Cresce entre os católicos a prática da Leitura Orante da Bíblia

Nos últimos anos, muitos têm redescoberto uma das práticas mais antigas do Cristianismo, a Lectio Divina, método pelo qual a pessoa vive um encontro espiritual com Deus por meio da Sagrada Escritura

“Felizes são aqueles que ouvem a Palavra de Deus e a põem em prática” (Lucas 11,28). Essa afirmação de Jesus confirma uma verdade fundamental para a vida cristã: para seguir o Cristo é preciso antes ouvi-lo. Esse é o paradigma da relação entre o discípulo e o mestre, ouvir atentamente o que Ele tem a dizer. Mas, nos dias de hoje, como é possível vivenciar de maneira concreta esse encontro pessoal com Deus por meio de sua Palavra?

Nos últimos anos, os católicos têm redescoberto uma das práticas mais antigas do Cristianismo, a Lectio Divina ou Leitura Orante da Bíblia, método pelo qual a pessoa vive um encontro espiritual com Deus por meio da Sagrada Escritura.

Na verdade, esse método é anterior ao próprio Cristianismo. Estima-se que a prática da Lectio Divina data de aproximadamente o ano 180 a.C., quando os fariseus, encarregados de estudar a Torá (Sagrada Escritura judaica) e transmitir seu ensinamento ao povo, criaram um método de leitura dos textos em quatro passos. Séculos depois, comunidades cristãs primitivas começaram a adotar o método também para a leitura dos textos do Novo Testamento.

A estrutura atual da Lectio Divina é atribuída ao monge Guigo II (falecido em 1188), que definiu os quatro passos clássicos do método: leitura, meditação, oração e contemplação (leia mais no quadro abaixo).

RETOMADA

Com o passar dos séculos, a Lectio Divina foi ficando restrita à vida monástica. Somente depois do Concílio Vaticano II (década de 1960), o método voltou a se popularizar.

A Constituição Dogmática Dei Verbum, sobre a revelação divina, foi o documento conciliar que convidou a Igreja a não somente se dedicar ao estudo das Escrituras, mas a também retomar a prática de uma relação espiritual com a Bíblia: “Lembrem-se, porém, de que a leitura da Sagrada Escritura deve ser acompanhada pela oração, a fim de que se estabeleça o colóquio entre Deus e o homem; pois ‘a Ele falamos quando rezamos; a Ele ouvimos quando lemos os divinos oráculos’ (Santo Ambrósio)”

Mais recentemente, a Exortação Apostólica Pós-Sinodal Verbum Do mini, escrita pelo Papa Bento XVI em 2010, insiste na importância da Lectio Divina como base de toda a espiritualidade da Igreja. “O Sínodo insistiu repetidamente sobre a exigência de uma abordagem orante do Texto Sagrado como elemento fundamental da vida espiritual de todo fiel, nos diversos ministérios e estados de vida, com a particular referência à Lectio Divina. Com efeito, a Palavra de Deus está na base de toda a espiritualidade cristã autêntica”, afirma o texto.

OS QUATRO PASSOS

A primeira fase (lectio) consiste em ler um trecho da Sagrada Escritura disposto a escutar o que Deus comunica. Posteriormente, medita-se sobre a leitura (meditatio), atento aos principais pontos pelos quais a Palavra viva se dirige mais diretamente ao leitor. Nessa fase, recomenda-se que o fiel se insira na história, como se fosse um personagem a mais.

Depois dessa dinâmica em que a Palavra de Deus é dirigida ao leitor, a terceira fase propõe a resposta a essa Palavra, fazendo com que, em forma de oração, o fiel se dirija a Deus (oratio).

Por fim, chega-se à quarta fase (contemplatio), momento silencioso de interiorização da experiência espiritual vivida com a leitura, meditação e oração sobre o texto, bem como seus sentimentos, afetos e propósitos colhidos nesse diálogo com Deus por meio da Escritura.

INICIATIVAS

Desde a motivação conciliar, inúmeras iniciativas surgiram com o objetivo de difundir a Leitura Orante da Bíblia entre os fiéis. Irmã Rosana Pulga, religiosa da Congregação das Filhas de São Paulo (Paulinas) e fundadora do Serviço de Animação Bíblica (SAB) em Belo Horizonte (MG), ministra cursos de Lectio Divina em todo o Brasil Ela explica que a Leitura Orante é um exercício muito simples e enriquecedor tanto para o conhecimento da Bíblia quanto para a vida espiritual pessoal e comunitária. Com o método, é possível dialogar com Deus, ouvir o que Ele tem a dizer a cada um em particular e a seu povo como um todo.

