Telas: amigas ou vilãs da infância?

Com a pandemia de COVID-19, crianças e adolescentes passam mais tempo em frente aos computadores, celulares e tevês. Modo de uso dessas plataformas pode representar riscos ou ganhos no processo formativo


Uso das telas de modo excessivo pode causar prejuízos ao desenvolvimento mental, cognitivo e psicossocial (foto: Andi Graf/Pixabay)

No ano em que a pandemia de COVID-19 levou à suspensão das aulas presenciais, às limitações para contato com amigos e parentes, bem como às restrições de acesso a ambientes para atividades recreativas, o computador, o smartphone e a tevê são os companheiros, por muitas horas diárias, de crianças e adolescentes para atividades de estudo, interações pelas redes sociais ou jogos.

Mesmo para os pais mais atentos à rotina dos filhos quanto ao uso das telas, monitorar a frequência e o conteúdo do que veem se tornou ainda mais difícil, pois também os adultos, em muitos casos, têm permanecido por longos períodos conectados para cumprir suas atividades profissionais.

Danos já conhecidos

Em junho deste ano, a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) emitiu um comunicado com orientações para pais, educadores e pediatras sobre os riscos da exposição excessiva de crianças e adolescentes às telas.

No geral, foram reforçadas orientações apresentadas no guia “Saúde de Crianças e Adolescentes na Era Digital”, elaborado pela entidade em 2016: evitar que crianças menores de 2 anos sejam expostas às telas (exceto para breves contatos com familiares, gerenciados pelos pais); para as de 2 a 5 anos, limitar o tempo a uma hora diária; para as de 6 a 10 anos, até duas horas; e não mais que três horas para os adolescentes de 11 a 18 anos, incluindo o tempo gasto com os jogos. Os períodos recomendados também levam em consideração as etapas do desenvolvimento cerebral, mental, cognitivo e psicossocial das crianças e adolescentes.

No documento de 2016, a SBP enfatiza que jogos on-line com cenas de tiroteios, mortes ou desastres e com recompensas cumulativas não são apropriados em qualquer idade, “pois banalizam a violência como sendo aceita para a resolução de conflitos, sem exporem a dor ou o sofrimento causado às vítimas, e contribuem para o aumento da cultura de ódio e intolerância”.

O guia, elaborado com base em mais de 30 pesquisas científicas nacionais e internacionais, lista ainda algumas dasconsequências sobre o uso excessivo da tecnologia por crianças e adolescentes, como a dificuldade de estabelecer relações em sociedade, aumento da ansiedade, estímulo à sexualização precoce, a adesão ao cyberbullying, o comportamento violento ou agressivo, transtornos de sono e de alimentação, baixo rendimento escolar e maior risco de exposição às drogas.

Em recente entrevista à BBC Brasil News, o neurocientista Michel Desmurget, diretor de pesquisa do Instituto Nacional de Saúde da França, alertou que a exposição excessiva às telas traz impactos para o QI das novas gerações, pois desde muito cedo as crianças gastam mais tempo nisso do que em atividades interativas ou outras que estimulam sua arquitetura cerebral, que tem sua fase mais intensa de desenvolvimento até os 3 anos de idade.

Na medida certa

Fonoaudióloga e mestra em Educação – Distúrbios da Comunicação, Simone Ribeiro Cabral Fuzaro afirma que, em relação às crianças menores, os pais devem ter especial preocupação com o período em que elas ficam diante das telas, pois “sofrem prejuízos no que diz respeito ao desenvolvimento cognitivo, somente pelo fato de estarem expostas durante tanto tempo”. Já as crianças maiores e adolescentes, “além dos prejuízos causados pelo tempo de exposição, podem ter a formação pessoal bastante comprometida a partir dos conteúdos a que têm acesso”.

Simone, que também é consultora em Família e em Educação, alerta que, nas crianças mais novas, o atraso na aquisição da linguagem e a dificuldade de atenção são sinais de que o uso das telas está sendo prejudicial. No caso dos adolescentes, os indícios negativos são as dificuldades de manter relações pessoais fora do mundo virtual, se envolver em atividades que exijam maior tempo de concentração e, em casos mais extremos, uma espécie de dependência do uso de eletrônicos.

Para a jornalista Ana Cesaltina Marques, mestra em Comunicação e doutoranda em Psicologia pela Universidade Federal do Ceará, privar as crianças e os adolescentes do contato com as mídias não é o melhor a ser feito. “Isso seria criar alguém numa bolha, num ambiente apartado da realidade. O que faz sentido é pensar sobre quais conteúdos queremos levar às nossas crianças e adolescentes. Essa reflexão é importante e deve ser feita pela família, pela escola e por qualquer instituição que converse diretamente com esse público”, afirmou ao O SÃO PAULO, apontando, ainda, que a rotina das crianças seja acompanhada e organizada, “dando a elas tempo de qualidade para a educação, o lazer, a convivência social, os esportes etc. As mídias podem ser qualificadores importantes para todas essas atividades”.

