Bacharela em direito pela USP (2012), mestra em Arquitetura e Urbanismo pela USP (2017) e graduanda em Arquitetura e Urbanismo, também pela USP desde 2020, a advogada Vivian Barbour tem se dedicado a pesquisar os aspectos urbanísticos de São Paulo.
Autora do livro “O patrimônio existe? Sentidos da Vila Itororó”, lançado em 2019, ela analisa nesta entrevista, feita por e-mail, os aspectos da urbanização da cidade desde o começo do século XX e comenta possíveis soluções urbanísticas a partir das realidades periféricas da cidade e do Centro, incluindo as edificações tombadas pelo patrimônio público.
A seguir, leia a íntegra da entrevista, a qual também foi base para a reportagem “Do centro à periferia, capital paulista tem desafios em urbanização”, publicada na mais recente edição do O SÃO PAULO.
Ao menos desde o fim do século XIX, com a construção da Avenida Paulista, há na cidade de São Paulo a formação de áreas residenciais projetadas para aqueles que tenham mais posses financeiras. No decorrer, dos anos, porém, com a maior integração das vias urbanas, esses espaços mais reservados tornam-se também centros comerciais e essas famílias mudaram-se para outras localidades da capital paulista. Esse processo deixou quais marcas principais na urbanização da cidade, especialmente a partir da segunda metade do século XX?
Vivian Barbour – A partir de meados do século XX, a cidade de São Paulo assiste à construção de novas centralidades, a começar pela Avenida Paulista, e à consequente desvalorização e popularização da região central, que passa a ser cada vez menos alvo de investimentos. Esse processo é sentido também nas regiões residenciais próximas ao Centro, como os Campos Elíseos, que aos poucos vão sendo esvaziados por uma elite que busca cada vez mais bairros planejados como aqueles promovidos pela Companhia City, como Pacaembu e Jardim América.
Uma marca latente desse processo hoje em dia é a existência desses bairros, outrora afastados das regiões mais urbanizadas – num desejo de espelhar o conceito das cidades-jardim –, hoje em regiões bastante centrais e, no entanto, com pouquíssima densidade demográfica. Trata-se de um problema relevante, porque empurra a expansão urbana de forma horizontal – ou seja, ao invés de maior adensamento em áreas já urbanizadas, são desbravadas novas terras nas franjas da cidade, as quais carecem de serviços e infraestrutura.
A segunda metade do século XX também é o período de formação de muitos ajuntamentos populacionais nas periferias da cidade, a partir do fracionamento de grandes áreas rurais. De modo geral, nesses casos não se formaram bairros planejados. Quais os impactos que esse processo de ocupação do território imprimiu na dinâmica da cidade e quais desafios impõem à urbanização ainda hoje?
Como já comentado, a expansão urbana horizontal traz uma série de impactos para urbanização: para o poder público, há aumento de custos para provisão de infraestrutura para áreas pouco urbanizadas; para a população, há uma diminuição da qualidade de vida, por uma carência de serviços e infraestrutura, somada ao tempo excessivo gasto nos deslocamentos cotidianos.
Há que se citar, ainda, toda a questão ambiental que a expansão horizontal traz para a cidade. Maiores descolamentos em transporte, seja particular (carros), seja público, trazem um aumento da poluição sonora e atmosférica, demanda veios de circulação maiores, cortando os bairros da cidade – vide ligação Leste-Oeste, que retalhou o bairro da Bela Vista nos anos 1970 – e dificultam a vida e locomoção cotidianas por meios não motorizados – como o caminhar e o uso de bicicletas.
A organização da cidade em função de grandes avenidas e fluxos de automóveis é um desencorajamento da vida na cidade a nível dos pedestres, tornando-a menos amigável e mais erma. Com menos pessoas nas ruas, há um aumento da sensação de insegurança e da insegurança de fato. Num movimento circular, menos segurança encoraja muros e imóveis cada vez mais isolados os quais, por sua vez, desencorajam ainda mais os pedestres e a vida nas ruas. É preciso quebrar esse ciclo. O incentivo à fachada ativa e a não exigência de recuos para novas construções são alguns dos caminhos que vem sendo ensaiados. São positivos mas precisam ser aprofundados e articulados com outras políticas setoriais – da habitação, passando pela educação, mobilidade, cultura e segurança pública.