A Religiosa também destaca que a Leitura Orante não é um estudo bíblico, mas, como o próprio nome diz, é uma leitura divina em oração. “É uma oração transformadora que leva à prática da fé batismal, que restaura continuamente nossa imagem e semelhança com Deus”, afirma.

O método pode ser feito individualmente ou em grupo. “A experiência da Lectio Divina é dinâmica e silenciosa ao mesmo tempo. Seus passos são interligados, não podem ser tomados como compartimentos ou gavetas os quais abrimos e fechamos uma de cada vez”, acrescenta Irmã Rosana.

NAS PARÓQUIAS

Nascido em Fortaleza (CE) há 11 anos, o Movimento da Transfiguração do Senhor tem por missão ensinar o caminho do encontro pessoal com Deus a partir da Lectio Divina. O movimento está presente em vários estados do Brasil e também em comunidades brasileiras nos Estados Unidos. Em São Paulo, ministra cursos sobre Leitura Orante em paróquias e possui dois grupos fixos nas paróquias Santa Terezinha do Menino Jesus, no bairro de Higienópolis, e Imaculado Coração de Maria, na Santa Cecília. Também organiza escolas de oração para adultos e promove reuniões mensais no Mosteiro São Bento, no centro da capital.

O fundador do movimento, Cesar Augusto Nunes de Oliveira, explicou ao O SÃO PAULO que a passagem bíblica da transfiguração de Jesus inspirou os integrantes justamente por mostrar a ocasião em que os discípulos, acompanhados de Jesus, sobem ao monte, ouvem a Palavra do Pai e, em seguida, retornam para a vida cotidiana. “A partir dessa passagem, nos sentimos motivados a ensinar uma pedagogia que proporcione às pessoas a escuta de Jesus por meio de sua Palavra”, diz.

NAS REDES

Em tempos de cultura digital, também surgiram iniciativas de vivência da Lectio Divina em sites, redes sociais, aplicativos de mensagens ou mesmo via e-mail. Muitas ações são individuais ou de pequenos grupos, mashá também projetos institucionais, como o “Lectionautas”, realizado pelo Conselho Episcopal Latino-Americano (Celam) e as Sociedades Bíblicas Unidas (SBU). O programa oferece aos internautas itinerários e instrumentos que os capacita para o método da Leitura Orante adaptada à linguagem jovem. No Brasil, o projeto tem apoio da CNBB por meio da Comissão para a Juventude e é acessado pelo site www.lectionautas.com.br.

TEXTOS DIFÍCEIS

Muitas vezes, no contato com a Bíblia, a pessoa se depara com algumas passagens de difícil compreensão. “Isso é muito frequente, porque não temos um conhecimento ainda da Palavra por detrás da sua letra. A simbologia presente na Bíblia não é uma mentira, mas carrega em si uma realidade por ela representada”, salienta Irmã Rosana. Nesse aspecto, Religiosa chama a atenção para a importância da experiência comunitária da Lectio Divina, especialmente quando se está aprendendo o método. “Aquilo que é difícil para mim pode não ser para o outro. E, assim, a comunidade vai se ajudando mutuamente na compreensão da Palavra.” Aí também entra a dimensão eclesial da Lectio Divina, quando a Igreja cumpre o seu papel de ajudar o povo de Deus a interpretar corretamente a Sagrada Escritura por meio de seu ensinamento e da indicação de livros que ajudam no esclarecimento dos textos bíblicos.

O Padre Boris Augustin Nef Ulloa, doutor em Teologia Bíblica pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma e professor da PUC-SP, afirma: “A Escritura deve ser lida, mas mais do que lida, deve ser interpretada – à luz da Igreja – e colocada em prática”. Já o Cônego Celso Pedro da Silva, doutor em Teologia Bíblica pelo Instituto Angelicum de Roma e diplomado em Arqueologia Bíblica pela Ecole Biblique et Archéologique, de Jerusalém, reforça: “O Espírito Santo ilumina aquele que lê”. Ambos chamam atenção para o sentido sobrenatural que uma leitura viva oferece e o que a Lectio Divina proporciona ao leitor: ler como palavra viva, escrita para cada pessoa.

