CF 2023 convoca a todos, na Igreja e na sociedade, para o combate à fome

Realizada durante a Quaresma, Campanha da Fraternidade deste ano tem como lema ‘Dai-lhes vós mesmos de comer’ (Mt 14,16) 

CNBB

Pela terceira vez em sua história, a Campanha da Fraternidade trata da temática da fome, assim como foi nos anos de 1975 e 1985. “Dai-lhes vós mesmos de comer” (Mt 14,16) é o lema desta edição da CF, que será iniciada na Quarta-feira de Cinzas, 22. 

HISTÓRICO 

Realizada pela primeira vez em 1962 na Arquidiocese de Natal (RN), a Campanha da Fraternidade ganhou abrangência nacional a partir de 1964, sendo promovida desde então pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). 

A CF sempre ocorre no período da Quaresma, em que, especialmente por meio dos exercícios do jejum, esmola e oração, os cristãos são chamados a uma maior proximidade com Deus e a uma conversão pessoal, comunitária e social. 

Entre os objetivos permanentes da CF estão o de despertar o espírito comunitário e cristão na busca do bem comum, educar para a vida em fraternidade e renovar a consciência da responsabilidade de todos pela ação evangelizadora, em vista de uma sociedade justa e solidária. Para tal, a cada ano é escolhido um tema a ser refletido e transformado em ação concreta de solidariedade.

PROPÓSITOS DA CF 2023 

A Campanha da Fraternidade de 2023 tem como objetivo geral sensibilizar a sociedade e a Igreja para o enfrentamento do flagelo da fome, por meio de compromissos que transformem esta realidade a partir do Evangelho. Ao todo, são nove os objetivos específicos: 

1) Compreender a realidade da fome à luz da fé em Jesus Cristo; 
2) Desvelar as causas estruturais da fome no Brasil; 
3) Indicar as contradições de uma economia que mata pela fome; 
4) Aprofundar o conhecimento e a compreensão das exigências evangélicas e éticas de superação da miséria e da fome; 
5) Acolher o imperativo da Palavra de Deus, que nos conduz ao compromisso e à corresponsabilidade fraterna; 
6) Investir esforços concretos em iniciativas individuais, comunitárias e sociais que levem à superação da miséria e da fome no Brasil; 
7) Estimular iniciativas de agricultura familiar agroecológica e a produção de alimentos saudáveis; 
8) Reconhecer e fomentar iniciativas conjuntas entre a comunidade de fé e outras instituições da sociedade civil organizada; 
9) Mobilizar a sociedade para uma sólida política de alimentação no Brasil, garantindo que todos tenham vida. 

‘DAI-LHES VÓS MESMOS DE COMER’ 

O subsídio da CF 2023 traz uma profunda reflexão acerca do lema escolhido: “Dai-lhes vós mesmos de comer” (Mt 14,16). Este, ao mesmo tempo em que expressa a compaixão de Jesus pela multidão faminta – uma vez que Ele jamais foi indiferente aos que sofriam –, também lembra que essa realidade só irá mudar a partir do empenho de cada pessoa em favor dos que têm fome. 

“Como se vê, Jesus compromete os discípulos. É necessário que se sintam responsáveis diante das necessidades dos outros. A comunidade cristã não pode assistir indiferente à fome no mundo” (nº22). 

No texto-base, é recordado que Deus sempre teve compaixão dos que se viam diante do flagelo da fome, como é narrado, por exemplo, no livro do Êxodo, em que o Senhor oferta o alimento ao seu povo no deserto (cf. nº116 e 117). Ainda no Antigo Testamento, os profetas denunciam a falta de cuidado e de responsabilidade dos poderosos com aqueles que não tinham pão ou que sofriam com estruturas injustas, como o estrangeiro, a viúva e o órfão (cf. nº120 e 141). 

No Novo Testamento, as primeiras comunidades cristãs têm como característica principal a comunhão na fração do pão (cf. nº122) e Jesus mostra sua predileção pelos famintos (cf. nº121). 

O imperativo de Jesus – “Dai-lhes vós mesmos de comer!” (Mt 14,16) – é uma conclamação à responsabilidade de seus discípulos: “Jesus, o Novo Moisés, nos ensina que Deus continua a alimentar seus filhos e o faz não mais como maná que cai dos céus, mas por intermédio da responsabilidade fraterna daqueles que se fazem discípulos. A diferença de Moisés, Jesus não age sozinho. Ele convida os discípulos a participarem do que Ele realiza, ordena que os discípulos reconheçam e ocupem seus lugares” (nº138). 

