Quando ‘bate à porta’, o Alzheimer não afeta apenas o doente

Em todo o mundo, cerca de 55 milhões de pessoas convivem com doenças que afetam o cérebro e as funções cognitivas. No Brasil, cuidadores familiares criam rede para mútuo apoio

Matthias Zomer/Pexels

De uma hora para outra, a pessoa começa a não se lembrar de fatos recentes. Lentamente, vai perdendo a capacidade de realizar as atividades cotidianas de sempre e, por fim, se torna completamente dependente de alguém para tudo. 

A cada três segundos, alguém no mundo é diagnosticado com doenças que afetam a memória e outras habilidades cognitivas e comportamentais, sendo a principal delas a doença de Alzheimer, cuja incidência de casos é maior em idosos. 

Conforme a Organização Mundial da Saúde (OMS), 55 milhões de pessoas vivem com tais doenças, e destas 1,2 milhão estão no Brasil. Até 2030, em âmbito global, serão mais de 82 milhões os atingidos pelo Alzheimer, e em 2050 este número pode saltar para 152 milhões de pessoas.  

O mal de Alzheimer, como também é chamado, não tem cura, mas se descoberto precocemente e devidamente tratado pode avançar de modo mais lento, como busca alertar todo ano a campanha Fevereiro Roxo. 

‘Aprisionados’ pela doença

Em 2006, o pai da arquiteta Míriam Morata Novaes começou a apresentar os sinais típicos de alguém com Alzheimer (leia detalhes ao lado). O alerta máximo se deu quando o senhor Rubens largou o carro ligado e com as portas abertas no meio da rua, mas não se lembrava disso. Tempos depois, veio a confirmação do diagnóstico da doença. 

Míriam, à época, não tinha conhecimento algum sobre Alzheimer e muito pouco encontrou a respeito, em linguagem compreensível, ao pesquisar na internet. Diante disso, ela criou um blog para relatar o que estava vivendo. “Pensei: ‘Alguém vai ver o blog e conversar comigo, e daí podemos nos juntar e buscar orientações’. Muita gente lia o blog, mas ninguém falava comigo. Em um ano, meu pai teve todos os sintomas do Alzheimer. Ele faleceu em 2007 e eu parei com o blog”, recordou ao O SÃO PAULO. 

Em 2013, o mal de Alzheimer voltou a “bater à porta” da família. Dessa vez, a doença afetou a mãe de Míriam, a senhora Encarnação. O diagnóstico seria confirmado no ano seguinte após episódios de surto de medo. 

“Ela tinha lapsos de lucidez e, de repente, entrava em surto. A partir de novembro de 2014, ela não saiu mais da minha casa [Míriam mora em um sítio na Serra da Cantareira, já seus pais viviam no Parque Novo Mundo, na zona Norte de São Paulo], e até ela falecer, em 14 de dezembro de 2015, eu fiquei 24 horas por dia cuidando da minha mãe: ela parou de andar, de comer, tinha delírios, medos”, recordou Míriam.  

Compartilhando dores e soluções

Quando soube que a mãe estava com a doença de Alzheimer, Míriam retomou as postagens do blog: “Descobri que não era a única pessoa do mundo que cuidava de alguém amado, sem saber nada sobre saúde, direitos, terapias, coragem, medos, angústia, morte lenta. Eram muitos os ‘órfãos de pais vivos’”. 

Em 2017, ela lançou o livro “Alzheimer – Diário do esquecimento”, recordando tudo o que passou com seus pais. Com vistas a divulgar trechos do livro, também criou uma página no Facebook e dois grupos nesta mesma rede social, que atualmente reúnem cerca de 56 mil membros. 

“Hoje nos grupos, as pessoas trocam dúvidas, fazem relatos, contam suas situações, e isso é importante porque um vai ensinando o outro. Na época em que o meu pai foi diagnosticado com Alzheimer, não existia nada assim”, recordou. Ela também criou grupos no WhatsApp, que hoje contam com mais de 300 pessoas, e escreveu mais um livro: “Alzheimer – Recolhendo os pedaços”. 

Cuida de mim

Ao longo dos anos, Míriam procurou as pessoas que escreviam relatos e dúvidas nos grupos e foi assim que, aos poucos, surgiu o projeto “Cuida de mim – Alguém que eu amo tem Alzheimer”, destinado a apoiar os cuidadores familiares.

“A doença de Alzheimer é muito mais que um simples esquecimento. Atinge a família inteira, ou melhor, uma pessoa em especial: aquela que acaba ficando para cuidar do doente. E sempre será a mesma pessoa, pois as demais dirão que não podem por algum motivo”, enfatizou Míriam.

Um dos ramos do projeto são os mutirões para orientações e esclarecimento de dúvidas dos cuidadores familiares, com a participação de profissionais como médicos, psicólogos, advogados e fisioterapeutas. Antes da pandemia, aconteceram duas edições dos mutirões em diferentes cidades. A terceira está programada para maio deste ano. Além da partilha de saberes, nos mutirões há a distribuição de uma cartilha especialmente criada para os cuidadores familiares e são feitas pesquisas para melhor conhecê-los. 

Em 2020, ela iniciou um canal no YouTube, já tendo sido realizadas mais de 40 lives sobre a temática do Alzheimer. Com o avanço do projeto, foi criada a Rede Cuida de Mim, acessível pela plataforma Cuboz –  https://www.cuboz.com/cuidademim. Nela, o usuário encontra vídeos, lives, cursos, artigos, livros e a cartilha para os cuidadores. Além disso, cuidadores familiares, profissionais, estudantes, pesquisadores e demais interessados podem trocar de informações e dialogar. 

