‘Não somos uma ONG, mas a comunidade dos discípulos missionários de Jesus Cristo’

Fernando Geronazzo e Filipe Domingues

Em entrevista ao O SÃO PAULO, o Cardeal Odilo Pedro Scherer, Arcebispo de São Paulo, falou sobre os principais destaques da 58ª Assembleia Geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), realizada de forma on-line, entre os dias 12 e 16.

Cardeal Odilo Pedro Scherer (foto: Luciney Martins/O SÃO PAULO)

Em entrevista ao O SÃO PAULO, o Cardeal Odilo Pedro Scherer, Arcebispo de São Paulo, falou sobre os principais destaques da 58ª Assembleia Geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), realizada de forma on-line, entre os dias 12 e 16.

Dom Odilo ressaltou que a atual pandemia e seus efeitos foram destaque nas reflexões do encontro virtual, mas enfatizou a preocupação central do episcopado brasileiro com o anúncio do Evangelho e a comunhão da Igreja.

O Purpurado lamentou que a polarização político-ideológica tenha penetrado também nos ambientes da Igreja e recordou que, “para os cristãos, a motivação e critério maior para o discernimento e a ação são oferecidos pelo Evangelho, pela nossa fé comum e a caridade”.

Recordando o apelo constante do Papa Francisco, o Arcebispo afirmou que a Igreja precisa ser mais sinodal, e “isso significa que devemos caminhar juntos, participar, colaborar e buscar juntos as melhores vias para a realização da missão”.

Sobre o enfrentamento da situação sanitária atual, Dom Odilo salientou que o problema não se resolve com a identificação de culpados, “mas com o esforço coletivo para a superação da pandemia”. Entretanto, ele sublinhou que os governantes têm a responsabilidade maior nesse esforço e, “se não estão fazendo bem a sua parte, devem ser responsabilizados”.

Leia, a seguir, a íntegra da entrevista.

O SÃO PAULO – A 58ª Assembleia Geral da CNBB aconteceu no contexto da pandemia. A partir do que foi refletido e partilhado, o que mais preocupa os bispos sobre o atual momento vivido no Brasil?

Cardeal Odilo Pedro Scherer – Evidentemente, preocupa a crise da saúde, com a pandemia de COVID-19 e os muitos sofrimentos e angústias que ela traz ao povo. Refletimos sobre os modos de ajudar o povo a atravessar este momento difícil de nossa história. Preocupamo-nos também com a vida e a missão da Igreja, o anúncio do Evangelho, a presença pública da Igreja, a comunhão e a sinodalidade na vida e na missão da Igreja, a boa celebração da liturgia, o mal-estar produzido por certa crise na comunhão da Igreja.

O tema central desta Assembleia foi a Palavra de Deus. Quais são os desafios e caminhos para a promoção da animação bíblica?

O tema central da Assembleia foi “a animação bíblica da pastoral”. O grande desafio é dar à Palavra de Deus o lugar central na vida e na missão da Igreja que lhe é próprio. Não somos uma ONG [organização não governamental], nem uma organização inspirada em um ideal humano, mas somos a comunidade dos discípulos missionários de Jesus Cristo e suas testemunhas no mundo. Portanto, o Evangelho e a Palavra de Deus, de modo geral, é que devem nos motivar, orientar, iluminar, alegrar e embasar toda a nossa vida e ação, como cristãos.

Na mensagem enviada à Assembleia, o Papa Francisco exortou os bispos a buscarem a unidade e afirmou que a Igreja no Brasil deve ser “instrumento de reconciliação”. Como o senhor analisa o atual contexto de conflitos e polarizações que atingem, inclusive, o âmbito interno da Igreja?

É lamentável que a polarização político-ideológica tenha penetrado também nos ambientes eclesiais. De certa forma, isso é inevitável, pois somos também cidadãos deste mundo, mas é preciso manter a serenidade e a objetividade nas nossas referências. A polarização, fruto de certa cegueira fundamentalista, nos leva a combater o outro por pensar diversamente de nós; visões diferentes não necessariamente se excluem, mas se completam. Nunca deveríamos esquecer que, para os cristãos, a motivação e critério maior para o discernimento e a ação são oferecidos pelo Evangelho, pela nossa fé comum e a caridade. Necessitamos de constante vigilância para não cedermos à paixão político-ideológica, mantendo-nos unidos naquilo que é o mais importante, conforme as palavras de Santo Agostinho: no essencial, unidade; no secundário, liberdade; em tudo, caridade.

Na Assembleia, as palavras sinodalidade, comunhão e colegialidade estiveram muito presentes. Essas seriam as palavras-chave para a superação dos atuais desafios eclesiais?

