Francisco sabe que a África não é esquecida, é explorada – e pede paz

Vatican Media

Não dá para dizer que a região centro-leste da África, onde estão localizados a República Democrática do Congo (RDC) e o Sudão do Sul, seja ignorada pelo mundo. Pelo contrário, é uma zona explorada por séculos de colonização ocidental e que, nas últimas quatro décadas, vive uma nova forma de colonização – aquela em que grupos de poder político e econômico, nacionais e internacionais, disputam entre si o controle e a influência, somando-se a conflitos étnicos históricos e a lutas armadas entre governos e milícias.

Estamos falando de dois países muito sofridos a quem o Papa Francisco se apresentou como “peregrino de paz e reconciliação” em sua viagem recente. A paz foi aclamada por ele, politicamente, com denúncias de dois tipos: primeiro, ao dizer “Tirem as mãos da África”, quando visitou a RDC, o Papa Francisco fez um alerta às potências internacionais – hoje, a região tem grande influência dos países europeus, assim como Estados Unidos, China e Rússia.

A intenção era dizer algo como “nós sabemos o que vocês fazem por aqui”. E o que se vê não é bonito. Francisco vem denunciando o comércio global de armas, que alimenta guerras intermináveis em países africanos, além de fome, miséria e subdesenvolvimento. A morte de jovens e crianças deixa esses países sem esperança de futuro. A eles, pediu que “não se desencorajem”, e continuem buscando uma vida de honestidade, vinculados à comunidade.

Francisco também critica a exploração sem limites dos recursos naturais da África – a RDC é particularmente rica nesse sentido –, especialmente minérios e petróleo. “Parem de a sufocar, porque a África não é uma mina a ser explorada ou uma terra a ser saqueada”, disse em Kinshasa.

Perdoar e ser perdoado

A guerra leva milhões de pessoas a migrar dentro do continente africano. A República Democrática do Congo é, em grande parte, formada por refugiados dos genocídios de Ruanda e Burundi, na década de 1990. E o Sudão do Sul vive hoje uma das maiores crises migratórias do mundo – a maior da África –, com milhões de pessoas desalojadas. Por isso, o Papa declarou que “não dá mais para esperar” para conquistar a paz, pois há jovens demais crescendo em campos de refugiados. É preciso pacificar.

A segunda denúncia, portanto, é a de tipo local, humano e individual. O Papa Francisco pediu que as pessoas se perdoem. A paz é impossível sem reconciliação, e não há paz sem perdão, disse ele. É preciso que os líderes de diferentes etnias se unam, cheguem a acordos e levem seus povos a se respeitar. O Santo Padre defendeu que as mulheres sejam protegidas e respeitadas, porque são “a chave para transformar um país”.

Vale lembrar que, em 2019, Francisco convidou líderes políticos do Sudão do Sul para um retiro no Vaticano. Em uma das imagens mais fortes de seu pontificado, ele se ajoelhou para beijar os pés de cada um deles, implorando pelo perdão e pela paz. Quatro anos depois, o país continua preso em complexos conflitos entre povos, grupos paramilitares e soldados. À época, o Papa disse a eles que poderiam discordar entre si, mas sempre em privado. “Diante do seu povo apareçam sempre apertando as mãos”, afirmou. E isso não tem acontecido.

Fontes de paz

O mundo sabe o que acontece por ali. A dor da África não é uma tragédia, é provocada. Como líder religioso, no entanto, a mensagem do Papa é claramente carregada dos valores do Evangelho, que o inspira. Na missa em Kinshasa, o Pontífice recordou que Cristo saudou seus discípulos dizendo: “A paz esteja convosco” (Jo 20,19). A paz de Cristo, “entregue em nós em cada missa”, deve ser distribuída ao mundo.

Os cristãos, como Cristo, devem ser “fontes de paz” e “consciência de paz”, disse ele. “Diante das misérias de quem o negou e abandonou, Cristo mostra as feridas e abre a fonte de misericórdia”, declarou.

Da mesma forma, no Sudão do Sul, país mais novo do mundo e que nunca teve em sua história um só instante de paz, ele viajou junto com outros dois líderes cristãos: o arcebispo de Cantuária, Justin Welby, principal líder religioso da Igreja Anglicana, e o moderador da Igreja Escocesa, de tradição presbiteriana, o Reverendo Iain Greenshields.

Tanto a RDC como o Sudão do Sul têm mais da metade da população cristã, o que significa que as guerras – orientadas por critérios não religiosos – colocam os irmãos na fé uns contra os outros. Diante dessa dor, que tem causas, mas cuja solução é difícil, o Papa rezou, na oração ecumênica realizada em Juba. E pontuou que qualquer ação ou iniciativa pela paz deve ser acompanhada da oração partilhada, pois ela nos lembra que “somos uma só família humana”.

É preciso rezar “para que o Senhor da paz intervenha onde os seres humanos não conseguem construí-la”. Para isso, “é preciso uma oração de intercessão tenaz, constante”, comentou o Papa Francisco.

