Grandes papas frequentemente são mal compreendidos. Os próprios católicos e as mídias sociais procuram em que o pontífice concorda com eles e em que discorda. Se descobrem muitas concordâncias, mesmo que aparentes, consagram o pontífice. Se descobrem muitas discordâncias, o apresentam como responsável por todos os males que afligem o catolicismo. São João Paulo II, Bento XVI e Francisco não escapam dessa sina. E, entre eles, Ratzinger foi o mais penalizado. Com perfil de um acadêmico discreto, não era talhado para gestos impactantes e grandes momentos públicos. Tinha uma enorme clareza intelectual, mas pouco tato midiático. Foi relativamente fácil fazer do Cardeal Ratzinger, enquanto Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, uma espécie de “bode expiatório” das rusgas entre teólogos da libertação e o Vaticano.
Quem ler suas colocações na sua visita ao Brasil, por ocasião da Conferência de Aparecida, verá não um desejo de condenar a teologia da libertação, mas, sim, uma grande preocupação com uma visão equilibrada das posições teológicas e do trabalho pastoral da Igreja. Estimulou o compromisso social, mas insistiu – como sempre fez – nos perigos e riscos das reduções ideológicas da fé. “Equilíbrio”, em sua visão, não era um ponto médio entre opostos extremados, mas ter uma base sólida, que permitisse uma construção segura.
“Ao início do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo” (Deus caritas est, 1). Depois da Conferência de Aparecida, essa frase do Papa se tornou referência quase obrigatória para a Igreja e sintetiza a grande preocupação de Bento XVI: que vivamos unidos à pessoa de Cristo, que não compreendamos o Cristianismo apenas como um conjunto de normas morais ou de boas ideias.
Bento XVI não estava voltado aos “valores da tradição” ou à preservação da moral católica e sim aos “fundamentos da tradição”, aos fundamentos que dão sentido à moral católica. Mas não foi um fundamentalista. O que caracteriza o fundamentalista é que este quer fazer uma “ligação direta” entre os princípios fundamentais e as decisões finais, sem procurar entender o que está acontecendo de fato. Para que isso não acontecesse, Bento XVI sempre insistiu na relação entre a fé e a razão. Não se trata de um intelectual interessado em ideias abstratas, mas um homem apaixonado pelo grande fundamento, que é Cristo, sabendo que esse fundamento só poderá ser adequadamente vivido a partir do discernimento que nasce do olhar atento à realidade e de uma reflexão racional.
Muitos entenderam o título de sua encíclica dedicada às questões econômicas, Caritas in veritate, como “amor à verdade”, concluindo que o Papa amava mais as ideias que as pessoas. Mas Caritas in veritate significa “amor na verdade”, isto é, amor sincero, que olha as pessoas de modo realista. Bento XVI mostra que o amor, quando vivido de modo verdadeiro, leva ao compromisso com os mais pobres e os que sofrem, e que o amor implica num olhar realista sobre nós mesmos e sobre os outros.
Até onde pode ir a solidariedade sem o amor? Homens e mulheres podem se amar verdadeiramente sem a gratuidade? Podemos usar a ciência sem sabedoria? Pode haver sabedoria sem a consciência de um destino bom para cada ser humano? Na atual crise de civilização, é possível construir o bem comum sem o encontro com Deus? Perguntas assim orientaram a reflexão social de Bento XVI, interessando até mesmo intelectuais ateus e agnósticos.
Sem dúvida, no pós-Concílio, a preocupação de Ratzinger não era avançar mais, mas sim fortalecer os fundamentos necessários para se continuar avançando. Nesse sentido, a suposta divergência entre os pontificados de Bento XVI e Francisco se mostra falsa. Um exercício fundamental é ler a caminhada de um a partir das contribuições do outro. Francisco não pode ser adequadamente compreendido sem a solidez doutrinal dada por Bento XVI, assim como a compreensão de Bento XVI seria reduzida sem o respiro missionário de Francisco.