Tráfico de crianças e adolescentes: um perigo real que requer ampla sensibilidade social

A ampliação dos aliciamentos pela internet, a falta de um cadastro nacional unificado de desaparecidos, a demora nas buscas e a indiferença e a conivência com os casos são complicadores no enfrentamento ao problema

Gerd Altmann/Pixabay

A cada ano, em todo o mundo, desaparecem 1,2 milhão de crianças e adolescentes, conforme projeções da Organização das Nações Unidas (ONU). No Brasil, este número é estimado entre 30 mil e 40 mil meninos e meninas, dos quais e 10% a 15% não são mais encontrados.

Com vistas a alertar a sociedade sobre esta realidade e pensar formas para combatê-la, acontece, em 25 de maio, o Dia Internacional da Criança Desaparecida.

A ampliação do aliciamento feito pelos criminosos a crianças e adolescentes na internet, a falta de um cadastro nacional unificado de pessoas desaparecidas, a demora das autoridades em procurar quem sumiu e a indiferença da sociedade em relação ao problema são apontados por especialistas ouvidos pelo O SÃO PAULO como os principais complicadores para o combate deste crime.

O DESAPARECIDO E O TRÁFICO HUMANO

Conforme a Lei de enfrentamento ao tráfico de pessoas no Brasil – lei 13.344/2016 – que deu nova redação ao artigo 149-A do Código Penal – esta prática se caracteriza pelo ato de “agenciar, aliciar, recrutar, transportar, transferir, comprar, alojar ou acolher pessoa, mediante grave ameaça, violência, coação, fraude ou abuso”, com a finalidade de adoção ilegal; exploração sexual; remoção de seus órgãos, tecidos ou partes do corpo; ou submissão da pessoa a trabalho análogo à escravidão ou a qualquer tipo de servidão.

Quem comete tráfico humano está sujeito à prisão de quatro a oito anos, além de pagar multa, e a pena pode ser aumentada de um terço até a metade se o ato criminoso for contra criança, adolescente ou pessoa idosa ou com deficiência.

No Brasil, quando alguém desaparece, compete à autoridade policial realizar o boletim de ocorrência, mas as investigações somente têm início se houver a suspeita de algum crime relacionado ao fato, como um sequestro, por exemplo. Não há, portanto, vínculo direto inicial entre desaparecimento e tráfico humano. No entanto, se quem desapareceu for uma criança ou adolescente, a busca e as investigações devem começar imediatamente e o fato precisa ser comunicado aos portos, aeroportos, à Polícia Rodoviária e companhias de transporte interestaduais e internacionais, conforme determina o artigo 208 do Estatuto da Criança e Adolescente (ECA), que teve redação atualizada no ano de 2005.

POUCA AGILIDADE

O advogado Ariel de Castro Alves, ex-conselheiro do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente e ex-secretário nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, recorda que embora o ECA determine que haja essa busca imediata, nem sempre a lei é cumprida. “Muitas vezes nem se abre o inquérito policial, os casos não são investigados e não se realizam as buscas”, lamenta. “Quanto mais se demora a fazer a busca, mas difícil fica encontrar a criança”, complementa.

Fundadora das Mães da Sé, grupo que em 27 anos de atuação já ajudou a encontrar mais de 5 mil desaparecidos, Ivanise Esperidião da Silva Santos também diz que a busca imediata prevista em lei não tem sido cumprida: “Ainda hoje, quando a mãe chega a uma delegacia para registrar a ocorrência de desaparecimento, ela dependerá da boa vontade do delegado. Muitas vezes, é orientada a voltar 24 horas depois, ou se o delegado faz o registro, não comunica o desaparecimento para as demais autoridades. Se a busca imediata fosse cumprida, evitaríamos a retirada de crianças do nosso País”.

QUANDO HÁ CELERIDADE

E a agilidade na procura por um desaparecido faz toda a diferença. Em 30 de abril, uma criança de 2 anos de idade desapareceu em Santa Catarina e acabou sendo encontrada em um carro, em posse de um homem e uma mulher, na capital paulista, em 8 de maio, após uma abordagem policial.