Também a partir do projeto, surgiu o Grupo de Apoio Mútuo (GAM), no qual os cuidadores familiares compartilham seus desafios cotidianos, e profissionais de diferentes áreas oferecem treinamento e informações confiáveis. 

Reconhecimento legal do cuidador familiar

Os participantes do projeto Cuida de mim também têm se mobilizado para que tramite no Congresso Nacional um projeto de lei com vistas a reconhecer a função de cuidador familiar, com os devidos detalhamentos sobre seus direitos. Outra meta é que se assegure suporte financeiro e psicológico destes cuidadores após a morte do paciente com Alzheimer. 

“Depois que o paciente morre, o cuidador não tem força para retomar a vida de antes. A pessoa convive com a culpa do ‘será que eu fiz tudo que podia?’. Fica um medo enorme, cansaço, revolta por ter cuidado sozinho do doente. Assim, esse cuidador vai precisar de apoio psicológico, terapias, medicamentos. Também queremos que ele possa ter um apoio financeiro, linha de crédito com juros baixos para poder recomeçar a vida”, detalhou Míriam.

A responsabilização civil dos filhos ou cônjuges que tenham abandonado alguém com Alzheimer e o eventual ressarcimento financeiro ao cuidador familiar também estão contemplados no projeto de lei. A íntegra da petição pode ser vista na plataforma Change.org, acessível clicando aqui.

“Há quem permaneça por nove, dez anos, cuidando de um parente com Alzheimer. Esses cuidadores morrem um pouquinho por dia, precisam de ajuda, de apoio, por isso digo que o projeto Cuida de mim é um exercício de compaixão”, concluiu Míriam. 

SINTOMAS MAIS COMUNS DA DOENÇA DE ALZHEIMER

  • Falta de memória para acontecimentos recentes;
  • Repetição da mesma pergunta várias vezes;
  • Dificuldade para acompanhar conversações ou pensamentos complexos;
  • Incapacidade de elaborar estratégias para resolver problemas;
  • Dificuldade para dirigir automóvel e encontrar caminhos conhecidos;
  • Dificuldade para encontrar palavras que exprimam ideias ou sentimentos pessoais;
  • Irritabilidade, desconfiança injustificada, agressividade ou passividade;
  • Interpretações erradas de estímulos visuais ou auditivos;
  • Tendência ao isolamento. 

Fonte: Ministério da Saúde

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Gisa
Gisa
1 ano atrás

Trabalho incrível!!! Transformou sua dor em luta e em alivio pra dor e problemas dos outros

Esther Rosado
Esther Rosado
1 ano atrás

O artigo é de gritante lucidez: as pessoas, filhos, irmãos e amigos vão embora, com medo de serem mobilizados para cuidados , trabalho.
Ficam os que amam, compreendem e têm compaixão.
O Alzheimer é um aprendizado do percurso humano; os que fogem se esquecem , quando filhos, parentes próximos, que podem carregar consigo a configuração genética para reiniciar a história…

Lourdes Maria Rodrigues Cavalcanti
Lourdes Maria Rodrigues Cavalcanti
1 ano atrás

Cuidei de minha mãe, por 6 anos, em minha casa. Hoje, ela não fala quase nada e vive em um Lar Geriátrico, perto de onde moro. Quando ela foi para lá, já não sabia nem quem ela era, e eu, não tinha mais condições físicas e emocionais de cuidar dela. Ainda estou juntando os “cacos” para me recompor…

Vivi suas dores, presenciei ela se transformar em outra pessoa, sofri, adoeci e fiquei destroçada emocionalmente. Uma amiga, Gizelda da Trindade Oliveira, me colocou no Grupo “Alzheimer, Diário do Esquecimento”.

Foi quando conheci a Mirian Morata, e encontrei alento, conforto e compreensão, naquela pessoa que viveu as mesmas dores e angústias que todas nós, naquele pessoa incrível que decidiu se dedicar à causa do cuidador, pois somos invisíveis aos olhos da família e do Estado, que não nos dá nenhum tipo de assistência, quando poderia criar uma política pública direcionada ao paciente (o tratamento é caro, remédios são caros, fraldas saitcaras) e ao cuidador familiar, que arca sozinho, com os custos financeiros e emocionais, não dispondo, na maioria das vezes, de uma rede de apoio.

Meu esposo, atualmente com 62 anos de idade, foi diagnosticado com Alzheimer, aos 60 anos de idade, em agosto de 2020. Vivo, novamente, as angústias, surpresas e mudanças de humor, que vivi com mamãe.

Por fim, a Mirian Morata fez toda a diferença na minha vida e na forma como lido com tudo isso.

O Alzheimer é um tsunami na vida do cuidador familiar… nós morremos um pouco, com as mudanças que vemos à nossa frente…e sofremos mais que eles.
Entretanto, nosso familiar portador de Alzheimer só tem a nós, naquela situação de completa vulnerabilidade, e nós encontramos forças, não sei onde, porque não podemos deixa-los sozinhos.

Obrigada, Mirian Morata, pelo bem que nos faz, ouvindo nossos desabafos, traumas e lutas solitárias…

Que todo bem te queira, minha querida!