No texto-base, também é apontado que a fraternidade cristã só pode ser alcançada com profecia e compaixão. “Não participa efetivamente da comunhão que a Eucaristia constrói aquele que não está disposto a assumir para si a compaixão com a qual Jesus se comprometeu ou a entrega de si que Ele realizou, ou mesmo a profecia que Ele assumiu, na radicalidade de suas palavras e de sua indignação diante da injustiça” (nº154). “Há que se dizer que, diante da fome, a profecia começa sendo com- paixão para depois se tornar algum tipo de ação concreta, individual, comunitária, eclesial e socioambiental” (nº156). 

A FOME É UMA AFRONTA 

Recordando o princípio universal da destinação dos bens, conforme consta na Doutrina Social da Igreja (DSI), o texto-base indica que a fome “é um contratestemunho que não reconhece de forma prática a dignidade integral das pessoas, não considera a primazia do bem comum como o conjunto de todos os bens necessários para cada pessoa se realizar humanamente, além de gerar toda uma conjuntura que faz com que a pessoa em situação de fome esteja em menores condições de participação, como se fosse indigente, invisível, correndo o risco de reduzir a solidariedade ao assistencialismo que, embora ajude nos momentos mais agudos, não transforma efetivamente as estruturas de pecado” (nº7). 

Por isso, o enfrentamento da fome deve ir às suas causas: “Na origem deste drama estão, sobretudo, a falta de compaixão, o desinteresse de muitos e uma escassa vontade social e política de responder às obrigações internacionais” (nº9), além do fato de o alimento ser tratado como mais uma entre as tantas mercadorias, atendendo à ‘prioridade de mercado’ e à primazia do lucro (cf. nº10). Há, porém, a ponderação de que o direito humano à alimentação adequada é defendido pelo Magistério da Igreja e está previsto na Declaração Universal dos Direitos Humanos (cf. nº38). 

Luciney Martins/O SÃO PAULO

A REALIDADE BRASILEIRA 

No Brasil, conforme aponta o texto-base, vive-se a contradição de recordes na produção de alimentos e, ao mesmo tempo, do aumento do número de pessoas que passam fome, situação potencializada durante a pandemia de COVID-19. 

O subsídio da CF 2023 menciona alguns dados do II Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da COVID-I9 no Brasil (II Vigisan), da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional: 

  • Em 58,1% dos domicílios há algum nível de insegurança alimentar;
  • Em 15,5% destes, os moradores convivem com a fome (cerca de 33 milhões de pessoas); 
  • 43% das famílias com renda de até 1⁄4 do salário mínimo por pessoa passam fome. 

“A progressiva crise da economia, a pandemia e o desmonte das políticas públicas, que poderiam minimizar o impacto das duas primeiras, explicam o recrudescimento da insegurança alimentar e da fome entre o final de 2020 e o início de 2022” (nº42). 

Também são listadas como razões para a fome no País a estrutura agrária centrada em estabelecimentos fundiários, a supervalorização do agronegócio, o descaso com a agricultura familiar e o fato de o sistema produtivo agrícola ser mais voltado às exportações do que ao mercado interno (cf. nº46-47), no qual o preço dos alimentos é elevado em comparação ao salário dos trabalhadores. “A segurança alimentar das pessoas depende essencialmente do seu poder de compra, e não da disponibilidade física de alimentos” (nº51). 

A FOME TRAZ CONSEQUÊNCIAS 

A CF 2023 também alerta para as consequências da fome, entre as quais a desestabilização da estrutura familiar, incluindo os casos de migração forçada pela necessidade de sobrevivência financeira (cf. nº67). 

A fome traz ainda impactos para a saúde física e psíquica. “Pessoas expostas a riscos sociais de insegurança alimentar, leve ou moderada, substituem a alimentação saudável (alimentos naturais e pouco processados) por uma alimentação extremamente prejudicial à saúde (alimentos ultraprocessados, ricos em açúcar, sal, gordura e conservantes), dado que seus preços são menores” (nº68), e, desse modo, cresce o número de crianças má-nutridas e nas diferentes idades se verifica o retardo no desenvolvimento intelectual e maior propensão a desenvolver doenças como colesterol alto, diabetes, doenças cardiovasculares, hipertensão, depressão e ansiedade (cf. nº69). 

