Após a Ação Litúrgica da Paixão do Senhor, presidida pelo Cardeal Odilo Pedro Scherer na tarde da Sexta-feira Santa, 15, na Catedral da Sé, aconteceu a procissão pelas ruas do centro da capital paulista, recordando o sepultamento de Jesus, concluída com o tradicional sermão das sete palavras de Cristo na cruz.
Este ano, o sermão foi elaborado pelo Irmão Israel José Nery, religioso do Instituto dos Irmãos das Escolas Cristãs La Salle, teólogo e especialista em Catequese.
“A missão salvífica que Jesus recebeu do Pai aconteceu ao longo de toda a sua vida entre nós, isto é, desde o seu primeiro instante, como ser humano, no seio materno de Maria de Nazaré. Esta sua missão alcançou seu ponto máximo no processo final da sua vida terrestre, com a sua prisão, julgamento, condenação, tortura, morte, sepultamento, ressurreição e glorificação. Estamos celebrando na fé, na esperança e no amor, estes momentos finais da vida de Jesus, na certeza, porém, de que ele, o Ressuscitado, está vivo entre nós e conta conosco para a continuidade de sua missão ao longo da história”, afirmou Irmão Nery, no início da reflexão.
Leia, a seguir, os principais trechos do sermão:
Primeira Palavra: “Pai, perdoa-lhes, pois não sabem o que fazem” (Lc 23, 34a)
Em total abandono, naquela situação de injustiça e dor, o coração amoroso do Senhor, não pensa em si, mas, com plena misericórdia, nos que o condenam, o violam, torturam, matam.
O nosso hoje de Deus nos diz que Jesus nos dando o exemplo do perdão, lá do alto da Cruz, está nos ensinando novamente o que já nos havia transmitido, quando nos passou o itinerário de como conversar com Deus, o “Pai Nosso”: Se perdoardes uns aos outros as vossas ofensas, o Pai que está no Céu, também vos perdoará, mas se não perdoardes, o Pai também não vos perdoará (cf. Mt 6, 14-15). E ele nos ensina, ainda, que é preciso ir além do perdão, é preciso reconciliar, isto é, recomeçar no amor, na generosidade, com vida nova, como ele mesmo o ilustrou na parábola do Pai Pródigo de amor para com o filho mais novo, que saiu de casa, esbanjou tudo, mas arrependido, voltou.
Recordemos ainda que misericórdia, que em latim significa ter o coração cheio de compaixão, significa também ação, isto é, mobilizarmo-nos para a ação concreta do “sentir com, sofrer com e agir para ajudar”. Hoje, com o gesto do seu perdão, o que Jesus, do alto da sua Cruz, espera de cada um de nós, como indivíduos, como comunidade dele, como povo dele?
Segunda Palavra: “Em verdade te digo: hoje estarás comigo no Paraíso” (Lc 23, 43)
Esta segunda palavra de Jesus complementa e enriquece a primeira, a do perdão, pois nos mostra de maneira inequívoca o oceano ilimitado de sua misericórdia. Bastou Dimas, o bom ladrão, confiar no Coração Misericordioso do Senhor, para ter-lhe abertas, de imediato, as portas do Céu: “hoje mesmo estarás comigo no Paraíso!”
Hoje, temos muitos motivos para cair no pecado de desesperança, no pecado de acreditar que a vida e a história não têm sentido, de que não se pode crer mais nos outros, no amanhã, num futuro melhor. Temos muitos motivos até para não acreditar em Deus, no seu perdão, na sua misericórdia. E, de fato, um absurdo como o próprio Jesus é manipulado, como ele e seu evangelho são usados para dominar pessoas e arrecadar muito dinheiro. É um absurdo uma organização social, econômica e política totalmente contra o povo e que multiplica os empobrecidos (desemprego, fome, violência, desrespeito às minorias e aos direitos humanos) e, também, que destrói a nossa Casa Comum, o Planeta Terra.
Levemos conosco esta certeza da nossa vocação profética de que, mesmo estando no meio das maiores desesperanças deste mundo, Jesus nos quer a seu lado para garantir aos outros, em seu nome: “Não tenhas dúvida, estarás com Jesus no Paraíso!” Somos profetas e ministros do perdão, da misericórdia, da esperança, da fé no outro, da fé na possibilidade de que um outro mundo melhor é possível.
Terceira Palavra: “Mulher, eis aí o teu filho. Filho eis aí a tua Mãe!” (Jo 19, 26-27)
Jesus sabia que estava prestes a morrer. Como, aos pés dele, aos pés da sua cruz, estava, Maria de Nazaré, a mulher que o Pai e o Espírito Santo deram-lhe como Mãe, ele não quis que ela ficasse ao desamparo. Com ela, ali estavam, também, – escreve São João -, Maria de Cléofas e Maria Madalena, e ele mesmo, o discípulo João. Mas Jesus dirigiu-se à sua Mãe e ao discípulo João e lhes disse: Mulher, eis aí o teu filho. João, eis aí a tua Mãe! E o evangelista se apressou em registrar: “e dessa hora em diante, o discípulo a levou para a sua casa!”
No hoje de Deus, a nossa fé, nos coloca ao pé da cruz e, mais ainda, nos leva a identificar-nos com a figura do discípulo João. Hoje, mais do que até agora, acolhamos a belíssima missão, a nós dada por Jesus, de levar a sua própria mãe para a nossa casa e dela cuidar. E mais que isso, como aconteceu com João, a dela aprender, aprender de Maria, o mais importante, isto é, a conhecer mais e mais o seu filho Jesus, pois a missão maior de Maria é não apenas dar-nos Jesus, revelar-nos quem é o seu filho, ao mesmo tempo Filho de Deus, mas facilitar-nos o encontro pessoal e intransferível com ele e o tornar-nos discípulos missionários dele.
