COVID-19: os chineses são tão vítimas como qualquer outro ser humano

Coronel da reserva da PM e doutorando em História da Cultura pela Universidade Mackenzie também ressalta que autoridades públicas e comunicadores devem apelar à união de todos no enfrentamento da pandemia

POR LUIZ EDUARDO PESCE DE ARRUDA

Ana tem dez anos. É uma menininha linda e inteligente. Estava de máscara no mercado, esperando a mãe concluir as compras, quinze dias atrás, quando uma senhora se aproximou e a repreendeu:

– Vocês trouxeram o vírus para o Brasil e agora ficam aí, usando máscara…

Ana não é chinesa. É brasileira, filha de chineses. Oriunda de uma família de imigrantes, possivelmente como a mulher adulta que a constrangeu.

Os chineses estão no Brasil desde a vinda da Família Real, quando Dom João VI trouxe os primeiros imigrantes para a organização do Jardim Botânico da Corte, no Rio de Janeiro. Sua cultura milenar, com seu trabalho meticuloso, disciplina e atenção aos detalhes, muito contribuiu para a aclimatação de espécies vegetais hoje difundidas por todo o Brasil.

Descendentes desses primeiros imigrantes deslocaram-se ao Vale do Paraíba. Na cidade de Bananal, existe ainda hoje a rua do Fogo, pois os habitantes locais achavam curioso o hábito dos chineses manterem o fogo aceso o dia todo, preparando e bebendo chá.

Entre os anos 50 e 70, fruto da “Guerra Fria”, famílias de Taiwan, Xangai, Cantão e Hong Kong emigraram com destino ao Brasil. Um dos maiores incentivadores desse fluxo foi o Papa Paulo VI, de quem voltaremos a falar.

A partir de 1990, novo fluxo de chineses aportou no Brasil. Agora, eram imigrantes vindo do campo e de pequenas localidades no interior do país, buscando uma oportunidade de melhorar de vida. Exatamente como ocorreu com nossos avós, italianos, portugueses, espanhóis, no final do século XIX e início do século XX.

No intuito de delimitar o tema, não é objeto deste artigo discutir os limites da responsabilidade do governo chinês no que diz respeito à origem, contenção ou difusão da COVID-19.

Não há informações precisas até o momento. São muitos os interesses econômicos e geopolíticos em jogo, de modo que qualquer afirmação não passaria de mera especulação. Os fatos irão se aclarando com o passar do tempo, isso será inexorável, mas há que se reconhecer que o surgimento de uma grave epidemia, sem contramedida conhecida, em um país com 1,4 bilhão de habitantes não envolve solução imediata e fácil por parte dos governantes.

Voltemos ao Ocidente, e mais especificamente ao Brasil. Na ausência de  solução conhecida, em face do medo e do despreparo das pessoas para encarar de frente um vírus invisível e potencialmente letal, é reconfortante pensar em união dos “nossos”, o que é facilitado pela eleição de um “bode expiatório”, o diferente, responsável por todos os males.

Na Alemanha nazista, a culpa era dos judeus. Nos Balcãs, a culpa era dos bósnios, e assim por diante.

Durante a II Guerra Mundial, populações italianas e alemãs radicadas no Brasil foram alvo de medidas de exceção. Contas bancárias foram congeladas, propriedades foram expropriadas, como os “Círculos Italianos” (e nunca devolvidas) e, em casos extremos, imigrantes e marinheiros mercantes alemães e italianos foram internados em campos de concentração.

Essa postura ocorreu também nos Estados Unidos, com a internação dos japoneses – inclusive cidadãos do país, nascidos nos Estados Unidos, mas descendentes de japoneses – em verdadeiras cidades de internação.

Fatos graves, que fragilizam física e emocionalmente as pessoas, podem ressuscitar essas condutas. Atitudes apontadas como discriminatórias foram anotadas por exemplo, após o 11 de Setembro em relação a imigrantes muçulmanos nos Estados Unidos e na Europa, após atentados terroristas atribuídos a extremistas islâmicos.

A longa marcha civilizatória da humanidade alcançou, após as barbáries constatadas e relatadas durante a II Guerra Mundial, um momento único, com a edição pela ONU, em 1948 – e acolhimento pela maioria das nações –, da Declaração Universal de Direitos Humanos, uma norma comum a ser alcançada por todos os povos e nações.

Traduzida em mais de 500 idiomas, ela estabelece, pela primeira vez, a proteção universal dos direitos humanos, que enuncia já em seus primeiros artigos:

Artigo I

Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade.

Artigo II

1 – Todo ser humano tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, idioma, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição.

2 – Não será também feita nenhuma distinção fundada na condição política, jurídica ou internacional do país ou território a que pertença uma pessoa, quer se trate de um território independente, sob tutela, sem governo próprio, quer sujeito a qualquer outra limitação de soberania.

Artigo III

Todo ser humano tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal.

Idealizado por representantes de diferentes origens jurídicas e culturais de todas as regiões do mundo, a grande dificuldade, no presente, é implementar o texto.

No caso concreto, fazer com que a percepção do público de que a pandemia tem origem certa – e até mesmo dolosa, como querem fazer crer algumas fontes adeptas de teorias da conspiração – não generalize e termine por afetar inocentes.

