Em busca de si e de Deus, uma reflexão sobre o filme ‘Stalker’

Stalker, de A. Tarkovsky (1932- 1986), lançado em 1979, é considerado um dos melhores filmes de todos os tempos. É uma obra difícil, iconográfica, com imagens com uma força incrível, para serem contempladas. Nos grandes trabalhos artísticos, às vezes nem o próprio artista tem consciência plena do que nasceu de sua sensibilidade, e colhe dos que contemplam a obra, detalhes e significados que ele mesmo não tinha percebido. Stalker é assim. Há uma multiplicidade de significados que não cansamos de penetrar. É um filme “aberto” e não “de-terminado”. Trata da busca de si e de Deus. Uma busca que se realiza em duas etapas: a luta contra nossos inimigos externos; e a batalha, ainda maior, contra nossos inimigos internos. O trajeto exige um guia. Não se consegue percorrê-lo sozinho. Eis, então, o Stalker: uma figura cristológica evidente. Um homem que vive para ajudar as pessoas que lhe vêm ao encontro a alcançar os seus desejos. 

Stalker com o professor
Fotos: Reprodução de cenas do filme Stalker

O itinerário é difícil e poucos querem percorrê-lo. Quem decide se arriscar? Aqueles que perderam a esperança neles próprios, na sua capacidade de conquistar algo que tanto almejaram. São dois os que vêm procurar o Stalker: um professor e um poeta. Os dois têm algo em comum: o professor esperava ganhar o Prêmio Nobel e o poeta não conseguia mais escrever. O caminho exige atravessar uma região controlada pelo exército que conduz a uma “Zona”. Como se formou essa Zona? Ninguém sabe exatamente. Diz-se que foi por um meteorito que caiu, mas a história parece malcontada. O fato é que quem se aventurar lá, desavisado ou despreparado, é facilmente morto. Algumas pessoas, porém, conseguem ir até lá, e esses são os Stalker. São pessoas que foram muitas vezes presas ou morreram depois de voltar da Zona. 

O próprio Stalker do filme foi preso. No centro da Zona, há uma “morada”, e quem consegue entrar obtém a satisfação do seu desejo mais profundo. Mas, cuidado: não o que você acha que é certo desejar, mas o desejo real, aquele que você carrega no mais profundo de si e que determina a sua vida e o seu agir. Não se pode enganar a Zona. 

O filme começa mostrando a família do Stalker, que alude ao primeiro casal quando se vê uma maçã mordida sobre o criado-mudo. Eles têm uma filha paralítica. A mulher vive uma grande revolta pela escolha do marido e briga com ele por causa disso. Mas, para ele, ajudar os outros a realizarem seus desejos é o sentido da sua vida. Na primeira parte do caminho, é ele quem vai na frente, explicando o que é preciso fazer para se livrar dos obstáculos e do exército. O mundo em volta deles é inóspito, a paisagem descolorida, em preto e branco. Stalker conhece bem os esconderijos e os conduz, dirigindo um carro e depois uma pequena carroça ferroviária. Depois de se desviarem de muitas balas, chegam à Zona. Ali o ambiente se transforma completamente, tudo é calmo e colorido. Há, porém, coisas estranhas e um silêncio profundo. Vê-se destroços deixados aqui e ali por visitantes precedentes, frustrados em suas tentativas de atravessar a Zona. Há ruínas de histórias passadas e interrompidas. Quando Stalker vê a paisagem, seu espírito se acalma. Parece estar em casa, ser esse o seu lugar. A mudança radical de atmosfera traz uma outra surpresa. O ambiente não é mais físico, determinado pela dimensão espaço-temporal, mas como que interno, interior – estamos no mundo psíquico, onde a realidade externa expressa a realidade interna de cada um deles. Não há mais separação entre “fora e dentro”. 

Na antessala da morada

Agora, não é mais Stalker quem conduz, mas segue-os. Ele segue o caminho que o professor e o poeta escolhem percorrer. E aqui se descobre a mensagem mais impressionante do filme: a supremacia da liberdade humana diante de Deus. O amor de Deus se traduz em acompanhar-nos, ajudar-nos a seguir o caminho que a nossa liberdade decidiu tomar. O caminho que decidimos empreender com aquilo que a vida nos ofereceu. Como explica bem Isaías (30,21): Ouvirás com teus ouvidos estas palavras retumbarem atrás de ti: “É aqui o caminho, andai por ele”, quando te desviares quer para a direita, quer para a esquerda. Percorrem o caminho jogando porcas de metal amarradas em um pedaço de tecido. Descobre-se que houve um outro Stalker, apelidado de porco-espinho. Ele tinha ido à Zona para pedir por seu irmão que foi morto por culpa sua para ser trazido de volta à vida. Quando porco-espinho volta para casa, descobre que tinha se tornado muito rico. A Zona havia concedido o que em realidade era o seu verdadeiro desejo. Desgostoso, porco-espinho se enforca… 

Enquanto caminham, o jogo da liberdade torna-se evidente. O poeta, impaciente, decide fazer seu próprio caminho. Até que a Zona o impede. Descobre-se que a Zona muda de acordo com o estado da mente de cada um e põe armadilhas novas. Perguntam ao Stalker quem sobrevive? Ele diz: ‘Os miseráveis. Mesmo assim nem todos, mas aqueles que, com humildade, seguem o caminho indicado e, sobretudo, respeitam a Zona’. Progressivamente, a conversa entre o poeta e o professor vai se tornando mais dramática, começam a acusar um ao outro eviscerando sarcasticamente as ilusões, a inconsistência das coisas a que antes se apegavam, a hipocrisia e o ridículo que, no fundo, é o afano da vida. Lembra de novo Isaías (30,22): Acharás imundo o revestimento de prata de teus ídolos esculpi- dos e as aplicações de ouro de tuas estátuas fundidas: tu os arrojarás como imundícies, gritando-lhes: “Fora daqui!”. 

‘Não lhe perdoarei’ diz o poeta…

A estrada se torna terrível. Mesmo assim, para a surpresa de Stalker, chegam à casa onde está a morada. A verdadeira intenção de cada um e o que carregavam no coração se escancara… Tudo aparece. Cada um decide não entrar na morada. A missão fracassou… O ambiente todo embrutecido com vidros quebrados por todo lado revela o espírito interior. Todos os três sentam no chão afadigados e um silêncio, como a voz de uma brisa suave (assim Deus se mostra ao profeta Elias), impõe-se. De repente, no vácuo diante deles, começa uma chuva torrencial. Tem-se a nítida sensação de que lhes é dito: ‘Vocês escolheram não ir até o fim, não arriscar e não chegar à realização plena dos seus desejos. Assim seja! Eu os perdoo e não os abandonarei’. Quando voltam, três cenas mostram um abraço cheio de ternura para aquele que se dedicou a ajudar os outros a serem felizes. 

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