Quarta Palavra: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” (Mt 27, 46; Mc15,34)
Na fase final de sua longa tortura e agonia, Jesus, com base no Salmo 21, faz uma síntese de sua vida e missão, que dele exigiu todo o aniquilamento possível de se imaginar: físico, afetivo, psicológico, social, moral, espiritual. E ele estava cumprindo aquela profecia do Servo Sofredor (cf. Is 52, 13-15 a 53, 1-12), como o descreveu, séculos atrás, em seu protoevangelho, o Profeta Isaías, afirmando: “o servo foi castigado por nossos crimes e esmagado por nossas iniquidades; ele carregou os pecados de muitos e intercedeu pelos pecadores” (Is 53,5). São Paulo resume tudo dizendo: “Ele morreu por mim!” (Gal 5,22).
O hoje de Deus nos convida a um forte ato de fé: Jesus morreu por mim! E, ao mesmo tempo, a estarmos vigilantes e preparados para sermos resilientes nos momentos de desamparo, abandono, depressão, confusão.
Quinta Palavra: “Tenho Sede!” (Jo 19, 28b)
O evangelista João nos revela mais um clamor de Jesus. Além da sensação de total aniquilamento e solidão, ele sente sede. E clamor de Jesus é de um sofrimento real. Ele tem sede de água. Seu corpo estava extremamente desidratado. Estava sem um dos combustíveis mais necessários ao nosso organismo. E isso, desde o momento em que foi preso, e depois de tantas horas de tortura e perda de sangue. Aliás, a fome e a sede, junto com a humilhação e a dor, faziam e fazem parte da tortura. Humanamente, ali na cruz, Jesus pede água. E os seus carrascos sabiam que o vinagre, ao mesmo tempo que pode dar a sensação de apaziguamento da sede, se torna tortura, pois afeta diretamente os órgãos respiratórios irritáveis. E o apóstolo João registrou que “amarraram uma esponja ensopada de vinagre numa vara e a colocaram na boca de Jesus e ele bebeu o vinagre…
Mas o hoje de Deus nos possibilita ampliar o grito “Tenho sede”, para outros gritos, a partir da situação real em que Jesus está: “tenho fome”, “tenho necessidade de ser respeitado”, “tenho necessidade de ir e vir”, “tenho necessidade de proteção”, “tenho necessidade de liberdade”, “tenho necessidade de atenção, carinho, amor”…
Na verdade, de que adianta o nosso jeito desencarnado, alienado de ser cristão; o nosso devocionismo, o nosso esforço de “barganha contínua com Deus” em troca de cura, milagres, em troca de passar em exames, de conseguir emprego, se não ligamos para Jesus exatamente onde ele mais está: na pessoa que sofre, que precisa de ajuda, ajuda do básico para ser gente?
Sexta Palavra: “Tudo está consumado!” (Jo 19, 30a)
São João nos diz que, após tomar um pouco do vinagre, Jesus exclamou em voz alta: “Tudo está consumado!” Apesar de estar no auge da sua agonia, Jesus tinha plena consciência do dever cumprido e bem realizado. Ele fez a parte dele, “caminho, verdade e vida” por meio do qual a humanidade e o cosmos chegam ao Pai.
No hoje de Deus cabe-nos consumir e consumar a nossa vida, colocando Deus em primeiro lugar “Amar a Deus sobre todas as coisas” e, por isso mesmo, fazer a sua santa vontade, de modo a termos consciência de que cumprimos e bem o nosso dever, tal como Jesus. Mas, como nos ensina São João, em sua primeira Carta (1Jo 4, 20-21), o amar a Deus se torna mentira se, de verdade, não amamos o próximo. E jamais conseguiremos a paz interior, com a qual Jesus enfrentou e sofreu tudo, se não vivermos o amor oblativo, como Jesus o viveu, isto é, estando a serviço da salvação, da felicidade dos outros.
Sétima Palavra: “Pai, em ruas mãos entrego o meu espírito” (Lc 23.46b)
A oração última de Jesus na cruz, registra o Apóstolo Lucas, é um grito final, muito forte, para que o mundo todo ouvisse que ele se entregava inteiramente e para sempre ao amor do Pai: “Então, Jesus deu um forte grito: Pai, em tuas mãos entrego o meu Espírito! e expirou”. Não há revolta, não há desespero, não há ódio. A última oração de Jesus, no ponto final de sua agonia, é ato máximo do amor e da confiança, no sentido de plenitude.
A verdade é que nunca admitiremos nem aceitaremos a morte. Queremos vida e vida imortal. Jesus assumiu, em tudo, a nossa condição humana, menos o pecado, e nesta condição humana ele, um dia haveria de morrer. Mesmo assim, ele quis viver e viver bem e fez de tudo (dentro das limitações de seu tempo) para ajudar as pessoas a bem viverem. Chegou mesmo a ressuscitar algumas pessoas como o filho da viúva de Naim, Lázaro de Cafarnaum e uma jovem (em aramaico jovem é talita) termo que passou a identificá-la).
O hoje de Deus nos dá, agora, a oportunidade do memorial da Páscoa. Estamos lá no momento da passagem final de Jesus para o Pai e Aquele passagem final acontece aqui, agora. E este hoje de Deus nos afirma com autoridade: a morte não é a palavra final, mas, sim, a vida nova em Deus. Só que esta vida nova em Deus precisa acontecer no aqui e agora da nossa história, sabendo obviamente que terá a sua plenitude na Vida Eterna Feliz.