Campanha ‘Janeiro Branco’ alerta para as ações individuais, corporativas e governamentais diante do problema. Especialistas falam ao O SÃO PAULO sobre políticas públicas viáveis em vista do bem-estar emocional da população
Alterações de humor, perda de interesse, diminuição da capacidade de concentração, culpabilidade, distúrbios de sono e de apetite e, em caso extremos, tentativas de suicídio. Esses são sinais típicos da depressão, um mal que, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), afeta, ao menos, 11,5 milhões de brasileiros.
O dado é do ano de 2017, quando a OMS também divulgou que 18,6 milhões de pessoas no Brasil têm distúrbios relacionados à ansiedade, como apreensão, inquietação, aflição, medo de que algo ruim aconteça, preocupação demasiada com o futuro, taquicardia, tremores, entre outros.
Janeiro Branco
Atento ao desalinho da saúde mental dos brasileiros, o psicólogo Leonardo Abrahão criou, em 2014, com outros colegas psicólogos, a campanha Janeiro Branco, que anualmente convida a sociedade a refletir sobre o tema e estimula as autoridades a discutir estratégias e políticas públicas a respeito. O nome faz alusão ao hábito de, no começo do ano, as pessoas colocarem em uma “página em branco” suas metas, para que incluam entre estas o bem-estar da saúde mental.
Abrahão afirma ser necessário um pacto em favor da saúde mental, alicerçado em três eixos: inicialmente, na sensibilização, psicoeducação e conscientização dos cidadãos, instituições e autoridades públicas a respeito da importância da saúde mental; depois, no comprometimento dos cidadãos, instituições e autoridades públicas, com investimentos em estratégias individuais e coletivas, particulares e institucionais, em prol de uma cultura da saúde mental; e, posteriormente, no desenvolvimento, por parte dos poderes públicos, de políticas públicas dedicadas à temática.
Quando é a hora de pedir ajuda?
De acordo com o psicólogo, o cuidado da saúde mental se dá por três níveis de efetivação.
“Em um primeiro momento, as pessoas devem realizar uma auto-observação e buscar entender se precisam, ou não, de alguma ajuda externa. Caso percebam que, sozinhas, não estão dando conta de lidar com questões que as incomodam ou as levam a sofrimentos intermináveis ou a reações disfuncionais [comportamentos que prejudicam a alimentação, o sono, a qualidade das relações interpessoais, a produtitividade saudável no trabalho, o manejo dos sentimentos e a disposição para lidar com as questões do dia a dia], podem procurar ajuda de familiares ou pessoas próximas que sejam da sua confiança. Caso isso não seja suficiente, devem procurar ajuda de profissionais da saúde mental, notadamente psicólogos(as)”, detalha Abrahão ao O SÃO PAULO, lembrando que o monitoramento da saúde mental pode se dar entre os familiares e amigos.
Situação ainda mais sensível na pandemia
Em outubro, a OMS informou que a demanda pelos serviços de saúde mental aumentou com a pandemia de COVID-19, em razão, especialmente, das situações de luto, isolamento social e perda de renda. Ao mesmo tempo, os serviços de saúde nesta área sofreram algum tipo de interrupção em 93% dos 130 países consultados pela Organização.
No Brasil, também em outubro, o Ministério da Saúde revelou dados da primeira fase de uma pesquisa sobre a saúde mental na pandemia, por meio da qual se constatou elevada proporção de ansiedade (86,5%); moderada presença de transtorno de estresse pós-traumático (45,5%); e baixa proporção de depressão (16%) em sua forma mais grave.
“A pandemia intensificou problemas econômicos, políticos e sociais que já afetavam, negativamente, a saúde mental de muitas pessoas, especialmente no Brasil – e gerou efeitos colaterais danosos à saúde psíquica de parte significativa da nossa população. Transtornos de ansiedade, transtornos de humor (como a depressão) e o uso abusivo e inadequado de substâncias psicoativas foram alguns dos principais problemas agravados”, comenta Abrahão, destacando, ainda, que a forma como as autoridades têm lidado com a pandemia e seus efeitos no Brasil impacta a saúde mental: “Abandono e inconsequências políticas geram ansiedade, insegurança e desesperança no psiquismo das pessoas”.
