Na ida ao mercado, trazer a lista completa de alimentos tornou-se um privilégio

Famílias relatam dificuldades em garantir alimentação diária em seus lares

Maria Lucineide, moradora da periferia de SP: ”Não temos como ir ao mercado fazer R$ 200 de compras” (foto: Ira Romão/ O SÃO PAULO)

Não é preciso ser especialista em economia para perceber que ir ao mercado e encher o carrinho com compras para o mês está sendo uma tarefa cada vez mais difícil para os brasileiros.

Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em fevereiro, a inflação no País, medida pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) foi de 0,86%, o maior resultado para o segundo mês do ano desde 2016. E o IPCA acumulado nos últimos 12 meses foi de 5,20%, valor que está 1,11% acima do índice observado anteriormente neste mesmo intervalo de tempo. 

O grupo de “Alimentos e Bebidas” subiu 0,27%, o que mostra uma desaceleração comparada ao mês de janeiro, que foi de 1,02%. Apesar disso, alguns itens continuam com preços em alta, como a cebola, que subiu 15,59%, e as carnes, que haviam apresentado queda de 0,08% em janeiro, mas subiram 1,72% em fevereiro.

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Os altos preços dos alimentos, inclusive dos básicos, têm diminuído o poder de compra das pessoas, principalmente da população mais pobre, que se vê cada dia mais distante dos mercados.

Realidade que a costureira autônoma, Maria Lucineide Souza, 46, conhece bem. Moradora do Jardim do Russo, em Perus, zona Noroeste da capital paulista, ela e o marido, que é pedreiro, têm feito malabarismos para conseguir alimentar a família composta de seis pessoas: o casal, três filhos e uma neta.

Ao longo do dia, o segundo neto do casal, de 3 anos, também se junta à família para as refeições.

“Não temos como ir ao mercado fazer R$ 200 de compras [para o mês]. É complicado. É só compra picada. Ontem, por exemplo, meu marido trouxe arroz, mas está faltando café”, relata Lucineide, como prefere ser chamada. “É muito difícil mesmo. A gente paga uma conta de luz ou de água, quando já está chegando outra.”

A costureira costumava prestar serviços para fábricas de confecção de roupas, mas estas estão fechadas devido à pandemia. Por isso, ela tem buscado alternativas para completar o orçamento familiar, como a costura de máscaras e bordados para venda. No momento, as outras fontes de renda são a do esposo e de uma das filhas, de 24 anos, que é manicure.

Mesmo com os esforços, está difícil equilibrar o orçamento familiar. “A gente compra o básico. Ontem, meu gás acabou e eu não tinha dinheiro. Então, hoje pela manhã, fui à lotérica ver se tinha sido liberado o auxílio emergencial. Mas para mim não caiu nada. Tive que passar na casa da minha irmã e pedir [dinheiro] emprestado”, conta.

Adaptações na rotina

Enquanto conversava com a reportagem do O SÃO PAULO, a moradora de Perus preparava partes de um frango que teria que render para algumas refeições da família. “É para o almoço e o jantar de hoje, além das marmitas do meu marido e da minha filha. Se sobrar um molhinho, nós comemos no almoço de amanhã.”

Ela também falou sobre a dificuldade de conseguir levar diversidade alimentar à mesa da família. “Não temos muita opção. É arroz e pronto. Outras coisas, como bife, carne [vermelha] não temos como comprar. Disso aqui [frango], vai para o ovo ou para a salada para inteirar.”

Para reduzir custos e evitar desperdícios em casa, a costureira adota algumas estratégias. “A água que uso para lavar a roupa, jogo na descarga. E também para lavar a escada. Não jogo água fora”, afirma. “Aproveito tudo. Até a casca do abacaxi. Está ali dentro da geladeira. Lavei e deixei para bater um suco para a gente beber com limão.”

Quando se trata de compras, promoção é a palavra-chave para ela, e, por isso, faz pesquisas de preços nos mercados do bairro. “Esses dias, postaram em um grupo [de rede social] de Perus, que o arroz estava R$ 19,90. Não fui comprar porque no dia não tinha dinheiro. Mas fico atenta. Vou atrás e se tiver o dinheiro, compro.”

