprendida, ensinada e proclamada tornou-se a fé vivida. E isto para mim – mesmo neste momento em que estou sofrendo, não sozinho – é um grande alívio espiritual.

Em seu testamento Bento escreveu: “Se nesta hora tardia de minha vida eu olho para trás aos decênios que vivi, antes de mais nada vejo quantas razões eu tenho que agradecer”. Ele era um homem feliz e realizado?

Ele era um homem profundamente convicto de que no amor do Senhor nunca se erra, mesmo que humanamente se cometam muitos erros. E esta convicção lhe deu paz e – pode-se dizer – esta humildade e também esta clareza. Ele costumava dizer: “A fé deve ser uma fé simples, não simplista, mas simples”. Porque todas as grandes teorias, todas as grandes teologias se baseiam no fundamento da fé. E isto é e continua sendo o único alimento para si mesmo e também para os outros”.

Obrigado por ter estado conosco.

Sou eu quem lhes agradeço por este convite: vim com alegria e sei bem que o Papa Bento XVI se sentia muito apoiado e também – se posso dizê-lo – amado, amado pelo que vocês fizeram, e também cercado pelo afeto de vocês. 

Fonte: Vatican News

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Antonio Carlos Nunes
Antonio Carlos Nunes
1 ano atrás

Uma excelente entrevista de quem sofreu junto com o Papa emérito Bento XVI.