Políticas públicas em saúde mental
Um estudo da OMS, feito antes da pandemia de COVID-19, revelou que em todo o mundo menos de 2% dos orçamentos dos países são destinados para políticas de saúde mental.
Diante de recursos escassos, o uso adequado das estruturas sociais já existentes é um caminho para se chegar a bons resultados, conforme avalia a psicóloga Maria Evangelina Jorge Piragino, mestra em Psicologia Clínica pela PUC-SP, com décadas de experiência na atenção básica em Saúde Mental e Educação Profissional: “Nós nos tornaremos mais potentes para essa questão se estruturas que já existem nos territórios se reunirem e pensarem uma micropolítica para a região. A questão principal da saúde mental do indivíduo é sua emancipação, seu protagonismo”.
Tinda, como é mais conhecida, ressalta que as políticas públicas nessa área, em especial nas comunidades mais pobres, devem considerar as redes de proteção social que uma pessoa já possui, como a família, a vizinhança, as igrejas e os centros comunitários.
O Conselho Federal de Psicologia, em uma nota pública do ano de 2017, indica que “o cuidado com a saúde mental vai além da prevenção e do encaminhamento do indivíduo em sofrimento à psicoterapia. Nesse sentido, a efetivação das políticas públicas e inclusivas baseadas nas prerrogativas da universalidade, da integralidade e da equidade, buscando a interlocução com outros saberes e práticas profissionais, mostra-se imprescindível para a promoção da saúde mental”.
Em São Paulo
Na capital paulista, há cerca de 200 estabelecimentos dedicados aos cuidados da saúde mental, conforme dados da Prefeitura. Além dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), que atendem os transtornos mentais severos, persistentes e em crise, existem os Centros de Convivência e Cooperativa (Cecco), voltados à reabilitação psicossocial, à convivência pela via da sociabilidade e às estratégias de geração de renda; as Residências Terapêuticas (RT), as Unidades de Acolhimento (UA) e as equipes de saúde mental nas Unidades Básicas de Saúde (para casos mais leves ou estáveis) e o Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF). Também há leitos para tratamento de saúde mental em hospitais gerais.
Em razão da pandemia, as equipes da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) do município têm priorizado as visitas domiciliares e os atendimentos individuais para os pacientes mais graves, e os acompanham também por teleatendimento. Detalhes sobre onde encontrar atendimento em saúde mental na rede municipal podem ser obtidos no site Busca Saúde.
Com experiência de atuação nos CAPS, em São Paulo, a assistente social Rosislei Aparecida do Nascimento Ferreira dos Santos, pós-graduada em Saúde Mental Multidisciplinar, destaca que deve haver maior divulgação sobre os serviços: “É necessário que se desfaça esse estigma de que a saúde mental é só para as pessoas que têm transtorno”.
Especialista em Saúde Pública, a psicóloga Solange da Rocha, que já atuou em cargos de gerência e direção de CAPS, alerta que neste momento as políticas em saúde mental também devem mapear a situação da população de classe média: “Ela perdeu renda por causa da pandemia e não está contemplada nos programas sociais. Pode não ter mais condições de pagar um plano de saúde, não tem o hábito de conhecer os serviços dos SUS, e com as medidas de isolamento social perdeu muitos dos vínculos anteriores. Tudo isso pode ter efeito na saúde mental dessas pessoas”.
Maria Evangelina, Rosislei e Solange idealizarama Ibutumy – Consultoria e Assessoria em Saúde Mental, com serviços em âmbito pessoal, empresarial e para cidades. Detalhes sobre a iniciativa podem ser obtidos pelo e-mail ibutumysaudemental@gmail.com.
Em paróquias, psicólogos e psicanalistas auxiliam em questões de saúde mental
Ao procurar o sacramento da Reconciliação, o fiel relata ao confessor comportamentos e sentimentos que transcendem a orientação espiritual e envolvem questões de saúde mental. Nestes casos, o que fazer?
