Em Assis, jovens compartilham sonhos e realizações da ‘Economia de Francisco’

Participantes da mobilização internacional motivada pelo Papa se reuniram presencialmente para pensar práticas econômicas que estejam centradas na dignidade humana

Vatican Media

Repensar o modelo econômico global. Este foi o chamado do Papa Francisco aos jovens de todo o mundo em maio de 2019, em um processo que o Pontífice nomeou de “Economia de Francisco” (Economy of Francesco – EoF) – nome alusivo a São Francisco de Assis, que viveu de modo coerente o Evangelho nas dimensões social e econômica. 

O ponto alto dessa iniciativa seria um encontro presencial, na cidade de Assis, na Itália, em março de 2020, mas que precisou ser adiado em razão da pandemia. Mais de dois anos depois do previsto, cerca de mil pessoas, de 120 países, a maioria jovens economistas, empresários e atores sociais, reuniram-se na cidade italiana, entre os dias 22 e 24, para partilhar experiências já consolidadas e projetos com vistas a novos modelos econômicos em que a dignidade do ser humano seja sempre a meta principal. 

Desde 2020, eles têm participado de encontros on-line nas 12 “aldeias” – grupos temáticos – da “Economia de Francisco”: “Trabalho e cuidado”; “Gestão e doação”; “Finanças e humanidade”; “Agricultura e justiça”; “Energia e pobreza”; “Vocação e lucro”; “Políticas para a felicidade”; “CO2 da desigualdade”; “Negócios e Paz”; “Economia é mulher”; “Empresas em transição”; e “Vida e estilos de vida”. 

Nesses três dias em Assis, eles consolidaram as reflexões tratadas nas vilas, dialogaram com especialistas a respeito de questões econômicas e outros desafios contemporâneos, revisitaram os passos de São Francisco de Assis e externaram seus sentimentos a respeito do planeta em que vivem e daquele que querem deixar às futuras gerações. 

“O mundo vai em uma direção completamente diferente da nossa, pois, enquanto o mundo se fecha e se assusta, os jovens querem um mundo de encontros, de abraços, de universalidade e em que se construam pontes, não muros”, disse Luigino Bruni, membro do comitê organizador e diretor científico do encontro internacional, ao saudar os participantes. 

“Jovem, te apoiamos nesta missão e estamos aqui para escutar ideias, soluções e propostas para um mundo melhor”, destacou a Irmã Alessandra Smerilli, secretária do Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral. 

POR UMA ECONOMIA DE PAZ E AMIGA DA TERRA 

No sábado, 24, os jovens tiveram o aguardado encontro com o Papa Francisco, durante o qual assinaram com o Pontífice o “Pacto pela Economia”. 

Antes, o Santo Padre falou-lhes sobre a urgência de se construir “uma nova economia, que, inspirada em Francisco de Assis, hoje pode e deve ser uma economia amiga da terra e uma economia de paz. Trata-se de transformar uma economia que mata em uma economia da vida, em todas as suas dimensões”. 

Para tal, exortou o Papa, é preciso que os jovens sejam criativos e mantenham o otimismo ao longo desse processo, com especial atenção para a questão ambiental: “É este o tempo de uma nova coragem para abandonar as fontes fósseis de energia, de acelerar o desenvolvimento de fontes com impacto zero ou positivo”. 

O Santo Padre lembrou, ainda, que não se conseguirá salvar o planeta se os modelos econômicos ignorarem as pessoas que mais sofrem: “O grito da terra e o grito dos pobres é o mesmo. A poluição que mata não é somente aquela provocada pelo dióxido de carbono, mas também a desigualdade polui o nosso planeta. As calamidades ambientais não podem cancelar as calamidades da injustiça social e da injustiça política”, afirmou, destacando que na “Economia de Francisco”, os pobres devem sempre ser colocados como prioridade. 

O Pontífice também alertou para o risco futuro de uma humanidade que não se abre à vida: “O resultado é o inverno demográfico, pelo qual se prefere ter relações afetivas com cães e gatos. E as mulheres são as primeiras a serem punidas por terem que optar entre filhos e carreira. O consumismo atual procura preencher o vazio das relações humanas com mercadorias sempre mais sofisticadas, as solidões são um negócio do nosso tempo!”. 

Por fim, o Papa deixou três indicações para que os jovens continuem no percurso da “Economia de Francisco”: olhar o mundo com os olhos dos mais pobres; investir para criar trabalho digno para todos; e se esforçar para que todas as ideias se transformem em ação. 