Já para conseguir comprar frutas e legumes, Lucineide compartilha que o segredo é ir à feira livre quando ela está perto do horário de terminar. “Se você vai de manhã com R$ 50, você não traz nada, pois tudo custa R$ 6, R$ 10. Já no fim da feira, dá para encontrar coisas de até R$ 2.”

A situação se repete

Com a chegada da pandemia, agravaram-se os problemas financeiros que já acompanhavam Alberto Fernandes, 62, e a esposa Maria Moura, 56, conhecida como Eliene, nome pelo qual o avô materno a chamava.

O casal mora na Vila Palmares, no bairro Morro Doce, cerca de 10km de Perus.

Alberto e Maria Moura: ‘Faz sete meses que fomos fazer uma compra básica’ (foto: Ira Romão/ O SÃO PAULO)

Em 2015, Alberto, que atuava como segurança, foi diagnosticado com alguns problemas cardíacos e de circulação sanguínea que o impediram de continuar trabalhando.

Desde então, o casal e a filha caçula, hoje com 17 anos, passaram a ter como única renda o auxílio-doença de Alberto. Em 2019, porém, ele perdeu o benefício. Sem renda no início da pandemia, a família vendeu os móveis para pagar o aluguel em atraso e foi morar, em dois cômodos, com a filha mais velha do casal e o único neto de 7 anos.

O Bolsa Família no valor de R$ 180 tem ajudado a completar a renda mensal, já que a filha mais velha é a única que está trabalhando. “Ela ganha um salário mínimo. Temos que pagar o aluguel, luz e água. Resumindo, quase não sobra pra alimentação”, relata Alberto.

Ele conta também que amigos e vizinhos têm sido solidários partilhando alimentos. “Nossa filha do meio, que mora em Pirituba, ajuda também de alguma forma. Tenho conseguido uma cesta básica no CRAS [Centro de Referência da Assistência Social] e peço ajuda esporadicamente para alguém. Dessa maneira, mantemos o básico.”

“Faz sete meses que fomos fazer uma compra básica. Compramos arroz, feijão, café, açúcar e uma mistura”, recorda.

Hoje em dia, a família substitui os alimentos que vão acabando na medida em que consegue doações ou compra fiado no comércio do bairro. “Com o último pagamento do Bolsa Família que recebi, paguei o que devia no comércio aqui próximo. Paguei o que já havia consumido. Não sobrou mais nada”, narra Alberto.

“Se precisar comprar alguma coisa agora, terei que pegar fiado novamente até quando a pessoa tiver a boa vontade de me vender. Se ela parar, não tenho como comprar. Quer dizer, o poder aquisitivo [de compra] não tenho”, acrescenta.

Alberto faz tratamento do coração no Instituto do Coração do Hospital das Clínicas. Para tratar os demais problemas de saúde, precisa se deslocar para outras regiões da cidade, algo que tem sido cada vez mais complicado desde que a gratuidade no transporte coletivo para idosos na faixa entre 60 e 65 anos foi extinta pela Lei nº 17.542/20 da Prefeitura de São Paulo e pelo decreto 65.414/20 do Governo Estadual.

“Foi agendado um exame para mim no Tucuruvi. Não fui porque não tive condições [financeiras]”, desabafa o segurança.

Apesar de toda a dificuldade, Alberto e a família continuam firmes na fé. Agradecidos pelas pessoas que os têm ajudado e com o pensamento positivo de que tudo melhorará. “Acredito que essa pandemia serviu para alguma coisa. Para aquele que tem consciência dos poderes de Deus, serve para ensinar a gente a valorizar uma amizade, pai, mãe, irmãos e filhos, pois estávamos afastados Dele. Era cada um por si. Temos que parar com isso e nos unir”, finaliza.

Por que os alimentos estão tão caros?

Foto: Agência IBGE Notícias

Para Vinícius Bastos, doutorando em Economia Política Mundial pela Universidade Federal do ABC (UFABC), uma das principais explicações para os altos preços dos alimentos foi “a decisão de praticamente extinguir os estoques reguladores da Conab [Companhia Nacional de Abastecimento] desde o governo Temer”. Ele explica que, “sem esses estoques reguladores, a margem de manobra do governo de influenciar os preços internos de alimentos é mínima”.