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Destaques da viagem do Papa à RD Congo e ao Sudão do Sul

POR DANIEL GOMES

CHEGADA À RD CONGO – 31/01
“Largamente saqueado, este país não consegue se beneficiar suficientemente dos seus recursos imensos: chegou-se ao paradoxo de os frutos da sua terra o tornarem ‘estrangeiro’ para os próprios habitantes. O veneno da ganância tornou os seus diamantes ensanguentados […] Tirem as mãos da República Democrática do Congo, tirem as mãos da África!”

No discurso, o Papa criticou a exploração das riquezas da África pelas grandes potências, enquanto a população vive em condições paupérrimas.

MISSA PELA PAZ E JUSTIÇA – 01/02
“[…] nós que pertencemos a Jesus, não podemos deixar prevalecer em nós a tristeza, não podemos permitir que se insinuem resignação e fatalismo. Se ao nosso redor se respira este clima, que não seja por nossa causa: num mundo desanimado com a violência e a guerra, os cristãos fazem como Jesus […] somos chamados a assumir e proclamar ao mundo este inesperado e profético anúncio de paz.”

Na missa realizada no Aeroporto de N’dolo, em Kinshasa, o Papa indicou que o perdão, a vida comunitária e a missão são as três nascentes para a paz.

COM AS VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA NA RD CONGO – 01/02
“As vossas lágrimas são as minhas, a vossa dor é a minha dor. A cada família enlutada ou desalojada por causa de aldeias incendiadas e outros crimes de guerra, aos sobreviventes das violências sexuais, a cada criança e adulto ferido, digo: estou convosco, quero trazer-vos a carícia de Deus […] É, sobretudo, a guerra desencadeada por uma insaciável ganância de matérias-primas e de dinheiro que alimenta uma economia de guerra que exige instabilidade e corrupção.”

Na sede da Nunciatura Apostólica, o Papa ouviu os relatos de familiares e de sobreviventes de conflitos na porção Leste do país.

ENCONTRO COM JOVENS E CATEQUISTAS – 02/02
“Tu [jovem] és uma riqueza única, irrepetível e incomparável. Ninguém, na história, pode substituir-te. Pergunta-te, então: ‘Para que servem estas minhas mãos? Para construir ou destruir, dar ou reter, amar ou odiar?’ Vê! Podes apertar a mão e fechá-la, torna-se um punho; ou podes abri-la e colocá-la à disposição de Deus e dos outros. Jovem que sonhas com um futuro diferente, é das tuas mãos que nasce o amanhã; das tuas mãos, pode vir a paz que falta a este país.”

Neste discurso no Estádio dos Mártires, em Kinshasa, o Papa fez uma analogia dos cinco dedos das mãos com os cinco “ingredientes” para um futuro melhor: oração, vida comunitária, honestidade, perdão e o serviço ao próximo.

ORAÇÃO COM SACERDOTES, DIÁCONOS E CONSAGRADOS – 02/02
“Deus abre caminhos nos nossos desertos e nós, ministros ordenados e pessoas consagradas, somos chamados a ser sinal desta promessa e realizá-la na história do Povo santo de Deus. Mas, em concreto, a que é que somos chamados? A servir o povo como testemunhas do amor de Deus. […] por vosso intermédio, também hoje o Senhor quer ungir o seu povo com o óleo da consolação e da esperança.”

Neste encontro, na Catedral de Nossa Senhora do Congo, em Kinshasa, o Papa alertou os consagrados e ministros ordenados de três tentações a serem vencidas: a mediocridade espiritual, a comodidade mundana e a superficialidade na formação.

ENCONTRO COM OS BISPOS DA RD CONGO – 03/03
“Amados irmãos bispos, partilhei convosco o que sentia no coração: cultivar a proximidade com o Senhor para ser sinais proféticos da sua compaixão pelo povo. Peço-vos para não transcurardes o diálogo com Deus e não deixardes que o fogo da profecia se apague por cálculos ou posições ambíguas com o poder, nem por uma vida cômoda e rotineira. À vista do povo que sofre e da injustiça, o Evangelho pede que levantemos a voz.” 

Este encontro na sede da conferência episcopal foi o último compromisso do Papa no país.

SAUDAÇÃO AO CHEGAR NO SUDÃO DO SUL – 03/02
“Empreendemos esta peregrinação ecumênica de paz depois de ter escutado o clamor de um povo inteiro que, com grande dignidade, chora pela violência que padece, pela perene falta de segurança, pela pobreza que o aflige e pelos desastres naturais que assolam. […] Que não seja em vão este sofrimento extenuante; que a paciência e os sacrifícios do povo sul-sudanês, desta gente jovem, humilde e corajosa, interpelem a todos e, como sementes que, enterradas, dão vida à planta, vejam desabrochar rebentos de paz que produzam fruto.”

