Oração Universal: Para que os governantes assegurem o bem comum, a paz e a liberdade

Luciney Martins /O SÃO PAULO

Proferida em quase todas as missas, a oração universal ou oração dos fiéis é o momento na liturgia em que o povo eleva súplicas a Deus pelas necessidades da Igreja e pela salvação do mundo inteiro.

Na ação litúrgica da Paixão do Senhor, na Sexta-feira Santa, a oração universal apresenta invocações específicas pela Santa Igreja, pelo Papa, por todas as ordens e categorias de fiéis, pelos catecúmenos, pela unidade dos cristãos, pelos judeus – “aos quais o Senhor Deus falou em primeiro lugar”, pelos que não creem no Cristo, pelos que não creem em Deus, pelos que sofrem provações e pelos poderes públicos.

Neste ano, em sintonia com os apelos que o Papa Francisco tem feito pelo fim dos conflitos no mundo, em especial na Ucrânia, a Congregação para o Culto Divino orientou as dioceses para que na invocação pelos poderes públicos se reze a Deus “pelos governantes, para que ilumine as suas mentes e corações para buscar o bem comum em verdadeira liberdade e em verdadeira paz, e por aqueles que estão em provação para que todos possam experimentar a alegria de ter encontrado a ajuda da misericórdia do Senhor”.

Para que esta súplica se transforme em práticas concretas, quais devem ser as principais posturas dos governantes, nos âmbitos global e local? É o que O SÃO PAULO perguntou a cinco pessoas de notório saber sobre bem comum, paz e liberdades religiosa e de expressão e de informação.

Garantir, respeitar e fomentar a legítima liberdade de imprensa e de expressão

CARLOS ALBERTO DI FRANCO

Os governantes precisam ter consciência de que a liberdade de expressão e de imprensa não são uma concessão do Estado. Representam o respeito a um direito humano fundamental, garantido e louvado pela Constituição de 1988.

Liberdade de imprensa e de expressão, e sua outra face, a responsabilidade ética, merecem uma breve reflexão.

O jornalismo, em suas diversas manifestações é, ou deve ser, uma livre obstinação na busca da verdade.

Dois elementos essenciais devem marcar a atividade informativa: a busca da verdade e a defesa da liberdade. A relação entre liberdade e verdade encerra um dos grandes desafios do nosso tempo. De sua correta formulação decorrem não apenas inúmeras consequências no campo da Filosofia, da Antropologia e da Cultura, mas também significativas repercussões no comportamento prático das pessoas, graças, sobretudo, ao enorme poder dos meios de comunicação, impressos ou digitais, como instrumentos de informação e de formação da opinião pública.

Carlos Alberto Di Franco, advogado, jornalista e doutor em Comunicação, é professor de Ética, colunista, consultor e conselheiro de empresas de comunicação.

Como bem salientou o saudoso São João Paulo II, em seu discurso com motivo do 50o aniversário da Organização das Nações Unidas, “a liberdade possui uma ‘lógica’ interior que a qualifica e a enobrece: ela está orientada para a verdade e realiza-se na busca e na atuação da verdade. Desvinculada da verdade acerca da pessoa humana, ela degenera, na vida individual, na licenciosidade e, na vida pública, no arbítrio dos mais fortes e na arrogância do poder. Portanto, longe de constituir uma limitação ou uma ameaça à liberdade, a referência à verdade acerca do homem- -verdade universalmente inteligível por meio da lei moral inscrita no coração de cada um é, na realidade, a garantia do futuro da liberdade”.

“Uma democracia sem valores se transforma, com facilidade, num totalitarismo visível ou encoberto”, afirma com realismo cortante o saudoso Pontífice. Os governantes devem, portanto, garantir, respeitar e fomentar a legítima liberdade de imprensa e de expressão que se apoia na busca, técnica e ética, da verdade dos fatos.

A paz é alcançada pelo compromisso com a verdade

WAGNER BALERA

A paz só é verdadeira quando se baseia na verdade. Eu sou a verdade (cf. Jo 14,6). A primeira postura do governante é o compromisso intransigente e radical com a verdade. Nenhuma atitude dúbia, nenhum fingimento; nenhuma falsa promessa ou programa irrealizável.

A paz deve ter como escopo a justiça, que não admite a opressão dos vencidos. Aprendamos com a resultante da primeira guerra. O vencido provocou a segunda, amplificando, a partir da mentira, os milhões de mortos.

Wagner Balera é mestre, doutor, livre-docente e professor titular de Direitos Humanos na Faculdade de Direito da PUC-SP.

A segunda postura consiste em compreender que a paz local exige o aceite da liberdade de circulação de todos, notadamente dos mais pobres; daqueles que estão em situação de rua e dos que querem retirar até mesmo o pouco que, a duras penas, amealharam na lida em busca do precário teto. Esses, que não têm voz, nem vez, nem lugar, são os primeiros destinatários da paz; portanto, a necessária prioridade de qualquer governante idôneo.

A verdade de que brota a paz, aliada à justiça, sobretudo em sua dimensão social, semeiam a libertação de todas as formas de opressão.

Como bem ensinou São João XXIII, na encíclica que denominou Pacem in terris, os quatro pilares para que um governante honre seu mandato são a verdade, a justiça, a liberdade e o amor. Este último, aliás, não pode ser simbolizado por uma paz armada, acúmulo de armas e de bombas atômicas, que dissuadem pelo temor. Para que a postura de paz tenha dimensão mundial, urge que a organização do tratado de todos os oceanos transmude espadas e os armamentos em arados e foices, como bem recomendou Amós, e que todos os governantes, orando em uníssono, busquem a verdade, a liberdade, a paz e o amor.