A recorrência dessas situações motivou o Padre Jorge Bernardes, Pároco da Paróquia Santa Rita de Cássia, na Região Episcopal Ipiranga, a convidar quatro profissionais das áreas de Psicologia e Psicanálise para atuarem voluntariamente na igreja. “Quando a pessoa vem se confessar comigo, dependendo do que relata, eu a aconselho a procurar um desses nossos profissionais voluntários. Eles não vão fazer a terapia com a pessoa, mas podem encaminhá-la para terapia”, detalhou o Sacerdote, que é formado em Psicanálise.
Desde o primeiro momento, o fiel é informado que os procedimentos não devem ser confundidos. “Ele precisa ter a certeza que uma coisa é o transtorno emocional e outra é o direcionamento espiritual, que, embora possam estar interligadas, são distintas. Meu papel é o de aconselhamento espiritual. Sou orientador espiritual”, comentou.
O Pároco cita o caso de um jovem que diz ter uma compulsão e a atribui a uma maldição. O rapaz busca se confessar antes de todas as missas. Recentemente, o Padre o convenceu a buscar um dos profissionais voluntários. “Ele começou a reconhecer que seu problema é emocional, e já aceita que não se trata de uma maldição. ‘Agora eu percebo que Deus gosta de mim, que eu não sou amaldiçoado’, falou-me da última vez. Assim, tenho conseguido trabalhar com ele nesses dois aspectos: em seu psiquismo abalado e em sua questão espiritual, mostrando a misericórdia de Deus”, explicou.
Também na Paróquia Santo Antônio, na Barra Funda, na Região Sé, duas psicólogas auxiliam o Padre Luiz Claudio de Almeida Braga, Pároco. “A ação pastoral se dá na percepção da necessidade e no direcionamento do atendimento terapêutico, a partir da aceitação do fiel. Tudo começa com o desejo de o fiel ser ajudado. Nada pode ser forçado”, comentou o Sacerdote.
“Os sinais que me alertam para um encaminhamento terapêutico estão nas histórias reveladas (traumas vividos), nas relações interpessoais (entre pais e filhos, maridos e esposas, irmãos…). Na Confissão ou orientação espiritual, busco perceber nas falas, nos gestos corporais (reações), na própria emoção da pessoa (muitos vêm às lágrimas) o peso que cada um traz consigo de suas histórias vividas”, detalhou Padre Luiz Claudio.
Há quase dois anos, a psicóloga clínica Cláudia Yaísa Gonçalves da Silva, especialista em Psicanálise e doutoranda em Psicologia Clínica pelo Instituto de Psicologia da USP, atua voluntariamente na Paróquia Santo Antônio. “Entre os fiéis que procuram o Padre Luiz Claudio, ele identifica que, em alguns casos, além da orientação espiritual, a pessoa precisa de um acompanhamento psicológico mais apurado, e, então, direciona para um profissional da Psicologia que realiza o trabalho psicoterapêutico individual”, detalha.
“Percebo que as pessoas que chegam até a mim mantêm a sua fé e continuam buscando a orientação do sacerdote. Porém, ainda precisam trabalhar mais a fundo as demais questões que afetam diretamente o aspecto emocional, como experiências traumáticas de vida e comportamentos enraizados há muito tempo, que atuam de forma inconsciente, mas afetam diretamente seu cotidiano”, comenta Cláudia.
“A soma do trabalho de orientação espiritual com o da Psicologia oferece às pessoas uma melhor capacidade de desenvolver competências úteis para enfrentar os desafios da vida, possibilitando uma recuperação mais satisfatória da sua saúde mental”, conclui a psicóloga.
Tanto o Padre Luiz Claudio quanto o Padre Jorge Bernardes asseguram que muitas das pessoas que os procuram para a Confissão ou orientação espiritual estão impactadas emocionalmente em razão da atual pandemia, por situações como conflitos nos relacionamentos familiares, medo de se infectar com o coronavírus e angústias com as consequências da pandemia, como o aumento do desemprego.