As investigações iniciais dão conta de que a criança teria sido “doada” pela mãe – que tem transtornos mentais – a um aliciador, após este a ter convencido por meio de conversas via aplicativo de mensagens. A criança já retornou à sua cidade natal, São José (SC), onde está sendo mantida em um abrigo institucional.

“Este caso deu certo porque houve investigação, atuação integrada entre as polícias. As testemunhas foram ouvidas, se verificou por onde a criança passou, e foi checado para quem ela foi entregue. Esse episódio mostra bem a necessidade de a investigação ser ágil, começar tão logo a informação chegue à Polícia em vez de ficar esperando um tempo para a criança voltar”, enfatiza Alves.

A URGÊNCIA DE UM CADASTRO UNIFICADO

Segundo o advogado, o fato de não existir no Brasil um cadastro nacional de pessoas desaparecidas – previsto na lei 13.812/2019, mas que ainda não foi operacionalizado – é um complicador: “O ideal seria que tão logo ocorresse o desaparecimento, a família fizesse o boletim de ocorrência na delegacia, levando a foto da criança desaparecida, e esta imediatamente faria parte de um cadastro nacional, a partir do qual poderia haver a divulgação ampla dos casos, inclusive pela imprensa, o que facilitaria a procura”.

Castro lembra que em alguns países, como os Estados Unidos, existe o alerta Amber, “que é um sistema nacional relacionado à busca e localização de crianças desaparecidas, bem como um cadastro nacional, com a divulgação da foto das crianças nos aeroportos, rodoviárias e rodovias, envio para os aplicativos de mensagens. E quando estes sistemas funcionam, os êxitos são grandes para a localização de desaparecidos”.

O especialista também avalia ser fundamental que haja mais fiscalização em veículos particulares nas rodovias brasileiras, bem como um maior controle sobre o transporte de menores de idade em carros por aplicativos de mobilidade, especialmente nas viagens de uma cidade a outra.

Castro enfatiza que para o esclarecimento dos casos também é indispensável uma escuta qualificada dos familiares do desaparecido: “Seria importante que essa família recebesse mais assistência social ou psicológica por parte do Estado, pois somente ouvindo adequadamente essas mães e pais é que eles poderão ajudar nas investigações, dando informações importantes sobre onde a criança desapareceu e se havia alguém interessado em levá-la para algum lugar”.

O QUE FACILITA OS DESAPARECIMENTOS?

Irmã Eurides Alves de Oliveira, da Congregação das Irmãs do Imaculado Coração de Maria, tem estudado a questão do desaparecimento de pessoas e do tráfico humano no Brasil desde 2006. Para ela, há três fatores principais para os casos de crianças e adolescentes: a vulnerabilidade das famílias, a violência intrafamiliar e o aliciamento feito pela internet.

A Religiosa destaca que uma parcela significativa de casos ocorrem em famílias cujos pais precisam permanecer a maior parte do tempo fora de casa para trabalhar ou naquelas em que as crianças desde cedo vão para a rua em busca de algum rendimento: “Na rua, estarão sujeitas à exploração laboral, ao sequestro, ao rapto para adoção irregular, à exploração sexual, entre outros riscos”.

Socióloga, mestra em Ciências da Religião e integrante da Comissão Episcopal Pastoral Especial para o Enfrentamento ao Tráfico Humano da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), a Irmã lembra que muitas vezes as situações de violência intrafamiliar também fazem com que as crianças e adolescentes prefiram permanecer mais tempo na rua a ficarem em casa “e, assim, se tornam presas fáceis de promessas enganosas”.

Entretanto, mesmo quando os pais estão próximos e há um ambiente familiar pacífico, as crianças podem ser alvo das redes de tráfico humano, especialmente para a adoção ilegal.

“É quase como se fosse um ritual em muitos casos. A criança, geralmente muito pequena, estava brincando em uma área aberta da casa, como o quintal, ou estava na porta de casa. A mãe se ausentou por alguns instantes, como para ver algo na cozinha, e ao voltar não a encontrou mais. Isso nos leva a deduzir que essas crianças já estavam sendo observadas e que na primeira oportunidade o sequestrador as raptou”, afirma a fundadora das Mães da Sé, cuja filha, Fabiana, desapareceu em dezembro de 1995 e até hoje não foi encontrada.