A QUEM CABE RESOLVER O PROBLEMA? 

No texto-base, há menções elogiosas às diferentes iniciativas de organizações sociais e de pastorais e grupos da Igreja, que buscam mitigar o drama da fome no Brasil, e a modelos de economia mais humanizados. 

É ressaltado, porém, que a maior responsabilidade em enfrentar e solucionar os problemas da miséria e da fome no País é do poder público (cf. nº83-84 e 101). 

Também se destaca o papel da família e da escola para educar as novas gerações a uma alimentação saudável e para que se supere uma cultura de descarte e desperdício de alimentos: “Aquilo que descartamos ou desperdiçamos é, precisamente, o que falta à mesa dos famintos e miseráveis” (n. 89). 

TEMPO DE AGIR 

Tendo como horizonte o compromisso de cada cristão com as obras de misericórdia, o texto-base da CF 2023 faz um amplo chamado para que se reverta o cenário da fome. 

“Afirmamos que nossa ação deve contemplar três níveis: assistencial, promocional e sociopolítico (…) O faminto precisa, sobretudo, recuperar a dignidade, o que só acontece quando lhe é devolvida a capacidade de ganhar o pão com o suor do seu rosto. Ações assistenciais são importantes na medida em que respondem a situações emergenciais. Não podem, entretanto, ser as únicas no enfrentamento da fome. São necessárias políticas públicas, principalmente de Estado, e investimentos a partir da responsabilidade social das empresas. Mais ainda é preciso que as ações mudem a realidade social, trazendo para o centro a pessoa humana e a sua dignidade, buscando a superação de uma sociedade de famintos” (nº160). 

Também se ressalta que a Igreja, por meio de sua Pastoral Social, deve dar acolhida e acompanhar todas as pessoas excluídas, valendo-se de criatividade pastoral e de mobilizações em prol de políticas públicas que atendam os mais necessitados e que conduzam a um desenvolvimento sustentável (cf. nº163). 

Ainda no texto-base, são indicadas ações de âmbito pessoal, comunitário-eclesial, social e político. 

No âmbito pessoal (cf. nº165-169), sugere-se, entre outros aspectos, que haja mais partilha com aqueles que mais precisam; que cada um questione seu próprio estilo de vida e de alimentação; que se evite o desperdício de alimentos; e que se envolva em diferentes trabalhos pastorais em favor dos mais pobres, bem como participe das discussões sobre políticas públicas. 

Na dimensão comunitário-eclesial (cf. nº167), é recordada a própria realização da Coleta Nacional da Solidariedade, no Domingo de Ramos, e sugeridas iniciativas como a realização de um levantamento das famílias e pessoas que ainda passam fome; a promoção de rodas de conversa com quem já viveu este flagelo; seminários sobre o que já vem sendo feito para superar a fome; valorização das iniciativas que promovem a alimentação saudável e compartilhada; encontros para os líderes pastorais sobre a relação Eucaristia e fome; planejar a realização do Dia Mundial dos Pobres; e manter as portas das igrejas abertas para acolhimento imediato e o cuidado sistêmico dos pobres e necessitados. 

E, no que se refere à ação sociopolítica (cf. nº168), a sociedade civil é chamada a discutir a questão da fome no Brasil; ouvir os mais pobres e famintos; fiscalizar a aplicação dos recursos públicos; organizar grupos de orientação e educação alimentar. Já aos governos nas esferas municipal, estadual e federal o chamado é para que ajam concretamente para erradicar a fome no Brasil, sendo sugeridas, entre outras medidas, o incentivo à agricultura familiar; a ampliação de mercados populares de alimentos; maiores investimentos na alimentação escolar saudável; e a criação de uma agência nacional que regule e garanta uma alimentação saudável ao povo. 

MISSÃO COMPARTILHADA 

Na conclusão do texto-base, é ressaltado que a Campanha da Fraternidade é “um instrumento de comunhão eclesial, de formação das consciências e do comportamento cristão e de edificação de uma verdadeira fraternidade cristã entre os brasileiros” (nº173). 

“Trata-se de uma Campanha, ou seja, de um conjunto de reflexões e ações que deve envolver o todo da Igreja, transbordando para o todo da sociedade. É uma ação da pastoral orgânica da Igreja! Um esforço de evangelização e educação, que busca gerar convicções e atitudes evangélicas” (nº174). 

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