Como a escola pode ajudar?

Para Simone Fuzaro, mais importante do que abordar os prejuízos que as telas podem provocar, as escolas devem criar estratégias para que os estudantes vivenciem hábitos saudáveis, “cultivando, no ambiente escolar, um clima agradável de convívio pessoal sem o uso de eletrônicos e, depois, desenvolvendo projetos de acordo com a idade dos alunos, que conscientizem as crianças desses bons hábitos”.

Especificamente para este momento de restrições de contatos sociais, a mestra em Educação avalia que as escolas poderiam enviar para a casa dos alunos “sugestões e propostas de atividades manuais, lúdicas e recreativas que não impliquem o uso de eletrônicos”.

A Sociedade Brasileira de Pediatria recomenda que as escolas realizem atividades com os alunos e palestras de prevenção e proteção; que tratem no currículo escolar de assuntos como sexualidade e exploração sexual on-line, comportamentos de violência, cyberbullying, uso de drogas, os danos de “brincadeiras e desafios perigosos”; além de estabelecer redes intersetoriais com os pais e especialistas para a proteção da escola e deixar sempre em local visível os canais para denunciar casos de violência, sexting (compartilhamento de conteúdos eróticos pelas plataformas digitais) ou cyberbullying.

Mediação e bons exemplos dos pais


Mediação dos pais é essencial para estabelecer o uso correto da tecnologia pelas crianças (foto: Chuck Underwood/Pixabay)

Ana Cesaltina considera positivo que haja uma mediação dos pais quanto ao que é acessado pelos filhos, na perspectiva de que ensinem às crianças e adolescentes os critérios para seleção, interpretação e produção de significados dos conteúdos, com base nos próprios valores e crenças.

“Uma mediação apenas restritiva não leva em conta a construção de uma criticidade para favorecer uma futura autonomia. O exemplo dos pais, ou daquele que faz esse papel, é também muito importante, tanto sobre o consumo de determinados conteúdos quanto em relação a dispositivos eletrônicos. Como falar de excesso de tempo on-line quando o adulto responsável não faz uso moderado dos dispositivos? É preciso ser coerente”, comenta a doutoranda em Psicologia, que também participa do Laboratório de Pesquisa da Relação Infância, Juventude e Mídia (Labgrim), da Universidade Federal do Ceará.

Simone Fuzaro também aponta que o melhor a ser feito é os pais prevenirem os filhos e formá-los para que identifiquem quais conteúdos estão de acordo com os valores familiares. “Se esse trabalho estiver acontecendo, não será difícil intervir numa situação como essa [de acesso a um conteúdo inapropriado], conversando com o filho e ajudando-o a refletir sobre o assunto. Caso contrário, a partir dessa situação, os pais precisarão conversar e pensar em estratégias que levem o filho a ter um olhar crítico sobre o conteúdo em questão.”

Essa dimensão formativa foi tratada pelo Papa Bento XVI, na mensagem para o 41º Dia Mundial das Comunicações Sociais, em 2007, com o tema “As crianças e os meios de comunicação social: um desafio para a educação”. No texto, o Pontífice indicou o papel primordial dos pais nesse processo. “Eles têm o direito e o dever de assegurar o uso prudente dos meios de comunicação social, formando a consciência dos seus filhos a fim de que expressem juízos sadios e objetivos, que sucessivamente há de orientá-los na escolha ou rejeição dos programas disponíveis (cf. São João Paulo II, exortação apostólica Familiaris consortio, 76).”

Resguardo da imagem e segurança

No guia de 2016, a SBP também recomenda que os pais dialoguem com os filhos sobre as regras de uso da internet, o nível de segurança e privacidade, e reforcem que senhas, fotos ou informações pessoais não sejam compartilhadas com desconhecidos.

“A exposição nas redes sociais tem várias implicações, desde o direito à própria imagem da criança até questões da segurança. Quando os pais ou responsáveis publicam uma imagem de suas crianças numa plataforma de redes sociais, aquela imagem passa a circular na rede e não há garantias do percurso que percorrerá ou dos usos que podem ser feitos. Os próprios pais, muitas vezes, não têm consciência dos riscos que correm ao postar suas próprias imagens e, por vezes, ignoram o respeito à imagem de alguém que ainda não construiu discernimento para decidir. E se a imagem, imediata ou futuramente, vier a ser incômoda para o retratado?”, alerta Ana Cesaltina.

Em alguns casos, essa exposição pode envolver até mesmo segurança física. É o que ocorre quando os responsáveis expõem informações sobre a rotina das crianças ou dos adolescentes que os tornam vulneráveis a violências”, complementa a mestra em Comunicação.