Hoje na região central nota-se o abandono de muitas edificações e uma menor concentração de residências, além de um grande contingente de pessoas vivendo nas ruas. O que é possível ser feito para revitalizar o Centro, sem que isso redunde em um processo de gentrificação?
O Centro de São Paulo concentra um grande estoque imobiliário, com construções com alto coeficiente de aproveitamento efetivo, isto é, com alta densidade construtiva. Ao mesmo tempo, é para a região que convergem os sistemas de transporte urbano e metropolitano, tornando-a muito acessível. Também é notável a oferta de serviços e infraestrutura. Apesar dessas características, assistimos, desde os anos 1970, um esvaziamento do Centro, em função da construção de novas centralidades em São Paulo, começando pela Avenida Paulista. Desde então, é um debate que se coloca no poder público e no planejamento urbano: como fortalecer o uso residencial da região? Isso permitiria o aproveitamento de estruturas já existentes, sem a necessidade de investimentos públicos nas bordas da cidade para o oferecimento dessas mesmas estruturas. Para os habitantes da cidade, isso significaria melhoria na qualidade de vida, com diminuição do tempo gasto em transportes, e acesso facilitado a serviços essenciais, estruturas urbanas e ofertas de lazer.
Para que a densidade demográfica da região se verifique, é necessário olhar para as condições desse estoque imobiliário do Centro de São Paulo. De um lado, há muito imóveis abandonados, seja por questões de especulação imobiliária, seja por questões burocráticas e registrais, que impedem o uso ou a liquidez dessas construções.
No primeiro caso – quando o imóvel é deixado na ociosidade, com pouco ou nenhum uso, à espera de uma valorização vinda de transformações do tecido urbano – o poder público tem nas mãos instrumentos que buscam dar concretude ao princípio constitucional da função social da propriedade. Podemos citar, como principal deles, o Parcelamento, Edificação e Uso Compulsórios (PEUC). Por meio dele, o proprietário de um imóvel ocioso é notificado para que o parcele, edifique e/ou use. Caso não atenda à exigência, fica, então, sujeito ao IPTU progressivo, culminando na desapropriação do imóvel. É uma forma de o poder público fiscalizar e pressionar que se atenda à função social da propriedade.
No segundo caso, o imóvel enfrenta dificuldades para adequação física a novas exigências legais, como é o caso na segurança contra incêndios, ou então apresenta uma série de irregularidades registrais que impedem seu aproveitamento ou liquidez – espólios não inventariados, ou inventários travados por brigas entre herdeiros, ou mesmo incapacidade financeira dos proprietários para manter seus imóveis regulares sob esses diversos aspectos. Para esses casos, mostra-se urgente a adequação da regulamentação construtiva e de licenciamento, para que tais imóveis não fiquem irregularizáveis. São muitas as reclamações nas burocracias para licenciamento, com diversos órgãos e instancias envolvidas – Prefeitura, Bombeiros, órgãos de preservação do patrimônio, entre outros – que muitas vezes não dialogam entre si e fazem exigências excludentes. Faz-se urgente azeitar a relação entre esses órgãos. Sabemos que há iniciativas nesse sentido, como o Aprova Rápido da Prefeitura, mas ainda há um longo caminho institucional para que elas se consolidem e deem conta da demanda represada.
Há, ainda, a situação dos imóveis tombados na região central. O que pode ser feito?
A partir de dados do Geosampa, estimamos que há mais de mil edificações tombadas, só nos distritos da Sé e República – perímetro que hoje é regulamentado pela Operação Urbana Centro, a ser substituída em breve pelo Projeto de Intervenção Urbana (PIU) Setor Central. Normalmente, esses edifícios têm maiores dificuldades de manutenção, porque à sua preservação é acrescida a camada do debate sobre restauro. Como resultado, assistimos a uma degradação desses imóveis, com dificuldades de manutenção de usos ou implementação de novos.
