Líderes religiosos refletem sobre a pandemia na perspectiva cristã-judaica

A Congregação Israelita Paulista (CIP) promoveu na noite desta terça-feira, 8, mais uma edição da série “Dilemas Éticos”, iniciativa realizada desde 2015, em parceria com a Livraria Cultura.

Devido à pandemia de COVID-19, o encontro aconteceu virtualmente e contou com a participação de Michel Schlesinger, rabino da CIP, o Cardeal Odilo Pedro Scherer, Arcebispo de São Paulo, e Marcos Jair Ebeling, Pastor Sinodal no Sudeste da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil. O evento, cujo tema foi “O futuro do diálogo”, também teve o apoio do Conselho de Fraternidade Cristã-Judaica.

NAS COMUNIDADES

No início da conversa, os líderes religiosos compartilharam como a pandemia impactou as atividades de suas respectivas comunidades. O Rabino Michel destacou que a sua comunidade está a poucos dias das festividades do Ano Novo Judaico e, este ano, a sinagoga permanecerá fechada, tendo todas as atividades acontecerão de forma virtual.

“Nós chegamos à conclusão de que essa é maneira mais segura de estar com nossos congregantes, considerando que vários deles são idosos e do grupo de risco. Pela primeira vez na história do Judaísmo, depois de quase 6 mil anos de existência, faremos a nossa reza em frente a uma câmera”, ressaltou Schlesinger.  

Os luteranos também têm realizado seus cultos e atividades religiosas de forma remota. “Os pastores e colegas foram muito ágeis no sentido de reorganizar os seus espaços e, ao mesmo tempo, as pessoas se adaptaram às transmissões, sobretudo, as mais idosas, que não tinham o hábito de participar da vida on-line”, afirmou o líder evangélico.

O Cardeal Scherer também informou que as atividades presenciais foram suspensas, mas continuaram sendo realizadas de forma virtual. “O que mais se destacou foi a organização da caridade por meio de muitas iniciativas de socorro às pessoas mais necessitada e para necessidades dentro da própria Igreja”, frisou.

Cardeal Odilo Scherer

‘NÃO SOMOS DEUS’

Os líderes também refletiram sobre como suas tradições religiosas estão interpretando teologicamente o momento atual de pandemia.

Dom Odilo alertou para o perigo de se responsabilizar Deus pela existência do vírus, sua multiplicação e consequências. “Esta é a procura por uma resposta muito simplista”, ressaltou, acrescentando que algumas consequências dessa crise convida as pessoas a uma reflexão sobre a própria existência do ponto de vista antropológico e ético.

“Talvez, a pandemia tenha nos ajudado a tomar consciência da nossa condição de criaturas. Não somos Deus, por mais que queiramos ser fortes, grandes, poderosos e confiemos nas nossas possibilidades”, salientou o Arcebispo, indicando que o novo coronavírus fez com que cada um tomasse consciência da sua fragilidade e precariedade da existência neste mundo.

INTERDEPENDÊNCIA

“Com todas as armas nucleares, com todo o dinheiro no banco, poder econômico e político, com todas as vaidades da fama, de repete, um vírus nos derruba rapidamente. Uma criatura tão minúscula que não enxergamos consegue nos colocar não só de joelho, mas, algumas vezes, matar-nos. Isso nos faz perceber a nossa finitude”, sublinhou o Cardeal.

Dom Odilo lembrou, ainda, que o Papa Francisco tem repetido diversas vezes que a pandemia tem sido ocasião para se dar conta a interdependência da humanidade. “Ninguém vence a pandemia sozinho, algumas nações e governantes tiveram muita dificuldade de perceber isso, de aceitar e entrar no diálogo conjunto de busca de soluções e de medidas a serem adotadas para prevenir e evitar a disseminação do novo coronavírus”, destacou, completando: “A interdependência nos faz sermos não só dependentes uns dos outros, mas corresponsáveis uns pelos outros”.