Esses conceitos expressam aspectos do ser e da identidade da Igreja e do exercício de sua missão. O Papa Francisco nos recorda, há anos, de que nossa Igreja precisa ser mais sinodal, e isso significa que devemos caminhar juntos, participar, colaborar e buscar juntos as melhores vias para a realização da missão. Todos os batizados, cada um à sua maneira, participam da vida e da missão da Igreja. Certamente, quando a sinodalidade for levada a sério, estaremos mais atentos contra a polarização e a paixão ideológico-política, que fazem parte de certo “mundanismo”, como advertiu o Papa Francisco, na exortação apostólica Evangelii gaudium (2013).

Em março de 2020, o Papa Francisco disse que os países que não adotassem medidas para defender a população da COVID-19 correriam o risco de viver um “genocídio viral”. O senhor acha que o Brasil está vivendo ou se encaminhando para isso?

Não acredito em teorias da conspiração, no caso da pandemia, nem em um projeto de “extermínio intencional da população”. A COVID-19 atinge a todos, pobres e ricos, pequenos e grandes. O “genocídio viral” acontece quando governantes e outros agentes públicos, por algum motivo, não tomam a sério suas responsabilidades no combate à pandemia. O Brasil, por meio da CPI da pandemia, vai investigar responsabilidades de governantes, e isso é necessário. No entanto, o problema não se resolve com a identificação de culpados, mas com o esforço coletivo para a superação da pandemia. Governantes têm a responsabilidade maior nesse esforço e, se não estão fazendo bem a sua parte, devem ser responsabilizados.

Mais da metade das mortes da COVID-19 é de idosos. No Brasil, muitos deles compõem 50% ou mais da renda familiar. Há também uma mudança demográfica em aceleração. Quais impactos demográficos e econômicos o senhor prevê na Igreja no Brasil, visto que muitas comunidades são formadas majoritariamente por pessoas idosas?

Não creio que haverá um impacto demográfico significativo, mas é bem verdade que, em algumas regiões do Brasil, a renda familiar depende em boa parte das aposentadorias dos idosos. As comunidades da Igreja estão sofrendo as mesmas dificuldades da população e também vivem sob a pressão da escassez de recursos para a sua missão. Contudo, a vida e a missão da Igreja não dependem de maior ou menor renda, mas sim de conversão, fé e caridade mais firmes e da solidariedade real entre as pessoas.

Vivemos um momento de grande valorização da ciência. Entretanto, a Igreja também tem uma crítica forte ao “cientificismo” ou à “tecnocracia”, quando a ciência ou a técnica se sobrepõem à pessoa humana e ao transcendente. Como encontrar o equilíbrio e valorizar a ciência e o importante trabalho dos cientistas?

Cientificismo e tecnocracia seriam a absolutização dessas atividades humanas, relativamente ao valor da pessoa e de outros valores fundamentais do homem. O trabalho dos cientistas e tecnólogos, porém, é louvável e necessário para a comunidade humana, devendo se manter também dentro dos padrões éticos, como qualquer atividade humana. No caso da pandemia, o envolvimento de muitos cientistas do mundo inteiro e grandes investimentos econômicos na pesquisa foram importantes para se chegar, em tempo bastante breve, às vacinas que hoje são aplicadas. A própria Igreja incentiva a ciência e a técnica, como atividades postas a serviço da pessoa e da vida humana.

O Papa Francisco faz uma defesa da criação de uma “renda básica universal” no livro “Vamos sonhar juntos”, no qual reflete sobre a pandemia. Diz que é um elemento essencial para o mundo pós-COVID. O auxílio emergencial se tornou uma espécie de renda básica temporária para alguns brasileiros. Como o senhor vê essa proposta? Foi discutida na CNBB?

Como tal, essa proposta não foi discutida na Assembleia da CNBB. A proposta do Papa aparece desde o início do seu pontificado no contexto de preocupações mais amplas: a vida digna para todas as pessoas, a fraternidade universal e a boa governança da “casa comum”, a natureza, cujos recursos não são inexauríveis. O modelo de economia atual, que visa à acumulação e à produção de supérfluos, em detrimento da satisfação das necessidades básicas para a vida digna para todos, vai levar a médio e longo prazos à insustentabilidade desse modelo econômico, à destruição da “casa comum” e, finalmente, às lutas fratricidas, guerras e morte. É necessário refletir seriamente sobre isso, e o Papa Francisco convida todos a fazerem essa reflexão.

O senhor tem destacado o crescimento da solidariedade nestes tempos de pandemia. A Igreja e a sociedade sairão desta crise mais fortalecidas na consciência e na promoção do serviço da caridade?

Acredito que sim. Muitas iniciativas louváveis estão sendo tomadas na Igreja e em outros âmbitos da vida social. Isso vai deixar ensinamentos que, por algum tempo, terão repercussões positivas. A História mostra que as grandes crises, quando enfrentadas bem, podem ser tempos criativos, sucedidos por períodos “virtuosos”. Esperamos que os sofrimentos e as lições boas da crise atual não sejam esquecidos muito rapidamente.

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