A partir do trabalho e pesquisa com patrimônio cultural, sabemos que o uso é essencial para garantir sua preservação. Imóveis vazios ou não inseridos nos usos cotidianos da cidade têm um caminho mais rápido para a deterioração. Assim, é importante que políticas públicas apoiem a preservação desses imóveis, que são tombados por justamente serem de interesse da coletividade. Para além das clássicas leis de incentivo fiscal, temos a Transferência do Direito de Donstruir (TDC) como um dos instrumentos mais proeminentes de apoio financeiro para a preservação desses imóveis. Em resumo, a TDC permite que o tombado aliene um potencial construtivo adicional para um terceiro interessado em construir acima do que lhe é garantido construir gratuitamente – o chamado coeficiente de aproveitamento básico – até o limite permitido por lei – o chamado coeficiente de aproveitamento máximo. Nessa transação, o tombado recebe um recurso que deve ser necessariamente ser revertido em investimento para sua preservação. Dizemos que é uma espécie de recurso carimbado, porque tem destinação específica.
Trabalhando e pesquisando a TDC há alguns anos, observamos uma série de gargalos que dificultam sua utilização. O primeiro deles é a falta de informação. São muitos os tombados que não tem ciência do instrumento, e inclusive olham com desconfiança quando o apresentamos a eles. Já sugerimos ao Departamento do Patrimônio Histórico que notificasse todos os tombados da cidade – estimados em cerca de quatro mil imóveis – sobre o instrumento. Em segundo lugar, a realização da TDC demanda um certo conhecimento específico, porque envolve procedimentos na Prefeitura que podem ser complexos, e porque o mercado de venda do potencial adicional – seus compradores são, via de regra, produtores do mercado imobiliário – é bastante concentrado e de difícil acesso. Como resultado, vemos, num raio X dos últimos anos de uso da TDC, que são pouquíssimos os imóveis da cidade que a utilizam e o perfil dos que o fazem é muito similar: normalmente, imóveis em áreas valorizadas e/ou com grande potencial alienável, de propriedade de pessoas jurídicas que têm maior capacidade administrativa, jurídica e financeira para tocar a implementação do instrumento. Em pesquisa feita para artigo publicado no Portal Justificando, por exemplo, vimos que, de fevereiro de 2019 a julho de 2020, apenas doze transferências foram feitas na cidade, e elas foram feitas por apenas sete edificações tombadas.
Nesse cenário de absoluta concentração de uso do instrumento, ficam de fora edificações que muitas vezes são as que mais precisam da política pública para garantir sua preservação: pequenas edificações, como as centenas de casas e sobrados tombados no Bixiga, e edifícios de uso residencial, como é o caso de muitos condomínios. Para estes, há ainda um outro obstáculo: o Decreto que regulamenta a TDC em São Paulo exige que eles tenham unanimidade dos coproprietários para acessar o instrumento. Isso é inviável para edifícios grandes e pequenos – do São Nicolau, com apenas 30 unidades autônomas, ao Copan, com mais de mil, ambos os prédios na República não poderão acessar a Transferência do Direito de Construir porque o Decreto traz esse obstáculo na grande maioria das vezes intransponível. O acesso de condomínios edilícios constituídos em tombados à TDC têm um grande potencial de transformação da região central: com o apoio desses recursos, os custos de manutenção desses velhos imóveis podem diminuir. Como consequência, as taxas de condomínio podem ser menores, permitindo uma maior ocupação desses imóveis – que hoje em dia, geralmente, apresentam uma taxa de vacância muito grande. Com a ocupação e uso desses imóveis em larga escala, estamos falando de uma contribuição significativa para o aumento da densidade demográfica do Centro, que é o começo de todo esse debate.
Por fim, claro que falar da preservação material do Centro não pode vir desassociada da preservação social, ou seja, da preservação das relações sociais que emprestam significado às edificações cotidianamente. Por isso, é importante que políticas como a TDC sejam acessadas por aqueles com menos recursos, porque permite que melhorias sejam feitas em seus imóveis sem que elas tenham que abdicar de morar ali. A experiência de Bolonha, na Itália, de meados do século XX, é sempre emblemática nesse sentido. Lá, o poder público promoveu uma reabilitação do centro histórico da cidade tendo como premissa o retorno das pessoas que ali moravam e o incentivo à habitação das parcelas menos favorecidas da população na região central.