“Essas crianças desaparecidas e que não voltam geralmente são de famílias de uma classe social muito baixa. São crianças bem afeiçoadas e em sua grande maioria tem pele clara. E como são raptadas muito pequenas, se adaptam muito facilmente a um novo convívio familiar, aprendem rápido uma língua estrangeira, o que dificulta que sejam encontradas”, observa Ivanise.

UM CRIME POTENCIALIZADO PELA INTERNET

Irmã Eurides afirma que a internet tem lugar de destaque como ambiente de aliciamento para o tráfico de crianças e adolescentes, com os criminosos usando diferentes técnicas para conquistar a confiança da vítima.

“O aliciador vai às redes de relacionamento pessoal. Para as crianças, ele se apresenta como o ‘tio bom’. Já para os adolescentes, oferece trabalhos, testes de imagem, pede vídeo para apresentar a uma agência, cria relacionamentos afetivos pelos sites e em diversos aplicativos. Alguns se valem de perfis falsos, usando a imagem de artistas e de influencers digitais para criar afinidades com os adolescentes e crianças”, exemplifica a religiosa, recomendando que os pais sempre monitorem os conteúdos acessados pelos filhos.

“Já nos chegaram alguns casos de adolescentes meninas que estavam conversando há muito tempo com alguém que achavam que possuía a mesma idade delas, mas ao marcar encontro com essa pessoa, viram que não era nada daquilo e sofreram violência sexual ou foram mantidas em situação de cárcere”, detalha Ivanise.

Na avaliação de Castro, as autoridades brasileiras não estão preparadas suficientemente bem para combater os aliciadores na internet, haja vista que, por exemplo, há poucas delegacias especializadas no enfrentamento de crimes cibernéticos. “Existem muito grupos na internet, no Facebook, no Whatsapp que tratam de compra de crianças e adolescentes, mas pouco se investiga ou se atua para o enfrentamento dessas práticas”, assegura.

O QUE FAZER EM CASO DESAPARECIMENTO

  1. Em posse de uma fotoatualizada do desaparecido, procure a delegacia mais próxima e registre o caso imediatamente;
  2. Informe um número para contato que esteja permanentemente disponível;
  3. Saiba informar quem são os amigos da pessoa e com quem ela pode estar;
  4. Descreva com qual roupa a criança ou adolescente usava quando desapareceu;
  5. Avise amigos e familiares sobre o sumiço;
  6. Percorra locais de preferência da criança;
  7. Mantenha alguém à espera no local onde ela sumiu;
  8. Quando a criança ou adolescente for localizada, informe a polícia.

    Fonte: Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro
Osmar Koxne/CNBB

‘Isso não é problema meu’: indiferença e conivência

Outro complicador ao enfrentamento do tráfico de crianças e adolescentes é a indiferença da maior parte da sociedade ao problema.

“Existem os canais de denúncia para os casos, mas as pessoas se mostram indiferentes, seja por não saberem identificar uma caso de tráfico humano, seja por não quererem se envolver ou ainda porque estamos imersos em uma crosta de individualismo, e a sensibilidade somente acontece quando ocorre com alguém muito próximo de nós. Talvez a porta de entrada para a superação disso é trabalharmos a sensibilidade social”, observa Irmã Eurides.

A conivência com as possíveis situações de tráfico também é recorrente. Em agosto do ano passado, a embaixada e consulados dos Estados Unidos no Brasil apresentou o “Relatório sobre o tráfico de pessoas 2022 – Brasil”, no qual se aponta que “os traficantes exploram crianças no tráfico sexual ao longo de estradas brasileiras, incluindo a BR-386, BR-116 e BR-285. O turismo sexual infantil permanece sendo um problema, principalmente em áreas de resorts e do litoral; muitos praticantes de turismo sexual infantil são da Europa e dos Estados Unidos”.