O ‘Pacto pela Economia’ do Papa Francisco com os jovens 

Ao final do encontro da “Economia de Francisco”, o Santo Padre e os mais de mil participantes, de 120 países, entre os quais jovens economistas, empreendedores, agentes de transformação social, assinaram o chamado “Pacto pela Economia”, no qual se comprometem, individual e coletivamente, com uma economia que se torne “uma economia do Evangelho”. Os signatários enfatizam: “Nós cremos nesta economia. Não é uma utopia, porque já a estamos construindo”. 

ELES PACTUARAM A BUSCA DE UMA ECONOMIA: 
  • De paz, não de guerra;
  • Que se oponha à proliferação de armas, especialmente as mais destrutivas;
  • Que cuide da Criação e não faça mau uso dela;
  • Em que o cuidado substitua o descarte e a indiferença;
  • Que esteja a serviço da pessoa humana, da família e da vida, respeitosa com cada mulher, homem, criança, ancião e, especialmente, com os mais frágeis e vulneráveis;
  • Que não deixe ninguém para trás e que esteja voltada a construir uma sociedade em que as pedras descartadas pela mentalidade dominante se convertam em pedras angulares; 
  • Que reconheça e proteja o trabalho digno e seguro para todos; 
  • Em que a finança seja amiga e aliada da economia real e do trabalho, e não contra eles; 
  • Que saiba valorizar e preservar as culturas e as tradições dos povos, todas as espécies viventes e os recursos naturais da Terra; 
  • Que combata a miséria em todas as suas formas, reduza as desigualdades e possa dizer com Jesus e com Francisco: “Bem-aventurados os pobres”; 
  • Que seja guiada pela ética da pessoa e aberta à transcendência;
  • E que crie riqueza para todos, que gere alegria e não só bem-estar, porque uma felicidade que não é compartilhada é incompleta. 

Os profetas da mudança em diferentes partes do mundo 

Modelos econômicos mais justos, humanos, a serviço das pessoas e do meio ambiente, como se propõe na “Economia de Francisco”, já são realidade em muitos locais, a partir de iniciativas lideradas pelos jovens. 

Alguns desses projetos foram relatados ao Papa Francisco no sábado, 24, em Assis. Henri Totin, diretor executivo de uma ONG em Benin, no continente africano, comentou que, motivado pela “Economia de Francisco”, desenvolveu uma ação pela qual transformou uma erva daninha da flora local em fertilizante, fibras e biogás: “Promovemos o empreendedorismo verde, que limita as emissões de gases de efeito estufa, minimiza a poluição e dinamiza a economia local”. 

Facundo Pascutto, jornalista argentino e mestre em Segurança Internacional e Não Proliferação de Armas de Destruição, falou sobre o projeto “100 Assis”, que vem sendo disseminado por um grupo de assessores financeiros para repensar a economia, por meio de um amplo diálogo com diferentes atores sociais, como sindicatos, associações de bairro e universidades, cooperativas e unidades prisionais. 

Recém-formado em Economia e Estatística, o queniano Samuel Lekado, do povo Maasai, tem atuado para melhorar as perspectivas econômicas de sua comunidade: “Eu cuido de um grupo de 20 crianças que foram resgatadas do analfabetismo e enviadas para a escola. Aumentamos a conscientização sobre as questões ambientais e de saúde. Também mudamos a maneira de se praticar a pastorícia, para que pastores que antes dependiam apenas das vacas e das estações do ano, agora tenham alternativas na agricultura sustentável”. 

O polonês Mateusz Ciasnocha compartilhou a experiência das “Fazendas de Francisco”, que aliam agricultura e justiça social, com amplo engajamento dos jovens para a proteção dos biomas locais, algumas delas instaladas em cinco vilarejos na Nigéria. “Nós, jovens da ‘Economia de Francisco’, somos os profetas da mudança. Sabemos que é de suma importância aumentar o número de pessoas de espírito crítico, a fim de mudar os nossos sistemas alimentares, desenvolvendo uma economia fraterna”, destacou. 

A jovem economista italiana Serena Ionata testemunhou que, após ler a encíclica Laudato si’ (2015) e a carta do Papa aos jovens, em 2019, se sentiu impelida a prosseguir nos estudos da economia voltados ao bem comum: “Que não nos conformemos com o que reunimos até agora, mas que joguemos nossas redes no mar do novo, pois, apesar de ainda estarmos no meio de muitas tempestades, não estamos sozinhos”. 