Os chineses residentes nos países ocidentais – e no Brasil em particular –  geralmente não pertencem ao Governo ou ao Partido, tem limitada formação política, pouco sabem sobre os acontecimentos em sua pátria ancestral – exceto notícias veiculadas pela mídia ou informações truncadas oriundas de parentes e amigos. E têm de ser protegidos contra qualquer espécie de generalização discriminatória.

Autoridades públicas, referindo-se à pandemia como causada pelo “vírus chinês”, não ajudam a minimizar essa falsa percepção. Por isso, a menina Ana – e milhares de chineses residentes no Brasil e no mundo – não podem ser penalizados por um fato pelo qual não são responsáveis, com o qual não contribuíram e do qual são tão vítimas como qualquer outro ser humano na superfície da Terra.

Merece especial destaque o papel da mídia. Operadores de redes sociais propagando fake news e manipulando informações segundo seu ponto de vista, replicados sem filtro ou análise critica por seus fiéis seguidores, comunicadores de programas populares apontando irresponsavelmente culpados antes de qualquer conclusão séria por parte das autoridades, editores promovendo o agendamento das notícias, selecionando algumas e descartando outras para montar uma realidade que convenha a seus interesses ou convicções, tudo isso depõe contra a paz e em nada contribui para a tranquilidade pública ou a prevalência dos direitos fundamentais, inalienáveis de cada pessoa humana.

O Papa Paulo VI, ao criar o Dia Mundial das Comunicações Sociais, em 7 de maio de 1967, optou por um conceito que, com o correr dos anos, prevaleceria sobre o antigo conceito de “comunicação de massa”, ao reconhecer que pessoas não são massa, mas são universos inteiros contidos em cada ser humano:

Deve ser, portanto, muito apreciada, no seu justo valor, a contribuição que a imprensa, o cinema, o rádio, a televisão e os outros meios de comunicação social oferecem ao incremento da cultura, à divulgação das obras de arte, à distensão dos ânimos, ao mútuo conhecimento e compreensão entre os povos[…]. Mas, se a grandiosidade do fenômeno, que atinge cada indivíduo e toda a comunidade humana, é motivo de admiração e de regozijo, torna-se, no entanto, motivo de preocupação e incerteza. Estes meios de comunicação, de fato, destinados pela sua natureza a espalhar o pensamento, a palavra, a imagem, a informação e a publicidade, enquanto influenciam a opinião pública e, consequentemente, o modo de pensar e agir de cada indivíduo e dos grupos sociais, exercem também uma pressão sobre os espíritos, que incide profundamente sobre a mentalidade e sobre a consciência do homem, impelido como ele é, e quase submerso, por muitas e contrastantes solicitações.

Prossegue Paulo VI, destacando que a mídia não é ética ou antiética. A mídia é aética. Éticos ou antiéticos são pessoas, no caso, os comunicadores que operam a mídia:

Quem pode ignorar os perigos e os prejuízos que estes nobres instrumentos podem causar a cada pessoa e à sociedade, quando não são empregados pelo homem com sentido de responsabilidade, com reta intenção, e de conformidade com a ordem moral objetiva?

E o Papa apela à responsabilidade dos comunicadores:

Quanto maiores, portanto, são o poder e a ambivalente eficácia destes meios de comunicação, tanto mais atento e responsável deve ser o seu uso.

A mídia, em limites extremos, pode estimular a paz, a violência ou a restauração da sanidade em áreas conflagradas. Basta que nos recordemos do genocídio em Ruanda, uma das maiores tragédias humanas ocorridas após a II Guerra Mundial. Em 1994, no início da crise que culminou no genocídio, hutus usaram o rádio para desencadear a violência contra tutsis. Depois da mudança de poder, a estação ruandesa “Mille Collines” transmitia propaganda contrária aos hutus, responsabilizando-os pela deflagração da violência. A pedido de organizações de ajuda, a BBC ajudou a restaurar o equilíbrio.

Produtores dos serviços em francês e Swahili, que falavam as línguas da região, trabalharam com a Cruz Vermelha para criar uma linha de comunicação para os milhões de deslocados que tiveram que deixar suas casas, com informações detalhadas sobre os desaparecidos.

Como bem pontuou Paulo VI:

[…] Todo seu esforço, portanto, seja no sentido de difundir a verdade nas mentes e nos corações, a adesão ao bem, a ação coerente nas obras. Eles estarão assim contribuindo para a elevação da humanidade e darão uma contribuição positiva para a edificação de uma sociedade nova, mais livre, mais consciente, mais responsável, mais fraterna, mais digna (Cf. Pio XII, Discurso para a União Européia de Radiodifusão: Discursos e radiomensagens, p. 327. v.17).

Portanto, neste momento tão complexo e inédito para as pessoas, os povos e as nações, incumbe às autoridades públicas e aos comunicadores exercer com serenidade, misericórdia, compaixão e grande responsabilidade a elevada missão de que foram investidos, apelando à união de todos no enfrentamento desse trágico desafio. Sem discriminação. Sem ódios. Sem apontar culpados. E, especialmente, proteger os inocentes e os mais vulneráveis.

Luiz Eduardo Pesce de Arruda é Coronel da reserva da Policia Militar do Estado de São Paulo e doutorando em história da cultura pela Universidade Presbiteriana Mackenzie

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