No discurso no Palácio Presidencial, o Papa destacou que peregrinava ao país na companhia do Arcebispo de Cantuária, Justin Welby, principal líder religioso da Igreja Anglicana, e do moderador da assembleia geral da Igreja da Escócia, de tradição presbiterana, o Reverendo Ian Greenshields.

ENCONTRO COM BISPOS, SACERDOTES, DIÁCONOS E CONSAGRADOS – 04/02
“Esta deve ser a especialidade dos pastores: caminhar no meio… no meio das tribulações e no meio das lágrimas, no meio da fome de Deus e da sede de amor aos irmãos e irmãs. […] Quero repetir aquela importante palavra: juntos. Não a esqueçamos: juntos. Bispos e padres, padres e diáconos, pastores e seminaristas, ministros ordenados e religiosos (nutrindo sempre respeito pela maravilhosa especificidade da vida religiosa): procuremos entre nós vencer a tentação do individualismo, dos interesses parciais.”

No discurso na Catedral da Santa Teresa, o Papa recorreu à história de Moisés e exortou que os ministros ordenados e os consagrados se inspirem na docilidade do profeta à iniciativa de Deus e em sua intercessão em favor do povo.

ENCONTRO COM DESLOCADOS INTERNOS – 04/02
“Um número enorme de crianças nascidas nos últimos anos só conheceu a realidade dos campos de desalojados, esquecendo-se do ambiente de casa, perdendo a ligação com a própria terra de origem, com as raízes, com as tradições. O futuro não pode ser nos campos de desalojados […] É preciso assumir o risco estupendo de conhecer e acolher quem é diferente, para encontrar a beleza de uma fraternidade reconciliada e experimentar a aventura inestimável de construir livremente o próprio futuro juntamente com o da comunidade inteira. E é absolutamente necessário evitar a marginalização de grupos e o levantamento de guetos dos seres humanos.”

No discurso, realizado no Freedom Hall, em Juba, o Papa destacou o papel-chave das mulheres para transformar o país.

ORAÇÃO ECUMÊNICA NO MAUSOLÉU JOHN GARANG – 04/02
“É maravilhoso que, no meio de tanto conflito, a pertença cristã nunca tenha desagregado a população, mas foi, e é ainda, fator de unidade. A herança ecumênica do Sudão do Sul é um tesouro precioso, um louvor ao nome de Jesus, um ato de amor à Igreja sua esposa, um exemplo universal para o caminho de unidade dos cristãos. É uma herança que deve ser guardada com o mesmo espírito: que as divisões eclesiais dos séculos passados não se repercutam sobre quem é evangelizado, mas possa a sementeira do Evangelho contribuir para gerar maior unidade; que o tribalismo e o faciosismo que alimentam as violências no país não afetem as relações interconfessionais; pelo contrário, derrame-se sobre o povo o testemunho de unidade dos crentes.”

Neste discurso, proferido após a oração feita com Justin Welby e o Reverendo Ian Greenshields, o Papa exortou que juntos se trabalhe por uma paz que integre diversidades, que difunda o estilo de não violência de Jesus e que permita caminhar com passos concretos de unidade e caridade.

MISSA NO MAUSOLÉU – 05/02
“Em nome de Jesus, das suas Bem-aventuranças, deponhamos as armas do ódio e da vingança para embraçar a oração e a caridade; superemos as antipatias e aversões que, com o passar do tempo, se tornaram crônicas e correm o risco de levar à contraposição de tribos e de etnias; aprendamos a colocar nas feridas o sal do perdão, que arde, mas cura. E, mesmo que o coração sangre pelas injustiças sofridas, renunciemos de uma vez por todas a responder ao mal com o mal, e sentir-nos-emos bem cá dentro; acolhamo-nos e amemo-nos sincera e generosamente como Deus faz conosco.”

Na homilia da missa, o Pontífice se deteve ao Evangelho do 5o Domingo do Tempo Comum – “Vós sois o sal da terra. (…) Vós sois a luz do mundo” (Mt 5, 13-14). Ao fim da missa, exortou que os sul-sudaneses jamais percam a esperança em dias melhores nem as oportunidades para a construção da paz.

O CONTEXTO VIVIDO PELOS PAÍSES VISITADOS

RD Congo: O segundo maior país do continente africano é independente desde 1960, mas ainda hoje sofre com o legado da era colonial, sendo visto como um local de exploração de riquezas naturais e minerais, altamente valorizadas no mercado internacional. O controle dos locais onde estão tais recursos, em especial na porção Leste do país, é a principal causa dos crimes contra a população civil. 

Sudão do Sul: É o país mais jovem do mundo, independente desde 2011. É um dos mais pobres também: 2/3 da população vive algum nível de insegurança alimentar. A guerra civil e os confrontos de diferentes etnias já resultaram em 400 mil mortos nos últimos seis anos. As mudanças climáticas têm colaborado para elevar o nível de miséria. O número de deslocados internos chega a 4 milhões de pessoas. 

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