Prontuário afetivo proporciona assistência mais humanizada a pacientes com COVID-19

Ação que tem sido realizada em diferentes hospitais do País permite maior proximidade entre internados e a equipe médica

Mara Luciana

O prontuário afetivo (PA) é um projeto que vem sendo utilizado em muitos hospitais brasileiros. Ele é diferente do prontuário convencional, composto por questões técnicas da saúde do paciente, como alergias e medicamentos.  

No PA estão reunidas informações pessoais do paciente como gosto musical, hobbys, religião, profissão, apelido, nome dos pais, dos filhos, de amigos e do animal de estimação. Desse modo, esse prontuário permite que a equipe médica conheça um pouco mais sobre a pessoa internada.

São esses detalhes que têm auxiliado, desde abril, os profissionais do Hospital Geral Dr. César Cals (HGCC), em Fortaleza (CE), a humanizar o atendimento aos infectados pela COVID-19 que, independentemente se estão na UTI ou na enfermaria, precisam ficar em isolamento, sem contato com a família.

“Com a hospitalização, o paciente enfrenta situações difíceis e uma delas é o processo de total despersonalização. Ele deixa de ser um sujeito e se resume a um número de leito, prontuário e diagnóstico”, pontua a psicóloga da UTI e enfermaria COVID do HGCC, Karleynayra de Castro. “A psicologia utiliza o prontuário afetivo como forma de resgatar a subjetividade desses pacientes internados, muitos deles intubados, sem comunicação e em isolamento, contribuindo para uma assistência mais humanizada”, complementa.

Karleynayra aponta que muitos são os resultados alcançados pelo uso do PA. “Fortalecimento do vínculo da tríade paciente, família e equipe, resgate das afetividades que envolvem as relações humanas, resgate da subjetividade, uma assistência mais humanizada e aproximação dos familiares”, lista.

Devido às restrições impostas pela pandemia, as equipes médicas não têm mais contato direto com as famílias dos pacientes e, por isso, elas pouco sabem sobre as pessoas internadas que estão aos seus cuidados, principalmente as que estão desacordadas em leitos de UTIs.

“O objetivo do prontuário afetivo é mostrar para os profissionais que aquela pessoa é o amor de alguém e, também, levar um pouquinho da família para aquele paciente que está em isolamento”, acrescenta a assistente social do hospital, Tayná Araújo Fragoso.

Prontuário afetivo na prática

A assistente social Tayná compartilha que já esteve do outro lado, quando vivenciou a morte de uma prima em decorrência do coronavírus. Ela reforça que o isolamento social é um processo muito angustiante tanto para o paciente quanto para os familiares.

“É um lugar extremamente desconfortável, nos sentimos impotentes. Vi o quanto era importante trazer a família para junto do cuidado, mesmo com as restrições impostas pela pandemia”, diz a assistente social.

Ela também afirma que o prontuário afetivo traz mais do que humanização para o ambiente hospitalar: “Traz um afago para nosso coração neste momento tão difícil que estamos vivenciando”.

Quem também compreende bem a importância do prontuário afetivo é a agricultora e estudante Mara Luciana Cavalcante, 26. “Para mim, [o projeto] vem mostrando o carinho e a dedicação que as pessoas da Saúde têm com a gente. O prontuário afetivo é uma maneira de falar para as famílias que o paciente está bem e está sendo bem assistido”, comenta em vídeo cedido pelo HGCC à reportagem do O SÃO PAULO.

Mara ficou cerca de um mês internada no César Cals em decorrência da COVID-19 e, como consequência, teve de ficar longe de seus entes queridos. Ela foi uma das primeiras pacientes do hospital a ter um prontuário afetivo.

O vídeo cedido pelo HGCC foi gravado durante seu tratamento. Nele, a agricultora também salienta que, mesmo isolada, não se sentia sozinha; pelo contrário, por meio do atendimento humanizado do hospital, sentia a família por perto. “É uma maneira de aliviar e de saber que você ficará bem, para depois, [poder] ficar com todo mundo, família e amigos”.

Trabalho feito a muitas mãos

Governo do Estado Ceará

No Hospital César Cals, o trabalho está sendo desenvolvido de modo multiprofissional, envolvendo toda equipe médica (enfermagem, fisioterapia, nutrição, psicologia etc) da UTI e enfermaria de atendimento à COVID-19, assistência social e a equipe de comunicação, que inicia o processo.

“É uma equipe médica responsável por passar o boletim clínico do paciente internado na UTI ou enfermaria COVID. Essa comunicação é feita via remota. Nesse contato, os profissionais solicitam informações como hobbies, se [o paciente] é avó, pai, mãe, filho, que música gosta de ouvir, se tem religião, para qual time torce, entre outras coisas”, explica Karleynayra.

Ela detalha que esse processo de colher informações também é feito por parte da psicologia durante o atendimento familiar, que pode ser remoto ou presencial. A etapa seguinte é a confecção lúdica do PA. “É elaborado manualmente pela psicologia com muita dedicação, empatia e afeto”, frisa Karleynayra, que trabalha em parceria com a também psicóloga Ana Carolina Aguiar.

Os prontuários afetivos são fixados ao lado ou em cima do leito do paciente, de modo que fique visível para todos os que lhe dão assistência. “Este projeto multiprofissional permite trabalharmos não apenas com a reabilitação orgânica e psicossocial, mas também com a recuperação da dignidade humana”, assegura a psicóloga. Ela ressalta que embora o PA esteja sendo desenvolvido para os pacientes com COVID-19, o objetivo é que abranja a todos os internados.

O PA em pacientes intubados

No caso dos pacientes de COVID-19 que estão intubados, embora o prontuário afetivo seja elaborado da mesma forma que os daqueles que estão na enfermaria, a execução ocorre por meio do estímulo auditivo.

“A família manda áudio para nosso Whatsapp, como se estivesse falando para o próprio paciente. Colocamos esse áudio no ouvido dele ou a música [enviada]. Algumas famílias pedem para lermos um Salmo. Fazemos esses estímulos auditivos à beira leito”, discorre Karleynayra.

A psicóloga também reforça que a própria equipe que dá assistência, vendo o prontuário afetivo, durante os procedimentos médicos conversa com o paciente a partir daquelas informações. Fala dos filhos, dos familiares e dos hobbies.

O PA tem sido importante também para estabelecer laços dos plantonistas com os pacientes, uma vez que estes profissionais, que trabalham em esquema de rodízio, nem sempre têm tempo de conhecer os pacientes.  

“O prontuário afetivo faz uma vinculação mais afetiva com esses profissionais [plantonistas] que estão mexendo naquele corpo que está doente e precisa ser curado, e que é uma pessoa, um querido de alguém. Então, reforça ainda mais essa questão da humanização”, assegura a psicóloga.

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