Irmã Eurides também destaca que é preciso que o Estado invista na capacitação dos agentes de segurança pública, de assistência social e de saúde para que identifiquem situações suspeitas: “Normalmente, as polícias que registram os boletins de desaparecimento estão despreparadas para fazer as indagações e perceber se há indício de tráfico de pessoas. É necessário haver, também, um trabalho mais articulado entre as diferentes instituições e maior diálogo destas com a sociedade civil, que está na ponta e pode detectar melhor os casos”.

A religiosa comenta, ainda, que o problema do tráfico de crianças e adolescentes não deve ser visto com indiferença pelos católicos: “A Igreja tem que trazer esse enfrentamento como uma pauta de evangelização, uma vez que trata do cuidado e defesa da vida, e na medida que como cristãos não compactuamos com qualquer forma de exploração ou da violação da vida e da dignidade humana. Por isso, é preciso que incentivemos um processo amplo de sensibilização e formação sobre o tema”.

A Comissão Episcopal Pastoral Especial para o Enfrentamento ao Tráfico Humano da CNBB produziu a cartilha “Nas trilhas do enfrentamento do tráfico de pessoas”, cujo download gratuito pode ser feito aqui.

DICAS AOS PAIS: MEDIDAS DE PREVENÇÃO

1) Faça o RG da criança o quanto antes;
2) Ensine seu filho (a) a dizer o próprio nome completo, o dos pais e o telefone de casa;
3) Em locais de grande movimentação – como aeroportos, rodoviárias, shoppings centers e praias – coloque uma pulseira de identificação na criança – com nome e telefone – e não a deixe sozinha;
4) Oriente a criança a não conversar, aceitar doces ou brinquedos, nem ir a qualquer lugar com pessoas desconhecidas;
5) Acompanhe a criança na ida a banheiros públicos;
6) Quando a criança for a festinhas ou outros programas de entretenimento, sempre busque-a no horário marcado (ou avise se for atrasar) ou oriente os anfitriões sobre quem são os únicos adultos responsáveis por acompanhá-la;
7) Em eventos, mostre à criança quem são as pessoas que fazem a segurança ou os responsáveis a quem ela pode pedir ajuda;
8) Sempre dialogue com seu filho (a) e conheça seus amigos; 
9) Esteja atento a mudanças repentinas de comportamento da criança e do adolescente;
10) Evite deixar a criança sozinha em casa ou brincando sozinha em locais públicos;
11) Monitore o conteúdo que a criança ou o adolescente acessa ou pesquisa na internet;
12) Oriente seu filho a não aceitar o contato de estranhos nas redes sociais.

UM PANORAMA SOBRE O PROBLEMA

  • Entre 2018 e 2020, a Polícia Federal resgatou 203 vítimas de tráfico interno e internacional, das quais 32 (15,8% do total) eram crianças e adolescentes;
  • De janeiro de 2020 a junho de 2021, o Disque 100 recebeu 301 denúncias de casos de tráfico de pessoas. Destes, 50,1% envolviam crianças e adolescentes;
  • Em 2019 e 2020, a Polícia Rodoviária Federal identificou nas rodovias federais 3.651 pontos vulneráveis à exploração sexual de crianças e adolescentes (uma das principais causas de tráfico humano no Brasil), sendo que deste total, 1.079 estavam no Nordeste; 896, no Sul; 710, Sudeste; 531 no Centro-Oeste; e 435 no Norte.

DENÚNCIE O TRÁFICO DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES 

Disque 100
Disque 180
App Proteja Brasil (download gratuito na Apple Store e Google Play)
Envie um e-mail para a Polícia Federal: srtp.cgdihc.dicor@pf.gov.br

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Jady
Jady
5 meses atrás

Assistam Som da Liberdade, ou algum outro filme relacionado a trafico de crianças para compreender mais sobre esse assunto, devemos cuidar das crianças, proteje-las de gente cruel sem sentimento ao proximo.

Nayara
Nayara
5 meses atrás

Procurei esta reportagem após assistir o filme em cartaz O Som da Liberdade. É assustador saber dessa realidade, principalmente em nosso país.