O pesquisador aponta como segunda explicação para esses preços elevados o aumento da demanda no mundo inteiro. “A desconfiança sobre o futuro faz as pessoas estocarem comida. Temos que lembrar que os alimentos são, em geral, o que chamamos de commodities. São mercadorias de pouca diferenciação e que podem ser levadas a qualquer lugar do mundo para serem vendidas. O arroz é arroz no mundo inteiro, então, se o mundo todo quiser consumir mais arroz, o preço no mundo inteiro sobe.”

Bastos afirma que, para conter a influência dos preços internacionais, é preciso controlar as exportações. Assim, haveria mais alimentos para serem vendidos nos mercados, o que empurraria os preços para baixo. “O Vietnã fez isso, controlou as exportações de arroz durante a pandemia para manter baixo o preço nos mercados locais.”

Para ele, a alta do dólar também tem influenciado os preços dos alimentos. “Quando o dólar sobe, tanto o que importamos quanto o que exportamos fica mais caro. Vamos supor que o produtor nacional de arroz venda um saco de arroz por 1 dólar no mercado internacional, quando o dólar está valendo R$ 4. Para valer a pena vender para os brasileiros, ele cobra R$ 4. No entanto, se o dólar subir para R$ 5, por que ele vai continuar vendendo arroz por R$ 4 no Brasil se ele pode vender por R$ 5 para os estrangeiros?”, exemplifica.

Sobre o impacto do IPCA acumulado do ano de 5,20% (leia mais acima), o doutorando esclareceu que, além da “perda de poder de compra” que todo mundo já percebeu, o Banco Central vai elevar as taxas de juros para tentar diminuir a inflação.

“Já elevou um pouco e tem previsão de aumentar mais. A elevação da taxa de juros aumenta os rendimentos financeiros. Isso desincentiva o investimento produtivo, porque é mais seguro deixar o dinheiro nos juros pagos pelo governo do que abrir, por exemplo, uma fábrica”, discorre Bastos.

Apesar do atual cenário, ele acredita que a inflação de agora deve começar a cair à medida que o mundo for se recuperando da pandemia, e também com o aumento da taxa de juros.

“A alta dos preços costuma incentivar o aumento da produção. Se tiver mais alimentos no mundo todo, a tendência é de esse preço cair. E a taxa de juros mais alta reduz o consumo porque aumenta o desemprego e porque quem tem dinheiro vai preferir poupar a consumir. Com um consumo geral menor, os preços tendem a se segurar. Mas o custo social disso é alto.”

Atenção da Igreja em São Paulo com quem mais precisa

O Cardeal Odilo Pedro Scherer, Arcebispo Metropolitano de São Paulo, tem pedido com frequência para que sejam mantidas durante a pandemia de COVID-19 as ações solidárias nas igrejas da Arquidiocese em benefício dos mais necessitados.

“Vamos socorrer os pobres, vamos continuar a doar, agora, sobretudo doações de alimentos não perecíveis nas paróquias, comunidades, pastorais, comunidades religiosas e novas comunidades. Doe alimentos nestes lugares e os pobres os receberão. Ajude a socorrê-los. Que ninguém passe fome por nossa causa”, pediu o Arcebispo (leia mais na página 18).

Desde o começo da pandemia, a Igreja tem buscado atender os mais necessitados. No centro de São Paulo, por exemplo, no ano passado a Tenda do Serviço Franciscano de Solidariedade (Sefras) distribuiu mais de meio milhão de refeições à população em situação de rua, desempregados, imigrantes e refugiados.

Recentemente, a Paróquia Nossa Senhora da Expectação, na Freguesia do Ó, na zona Noroeste de São Paulo, arrecadou mais de R$ 4 mil em dinheiro, que foram revertidos em cestas básicas que serão doadas às famílias que são assistidas pela Paróquia.

Em 2020, a Arquidiocese de São Paulo criou a plataforma Animando a Esperança, onde é possível saber detalhes sobre como e onde fazer doações em paróquias e outras organizações da Arquidiocese.

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