#Semcasa: Pandemia evidencia o sofrimento da população em situação de rua

Sefras terá apoio de incubadora de alimentos em prol da população de rua
Tenda no Largo São Francisco é um dos pontos de referência para o atendimento da população de rua (Foto: Luciney Martins)

Na sexta-feira, 21, comemora-se o Dia Nacional da Habitação. Em 2020, o direito fundamental a um lugar para habitar dignamente ganhou uma especial relevância quando as autoridades sanitárias ressaltam que, enquanto não houver uma vacina ou tratamento eficaz para a COVID-19, o lugar mais seguro para se proteger dessa pandemia é em casa. Esse fato levanta uma questão sobre a situação daquelas pessoas que não têm como morar e, portanto, não conseguem se proteger da pandemia.

Um estudo realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), publicado em junho, revela que a população em situação de rua no Brasil chegou a cerca de 222 mil brasileiros em março deste ano e indicou uma tendência de aumento com a crise econômica acentuada pela pandemia de COVID-19. A análise constatou que a maioria das pessoas em situação de rua (81,5%) está em municípios com mais de 100 mil habitantes, principalmente das regiões Sudeste (56,2%), Nordeste (17,2%) e Sul (15,1%).

Na capital paulista, segundo o Censo da População em Situação de Rua 2019, encomendado pela Prefeitura, há 24.344 pessoas nessa condição. No entanto, as entidades pastorais e organizações sociais que trabalham com essa população já contestavam tais números e questionavam a metodologia do Censo. E, com a pandemia, o crescimento é percebido pelo aumento da demanda por atendimento.

NAS RUAS

Basta circular pelas ruas do centro da cidade para perceber o significativo crescimento da população sem moradia. Isso também se deve ao fato de ter havido uma concentração dessas pessoas nas proximidades dos locais onde há serviços de atendimento e, sobretudo, distribuição de alimentos.

Apenas na tenda montada no Largo São Francisco pelo Serviço Franciscano de Solidariedade (Sefras), são distribuídas 2.400 refeições todos os dias. A entidade, que antes da pandemia distribuía 300 refeições, no salão do convento dos franciscanos, teve que transferir o atendimento para a rua devido ao aumento da procura.

Na fila que começa a se formar no fim da manhã para a distribuição do almoço, é possível ver pessoas de todas as idades e realidades. Muitas delas vivem em barracas no entorno do convento ou nas ruas próximas da Praça da Sé. Há mulheres com crianças e muitas outras pessoas que tinham uma moradia, mas, por perderem o emprego ou a única fonte de renda, especialmente no mercado informal, não viram outra alternativa a não ser as ruas.

SEM ALTERNATIVAS

Eric Rodrigo Reis Pereira, 28, é um desses exemplos. Ele trabalhava em uma rede de fast-food quando, em março, a empresa reduziu seu salário e sua jornada de trabalho pela metade. Sem condições de pagar o aluguel da casa em que morava, o jovem não viu outra alternativa a não ser a rua e, consequentemente, deixou o emprego. “Eu nunca dormi na rua. Na verdade, nós não podemos dizer que conseguimos dormir; no máximo, descansamos quando tem alguém acordado para vigiar o entorno. Mas, pelo menos aqui, eu tenho como me alimentar”, contou Pereira ao O SÃO PAULO.

Marcelo Luiz Borba, 47, já havia vivenciado a situação de rua no passado. Porém, alguns anos atrás, morava sozinho em um quarto alugado. Depois de um longo período de desemprego, começou a trabalhar como motorista por aplicativo. Semanas depois, porém, teve início a quarentena na cidade e ele, consequentemente, perdeu a clientela. “Tive que deixar o quarto e devolver o carro que havia alugado, e voltei para a rua”, contou.

CORONAVÍRUS

A Prefeitura de São Paulo, por meio da Secretaria Municipal da Saúde (SMS), informou que, de abril a julho, 286 pessoas em situação de rua foram diagnosticadas com a COVID-19. Destas, 28 morreram.

Frei João Paulo Gabriel, Coordenador da Tenda do Sefras no Largo São Francisco, destacou ao O SÃO PAULO que, quando se imaginava que haveria um surto incontrolável, o número de casos confirmados de COVID-19 na população em situação de rua pode ser considerado relativamente baixo. Isso, contudo, não diminui a situação de vulnerabilidade dessas pessoas e o impacto da pandemia em suas vidas.

O Frade, assim como os demais voluntários que atendem essa população, não sabe quais são os reais fatores que impediram a ocorrência de mais casos, mas apontou algumas possibilidades, como, por exemplo, o fato de as pessoas em situação de rua já viverem naturalmente um distanciamento social que, paradoxalmente, pode tê-las protegido.

“Nós estamos cuidando uns dos outros, sempre passando álcool em gel, usando máscaras. Às vezes, alguns irmãos não usam, principalmente os que estão alcoolizados. Mas nós cobramos e insistimos para que se cuidem. Se nós não nos cuidarmos, ninguém fará isso por nós”, afirmou Borba.

Também não pode ser descartada a subnotificação dessa população, uma vez que não há testagem de assintomáticos e os exames só são feitos por aqueles que apresentam sintomas e procuram atendimento médico, que, inclusive, é outro grande problema. Se o acesso ao sistema de saúde já era difícil, agora piorou.

A Prefeitura informou que existem unidades para atendimento próprio da população em situação de rua. Tanto os voluntários quanto os próprios necessitados destacam, contudo, que o atendimento não é suficiente.

HIGIENE E ACOLHIDA

Por mais que haja esforço, manter os cuidados de higiene é a maior dificuldade. Embora a Prefeitura tenha disponibilizado locais com banheiros, chuveiros e até máquinas de lavar roupas, ainda são insuficientes para a demanda.

Quanto aos locais públicos de acolhida, que foram ampliados neste período, a maior reclamação da população de rua é que, além de não haver vagas suficientes, estão funcionando em regime de “quarentena”, o que impede que as pessoas voltem depois de sair. “Isso dificulta para que possamos procurar emprego e tentar deixar essa situação”, observou Pereira.

ESPERANÇA

Borba testemunhou que viu muitas pessoas que conseguiram deixar as ruas graças ao auxílio emergencial. Nem todos, porém, conseguiram receber o benefício, como ele e Pereira. Eles estão confiantes na retomada gradual das atividades para que consigam uma oportunidade de trabalho. “Temos que ter fé que tudo isso vai passar. Deus vai nos ajudar”, afirmou.

Ao destacar o impacto da pandemia na população de rua, Frei João Paulo enfatizou: “Se, por um lado, a maioria não contraiu a doença, por outro foi atingida diretamente por suas consequências e levará muito mais tempo para sair dela”.

Além da Tenda do Sefras, há outros serviços de atendimento para a população em situação de rua na cidade, a maioria no centro, como o Projeto Vida Nova, da Missão Belém, na Praça da Sé; a Casa de Oração do Povo da Rua, na Luz; e pontos de atendimento, fruto de uma parceria entre várias entidades, dentre elas, a Pastoral do Povo da Rua.

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