NOVOS RUMOS DE VIDA 

A tailandesa Lily Ralyn Satidtanasarn, de 14 anos, ativista ambiental, disse ter encontrado na “Economia de Francisco” uma oportunidade para ressoar a sua luta contra a poluição gerada pelo lixo plástico, tendo obtido uma grande vitória: em 2020, uma lei nacional passou a proibir o uso indiscriminado de sacolas plásticas em 70 redes varejistas da Tailândia. 

Zavarona, uma professora afegã de 20 anos de idade e ativista de direitos humanos, obteve apoio dos participantes da “Economia de Francisco” para deixar seu país, após o Talibã retomar o controle do Afeganistão e cercear a liberdade das mulheres. Ela e o esposo estão refugiados na Itália. 

Preso há nove anos, o jovem Andrea trabalha na cooperativa agrícola de uma unidade prisional. A partir das reflexões da “Economia de Francisco”, tem aprofundado o entendimento de que o trabalho é capaz de restaurar a dignidade humana. “Todo ser humano tem um grande potencial que precisa ser descoberto. As pessoas que saem das prisões devem ser transformadas de um item de custo em um recurso para a sociedade”, enfatizou. 

As percepções de 4 brasileiros 

Dos mais de mil jovens participantes do encontro internacional da “Economia de Francisco”, em Assis, cerca de cem eram brasileiros. 

Alan Faria Andrade Silva, advogado e doutorando em Direito pela PUC-SP, contou que foi fundamental ter esse contato presencial com os demais jovens e conhecer projetos que já estão sendo realizados em diferentes partes do mundo. 

Ao comentar o trecho do “Pacto pela Economia”, em que há o compromisso de se buscar uma economia “em que o cuidado substitui o descarte e a indiferença”, o advogado avaliou que isso só será possível com o verdadeiro acolhimento e diálogo às demais pessoas, como foi visto em Assis, quando “os jovens acolheram as propostas de outros jovens – economistas, empresários, ativistas sociais atuantes na ‘Economia de Francisco’, atores importantes nessa mudança que se quer fazer”. 

Integrante da Articulação Brasileira pela Economia de Francisco e Clara, Peterson Prates, morador da zona Leste de São Paulo, analisou ao O SÃO PAULO que o chamado do Papa aos jovens é para uma mudança efetiva, “de uma economia que mata, para uma economia que gera a vida; de uma economia que exclui, para uma economia que inclui; de uma economia que destrói, para uma economia que constrói novos laços e redes de fraternidade”. 

Sobre o “combate à miséria em todas a suas formas”, que consta no Pacto, Prates avaliou que isso requer que todos tenham consciência de que vivem no mesmo planeta, a casa comum; além da construção de políticas públicas de acesso à renda e de centralidade do trabalho, bem como do uso comunitário da terra. “Assim, conseguiremos construir uma nova consciência a partir do que São Francisco nos apresenta como pobreza, ou seja, uma vida do essencial, uma vida austera.” 

Criadores do projeto “Educação Financeira para a Vida” (EFV), gestado ao longo do processo da “Economia de Francisco” (EoF), o casal Augusto Luís Pinheiro Martins e Ana Carolina Fernandes Alves esteve em Assis. 

“A percepção da realidade econômica por parte da maioria dos jovens que participaram do encontro foi de que o atual sistema econômico gera desigualdades, injustiças, explorações e morte”, afirmaram a mestra em Economia e o filósofo, teólogo e pós-graduado em Análise Comportamental e Clínica, destacando, ainda, que muitos dos jovens já se empenham em seus territórios para que haja um olhar prioritário aos excluídos e abandonados, e que “trabalham arduamente por coisas novas, uma economia diferente, com alma, solidária, fraterna e justa, na qual a dignidade humana é colocada no centro juntamente com a vocação originária da humanidade de cuidar de toda a criação (ecologia integral)”. 

Ao comentar o trecho do Pacto a respeito de “uma economia que cria riqueza para todos, que gera alegria e não só bem-estar”, o casal pondera para que todos possam desfrutar da riqueza comum, dos bens universais, “é necessário distribuição, partilha, justiça social, políticas públicas e, principalmente, uma educação que forme para a cultura e a mística do Bem Comum, em que tudo está interligado, os problemas e as soluções. A consciência nítida de que somos todos irmãos e irmãs, da mesma família humana, tem suas consequências práticas no campo socioeconômico e ambiental, pois sem assumirmos o compromisso e a responsabilidade do cuidado mútuo, continuaremos a explorar uns aos outros e a todas as criaturas. E, por fim, para que isso aconteça, precisamos incluir os pobres no centro”. 

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