* Reportagem publicada em 28 de setembro de 2016, por Fernando Geronazzo, Julia Cabral e Vitor Loscalzo

Como fazer Lectio Divina individualmente

Nas orientações abaixo, seguem-se algumas indicações práticas para fazer a Lectio Divina pessoalmente:

1) O primeiro passo para uma boa Lectio Divina é a preparação do ambiente:

a) Reservar um momento do dia para fazer a Lectio Divina (no mínimo 20 minutos);

b) Buscar um lugar reservado e, se possível, silencioso;

c) Ter uma bíblia com bons comentários de rodapé;

d) Ter em mãos papel e caneta;

e) Procurar acalmar o corpo e a mente para se concentrar na leitura

2) Pedir (ou suplicar) a presença do Espírito Santo:

a) Cante músicas de invocação ao Espírito Santo;

b) Faça invocações ao Espírito por meio de orações decoradas ou lidas, com invocações ao Espírito Santo;

c) De maneira especial, peça a presença e a ação do Espírito Santo com suas próprias palavras, de forma espontânea.

3) Leia o texto várias vezes para a compreensão de seu sentido literal; “interprete” o texto para descobrir o que ele diz. Algumas sugestões:

a) É muito importante ler os comentários de rodapé referentes ao texto;

b) Se for uma narração (história), perceba a ação de cada personagem;

c) Compare o texto lido com outros textos bíblicos que você já conheça e que esse texto lhe faça lembrar;

d) Grifar, na própria bíblia, as passagens que você entendeu serem as mais importantes para a compreensão do texto.

4) A meditação do texto, que é o ato de interiorizar o que foi lido, é o momento de perceber o que o texto diz, “o que mais me tocou”, o que veio ao encontro do coração, o que ficou mais forte. São todas formas de traduzir, em algum tipo de linguagem, essa ação interna da Palavra:

a) Escreva o que mais lhe tocou num papel, para melhor fixar;

b) Repita a parte, versículo ou palavra que ficou mais forte, podendo fazêlo, inclusive, de olhos fechados, assumindo aquela palavra para você;

c) Leve esse trecho para o seu dia, memorizando-o ou escrevendo-o, rememorando-o várias vezes durante o dia, a fim de assimilá-lo melhor. A isso os antigos chamavam “ruminar” a Palavra;

d) E, o mais importante: confronte a sua vida com esse trecho do texto.

5) A oração é o momento de resposta a Deus, após ter Ele lhe falado por meio de sua Palavra (ensino, ânimo, correção, questionamento). É importante compreender que a oração é um diálogo com Deus, de forma muito simples.

a) Falar em voz alta aquilo que o seu coração quer expressar;

b) Escrever a sua oração;

c) Criar, com sua imaginação, alguma imagem de Jesus e falar com Ele;

d) Usar uma imagem ou um ícone para ajudá-lo a ter uma direção, já que a oração é um diálogo

6) A contemplação pode se manifestar por diversas formas. Algumas não são facilmente percebidas, outras se revelam por meio de sensações externas ou internas (corpo, sentimentos, emoções e, até mesmo, compreensão). Algumas vezes, percebe-se experiências como paz, alegria profunda ou maior compreensão de Deus ou de si mesmo.

7) Importantes, na contemplação, são os frutos que ela produz na vida de cada um, principalmente de humildade e de caridade. Esses frutos vão, pouco a pouco, sendo infundidos no coração daqueles que meditam perseverantemente a Palavra de Deus, em espírito de fé.

8) Por fim, deve-se empenhar diariamente para colocar em prática a Palavra de Deus.

IMPORTANTE:

(1) As sugestões dadas não devem ser aplicadas todas de uma só vez, pois criariam confusão e cansaço.

(2) Devem ser acolhidas as sugestões que mais lhe ajudem e melhor se adaptem à sua vida.

(3) Podem ser tomados os textos bíblicos da liturgia diária da missa. Eles apresentam os trechos mais importantes da história da salvação, oferecendo uma visão panorâmica de toda a Palavra de Deus, de forma harmônica.

Fonte: Movimento da Transfiguração do Senhor

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Maria Elecir Fernandes carneiro
Maria Elecir Fernandes carneiro
1 ano atrás

Gostei muito.