Pastor Marcos Jair Ebeling

CHAMADO PARA O AMOR

O Pastor Marcos reconheceu que existem alguns grupos que interpretam esse acontecimento como um “castigo de Deus contra o seu povo”. “Nós não compreendemos que Deus seja capaz de lançar sua ira sobre as pessoas dessa maneira. Entendemos o vírus mais como uma consequência de um comportamento inadequado das pessoas no seu trato com a natureza… Os ataques constantes ao meio ambiente geram desiquilíbrios bastante perceptíveis também na vida humana”, disse. Nesse sentido, Ebeling afirmou que, teologicamente, cabe a cada um rever como se dá seu relacionamento com a criação e o Criador.

Outro aspecto destacado pelo pastor foi que toda a dificuldade que se apresenta na vida humana traz consigo a oportunidade de tornar concreto a virtude maior do Cristianismo: o amor. “Quando vemos pessoas que passam por dificuldades, que sofrem, elas precisam experimentar novamente a misericórdia e o amor de Deus. As pessoas de fé são chamadas a esse exercício. Crer em Deus, neste caso, se torna algo palpável”.

IMAGEM BÍBLICA

O Rabino Michel usou como metáfora a cena bíblica de Moisés que, quando estava sobre o Monte Sinais para receber as tábuas da Lei, viveu essa “quarentena” em oração e diálogo com Deus. “Mas o povo que estava embaixo vivia aquele momento de outra forma, com solidão, medo e desespero. Tanto que fizeram o bezerro de ouro, que era consequência desse sentimento de desamparo sentido durante esses quarenta dias”, destacou.

“Embora esse vírus impacta todas as pessoas, nem todas elas têm as mesmas ferramentas para enfrentar essa pandemia e os mais vulneráveis da nossa sociedade estão sofrendo mais”, afirmou o rabino, ressaltando que a pandemia não criou desigualdade, mas as expôs de uma maneira muito violenta.

Rabino Michel Schlesinger

Recordando outra cena bíblica, a da passagem do povo hebreu pelo Mar Vermelho, Schlesinger enfatizou que essa é uma “travessia coletiva” e é preciso olhar para trás e estender a mão aos que estão em dificuldade para atravessar entre as águas. “Essa passagem só vai terminar quando a última pessoas concluí-la”, disse.

INTOLERÂNCIA

Outro tema abordado no diálogo foi a intolerância religiosa e como o diálogo inter-religioso pode contribuir para a superação do ódio. O Cardeal Scherer afirmou que atualmente, a internet te, sido um espaço propício para a manifestação de tais atos de intolerância e preconceito em relação à fé. Ele ressaltou que iniciativas como a live promovida pela CIP ajudam a enfrentar esse mal.

“Vamos mostrar juntos o rosto, conversar, mostrar que é possível sentar juntos, realizar momentos celebrativos, partindo do pressuposto de que temos as nossas diferenças de fé, porém temos tanto em comum e, a partir disso, podemos ajudar a criar a percepção de que não é necessário discriminar, insultar, ofender… No diálogo e no encontro é que se mostram as faces, as ideias, os argumentos e cada um que escuta cria seu conceito, forma a sua convicção”, salientou Dom Odilo.

“Somos diferentes, podemos pensar de forma diferente, podemos crer de formas diferentes… Mas não podemos ser diversos na humanidade. Isso, todas as religiões e todas as pessoas deveriam efetivamente ter como um de seus centros”, reforçou o Pastor Marcos.

DIÁLOGO

Questionado sobre quais seriam os limites do diálogo e do pluralismo, o Cardeal Scherer afirmou que tais limites são dados por casa pessoas, à medida que ela se fecha para a escuta do outro. Nesse sentido, ele chamou a atenção para a atual polarização ideológica que ele definiu como “uma verdadeira enfermidade cultural”.

“Que possamos superar isso quanto antes e o remédio é a abertura e o diálogo […]. Temos que romper, muitas vezes, nosso preconceito e também nossa estreiteza mental  que essa ‘bipolaridade’ ideologia tem criado”, completou Dom Odilo.

(Colaboraram: Flavio Rogério Lopes e Jenniffer Silva)

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