Potencial benéfico

Questionada pela reportagem se a inserção de crianças e adolescentes no processo de produção de conteúdos para redes sociais e tevês poderia redundar em benefícios para eles e para a sociedade como um todo, Ana Cesaltina afirmou que pesquisas desenvolvidas pelo Labgrim apontam tanto para oportunidades – “desde a aprendizagem formal, o letramento digital, uma maior participação em questões de suas próprias comunidades, o desenvolvimento da criatividade e da capacidade de autoexpressão até a constituição e ampliação de relações sociais” – quanto para riscos – “possibilidade de perdas de recursos financeiros e materiais, exposição de suas imagens, riscos de contatos com pessoas desconhecidas, de cyberbullying, entre outros”. Por isso, a especialista indica ser imprescindível a mediação parental e escolar, “para favorecer a formação de senso crítico necessário ao consumo e, também, à produção de conteúdos”.

Simone Fuzaro deixa quatro recomendações aos pais e educadores, para que o uso das mídias pelas crianças e adolescentes ajude a consolidar os bons valores cultivados em família:

– Não tomar como natural o uso dos eletrônicos por essas gerações ditas digitais, proporcionando aprendizagens e vivências que não estejam somente relacionadas a eles;

– Não ter medo de estabelecer regras e limites claros para sua utilização;

– Dedicar tempo para acompanhar e orientar esse uso de acordo com a idade do filho/aluno;

– Que pais e professores deem exemplo de utilização equilibrada e inteligente desses instrumentos.

O OLHAR DAS CRIANÇAS SOBRE AS MÍDIAS


Crianças ouvidas pela pesquisadora Mayra desejam maior protagonismo infantil na mídia (Arte a partir de arquivo pessoal)

Entender oomo ocorre a expressividade infantil na mídia digital e como isso representa o direito à liberdade de expressão da criança foi o foco da tese da jornalista Mayra Fernanda Ferreira, para a obtenção do doutorado em Comunicação pela Universidade Estadual Paulista (UNESP).

Mayra realizou uma discussão coletiva, em formato de grupo de intervenção, com 20 crianças, de 9 a 11 anos, de escolas públicas municipais de Bauru (SP), no ano de 2017.

De acordo com a pesquisadora, dois aspectos foram mais relevantes: as crianças reconheceram que as mídias digitais, o rádio e a tevê são meios em que elas poderiam se expressar; e reclamaram que os adultos não valorizam a legitimidade da fala infantil.

“Para elas, os adultos entendem que a criança só merece ser protegida, controlada e não a veem como uma protagonista. Elas sentem falta desse direito de falar por si e ser reconhecidas como sujeitos sociais”, explicou Mayra.

O grupo de estudantes também disse sentir falta de meios para que as crianças realmente saibam o que as outras pensam. “Muitas vezes, o discurso é do adulto para a criança e não de uma criança para outra. Ao longo da pesquisa, elas até propuseram criar um programa de rádio, no qual as próprias entrevistariam outras crianças ou adultos, exatamente para mostrar as opiniões infantis sobre diferentes assuntos. Por exemplo, elas sabem que as crianças não podem trabalhar, mas o que está por trás desse direito? Elas gostariam de ouvir outras crianças a esse respeito e debater”, explica.

As crianças também demonstraram vontade de ter mais espaço para debates em grupos de WhatsApp e páginas do Facebook. “Hoje, pelas políticas do Facebook, crianças não podem ter uma conta, mas muitas burlam isso, o que é um risco para a privacidade infantil, além da exposição on-line. Trata-se, porém, de uma ferramenta potencial, pois as crianças já a utilizam e por isso a entendem como espaço legítimo para que possam se expressar e defender o que gostam. Hoje, porém, isso é feito com riscos, pois não existem ferramentas adequadas, criadas para o público infantil”, comenta.

A pesquisadora ressalta que esse maior protagonismo infantil e a valorização da infância na mídia não devem ocorrer sem a mediação dos principais agentes de socialização: a escola, a mídia e a família.

“Com os pais, por exemplo, a proposta é que sejam instigados a pesquisar algo por meio da ferramenta digital e produzir uma mensagem coletiva. Imaginemos que existe um grupo de WhatsApp na família e que alguém tenha compartilhado um meme de uma situação política. Diante disso, a criança pode ter uma curiosidade ou o pai puxar um assunto e, junto com a criança, construir uma mensagem e compartilhá-la nesse mesmo grupo. Será uma mensagem feita a partir da interpretação desses atores sociais, o pai e a criança”, exemplificou.

O resultado da tese de Mayra Ferreira pode ser visto no livro “Infância (n)ativa: potencialidades de participação e cidadania das crianças na mídia digital”, publicado este ano pela editora Cultura Acadêmica.

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Esta reportagem é parte da série mensal “Infância Roubada”, que debate questões que impactam diretamente na garantia dos direitos de crianças e adolescentes no Brasil. A seguir, outras reportagens já publicadas nesta série:

Extremos da má nutrição comprometem a saúde das crianças brasileiras

Aborto: a violência que retira o direito de nascer

Crianças e adolescentes estão sujeitos a constantes violações de direitos no Brasil

Editorial sobre a série – Nossa infância ameaçada

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