Ter abertura e escuta às reais necessidades da população

JOSÉ MARIO BRASILIENSE CARNEIRO

Buscar o bem comum significa empreender ações para oferecer as condições necessárias ao desenvolvimento integral das pessoas e comunidades. Essas condições compreendem aspectos materiais, como moradia e saúde, e aspectos intangíveis, como educação e cultura.

José Mario Brasiliense Carneiro, diretor- presidente da Oficina Municipal –Escola de Cidadania e Gestão Pública, é bacharel em Direito (USP); mestre e doutor em Administração Pública (FGV-SP); e master em Teologia da Evangelização (Pontificia Universidade Lateranense)

Em uma democracia, a tarefa de buscar o bem comum recai sobre a sociedade civil, que deve participar da formulação, implementação e controle de políticas públicas. A convivência humana em famílias e comunidades supre, em grande medida, as necessidades fundamentais das pessoas.

Segundo o princípio da subsidiariedade, o Estado deve respeitar essas esferas de organização social e atuar de forma suplementar, dando prioridade aos mais pobres. Para tanto, a postura dos governantes deve ser de abertura e escuta às reais necessidades da população.

Em uma federação, os primeiros responsáveis para a promoção do bem comum são os prefeitos, vereadores e gestores municipais que conhecem sua realidade. Quando um município não é capaz de resolver sozinho questões como o tratamento de resíduos sólidos, por exemplo, é preciso buscar a co- operação com as cidades vizinhas.

Em seguida, entram em cena os governos estaduais e finalmente o governo federal. Essa perspectiva subsidiária do Estado não é difundida no Brasil, onde se espera que o governo federal resolva todos os problemas.

Vale lembrar que há temas impossíveis de serem tratados no plano nacional. Isso ficou claro no contexto da pandemia: observamos que questões sanitárias e ecológicas exigem estruturas de governo em nível global.

Que a todos se assegure o direito à prática religiosa e a organizar a vida por suas crenças

ANA CECÍLIA GIORGI MANENTE

Em sua missão de ajudar os cristãos perseguidos, a Fundação Pontifícia Ajuda à Igreja que Sofre (ACN) também promove a defesa da liberdade religiosa. A cada dois anos, desde 1999, publicamos um extenso relatório sobre o tema, cobrindo mais de 190 países.

Ana Cecília Giorgi Manente é presidente no Brasil da Fundação Pontifícia Ajuda à Igreja que Sofre (ACN).

Dois terços da humanidade vivem onde a liberdade religiosa está em risco. Um exemplo é a China, onde os governantes utilizam tecnologia militar para vigiar, perseguir e mesmo eliminar milhões de fiéis. Também na Índia, Paquistão, Mianmar, Egito e Nigéria a perseguição toma proporções de genocídio. Nem sempre o perseguidor é o Estado, mas ele é sempre responsável por garantir os direitos. A nosso ver, a liberdade religiosa carece de um estado secular, com separação entre Estado e religião, e onde o Estado promova e garanta a liberdade religiosa e o espaço público aberto a todos.

Em países onde não há perseguição extrema e mesmo em nações democráticas e liberais, o alerta é outro: a adoção gradual de leis e novos valores ideológicos que censuram a liberdade de consciência, crença e expressão. É a “perseguição educada”, que relega as religiões a seus templos e esvazia a legitimidade da participação social ativa. Um exemplo é a proibição de símbolos religiosos em lugares públicos, escolas e ambientes de trabalho. Os governantes devem estar alertas a tais sutilezas para exercer um governo justo. Importante garantir a todos o direito à prática religiosa e organização da vida privada e pública conforme suas crenças; promover o respeito e a não discriminação religiosa; combater a desinformação.

Facilitar o acesso à informação é dever moral da autoridade pública

FILIPE DOMINGUES

Vivemos em uma época em que os valores e a cultura são muito mais orientados pela mídia do que pelas instituições tradicionais. Alguns dizem que vivemos numa verdadeira “midiápolis”, em que a principal “praça pública” de debate dos temas importantes é a mídia.

E aqui “mídia” não se trata mais só da TV e dos jornais, como antes, mas de uma verdadeira cultura midiatizada e digital. A mídia está em quase tudo o que fazemos. Quem aparece no ambiente midiático tem mais voz e influência do que quem não o faz. Quem domina estratégias midiáticas tem mais sucesso do que quem não as controla.

Filipe Domingues é jornalista, mestre e doutor em Ciências Sociais (Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma) e colaborador do O SÃO PAULO em Roma

Também a política, hoje, é orientada principalmente pela mídia. Nossos políticos, nossas autoridades públicas, falam muito mais pelo Twitter, YouTube e WhatsApp do que em convenções e passeatas. Por um lado, as redes sociais descentralizam a fonte de informação e permitem que mais pessoas participem do ambiente público. Por outro, elas amplificam o problema da manipulação da informação, ou da desinformação.

O principal dever moral de uma autoridade pública, no que diz respeito à mídia, é facilitar o acesso à informação. Desinformar é um atentado a esse direito democrático, uma vez que para participar da vida pública o cidadão precisa conhecer a realidade.

Além disso, para que sirvam sua função, autoridades públicas devem pautar suas políticas e práticas pelos problemas reais que as pessoas enfrentam. As redes sociais são apenas uma parte da realidade. Sem sujar os sapatos e ir ao encontro dos que mais precisam, os governantes se afastam da missão de promover o bem comum.

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