No nosso trabalho cotidiano com a TDC, tivemos sempre essa preocupação – como o investimento em melhorias no bem tombado pode não implicar na remoção dos moradores menos favorecidos? Buscamos parcerias nesse sentido, sendo uma muito pertinente a do Fundo Imobiliário Comunitário para o Aluguel (FICA). O FICA adquire imóveis, os readequa e coloca para locação social para famílias de baixa renda na região central, tirando os imóveis do circuito da especulação imobiliária. Nossa proposta de atuação em parceria era juntar expertises com o FICA para que restaurássemos tombados que hoje são usados como cortiços, para garantir condições adequadas de habitabilidade desses imóveis, devolvendo-os aos seus moradores iniciais, com valores de locação a preço de custo. Trata-se de um projeto com potencial tremendo de transformação da cidade, e que hoje se encontra em fase de prototipação com uma série de parceiros.
Qual o impacto da especulação imobiliária na atual dinâmica de urbanização da cidade?
Como já sublinhado acima, especulação imobiliária implica em ociosidade da terra urbana em lugares em que muitas vezes a terra é escassa – como é o caso do Centro da cidade. Isso significa que o proprietário dessa terra busca multiplicar seus ganhos sem efetivamente usá-la, enquanto pessoas de baixa renda são empurradas para as franjas da cidade. O poder público também é penalizado, porque tem que expandir seus investimentos no território, subaproveitando as estruturas já existentes.
Expansão urbana horizontal é tanto um desperdício de dinheiro público, que poderia ser mais eficiente e melhor investido nas tantas carências que nossa população sofre, quanto uma penalização da população mais pobre, morando em condições cada vez mais precárias, cada vez mais longe de seus postos de trabalho, com cada vez mais tempo dispendido em trajetos casa-trabalho-casa.
No programa de governo que apresentou nas eleições de 2020, o prefeito Bruno Covas se comprometeu a “desenvolver soluções urbanísticas que incentivem a descentralização dos centros econômicos e comerciais” e “ampliar investimentos em urbanização de favelas e requalificação de moradias precárias, com fortalecimento das comunidades locais”. Qual a avaliação da senhora sobre estas perspectivas de ação?
Uma questão que há tempos é colocada para os planejadores urbanos em São Paulo é a necessidade de descentralização. Uma vez que a cidade já padece de uma excessiva expansão urbana horizontal, as políticas de descentralização poderiam vir em auxílio da população mais alijada da região central, para que ela não tenha que cruzar a cidade e gastar tempo, dinheiro e saúde para acessar serviços e estruturas básicas.
No entanto, a descentralização deve ser feita com responsabilidade, pois não pode incentivar ou aprofundar esse processo de expansão horizontal. A descentralização deve ser feita em conjunto com um processo de revalorização da região central – valorização não no sentido financeiro, mas sim no sentido de aproveitar os recursos ociosos que ela oferece, em especial para atender as demandas da população menos favorecida. Assim, a descentralização não pode lavar as mãos da necessária reocupação da região central. É preciso haver uma política coordenada que, ao mesmo tempo que remedia a expansão horizontal já consolidada, investe recursos e políticas no centro para que ele cumpra atenda e acolha a população, e para que seus imóveis cumpram sua função social.
A Lei de Regularização de Edificações, que prevê a regularização de até 750 mil imóveis, é uma medida que pode ser de algum modo benéfica para a urbanização da cidade ou apenas colocará na legalidade construções feitas sem o devido acompanhamento técnico?
De tempos em tempos, são promovidas políticas de regularização edilícia pelos poderes públicos municipais, principalmente porque a dinâmica social e de reprodução do tecido urbano acontece num ritmo muito mais acelerado do que preveem as legislações. Essa é a tensão cotidiana experimentada entre a “cidade legal” e a “cidade ilegal”. De um lado, tais políticas permitem que imóveis se regularizem e passem a usufruir de outras políticas, como de financiamento, que normalmente exigem uma situação regular. De outro lado, há que se ter em mente que tais regularizações não podem prescindir de padrões mínimos de segurança, e mesmo e não podem significar prejuízo para o tecido urbano como um todo. É necessário, portanto, que haja um refinamento na política para que ela não se torne irresponsável.
Há, ainda, um outro debate sobre essas ondas de regularização edilícia que é o de trazer para a legalidade diversos imóveis os quais passam a ter liquidez. E, ao mesmo tempo que isso se mostra benéfico, pode também ser fonte de especulação imobiliária, porque traz para dentro do jogo do mercado terras que até então não tinham valor porque eram “invendáveis”. Deve ser parte da política o acompanhamento das regularizações, tanto do ponto de vista técnico e de segurança, como do ponto de vista do acentuamento da especulação imobiliária.