“A pessoa que não é acompanhada na vida cria bolor na alma, bolor que depois a molestará com doenças, solidões torpes, tantas coisas ruins. É preciso ser acompanhado, esclarecer as coisas, repassar as moções espirituais de modo que alguém ajude a entendê-las, ajude a ver o que o Senhor quer com isso, ver onde está a tentação”.
Essa é a resposta que o Papa Francisco deu, em 24 de outubro de 2022, em um colóquio com um grupo de seminaristas e sacerdotes de Roma, quando foi perguntado sobre por que realizar direção espiritual. Na catequese de 4 de janeiro de 2023, o Pontífice voltou ao tema, afirmando que o acompanhamento espiritual “é uma condição indispensável para o discernimento. Olharmo-nos no espelho sozinhos nem sempre ajuda, pois podemos alterar a imagem. Ao contrário, olhar no espelho com o auxílio de outra pessoa, isto ajuda muito, pois o outro diz-te a verdade – quando é verdadeiro – e assim ajuda-te”.
A Igreja não obriga que seus leigos, ministros ordenados e religiosos consagrados façam direção espiritual, mas a recomenda a todos, seja aos que já caminham na fé, seja aos que estão no processo de conversão.
“A direção espiritual é a arte e ciência auxiliar à ação do Espírito Santo – que é o verdadeiro e próprio diretor das almas – para conduzir a pessoa progressivamente, desde o começo da vida espiritual, até as alturas da perfeição cristã, ou seja, à plenitude da graça, à perfeição da caridade, que é a santidade”, explicou, ao O SÃO PAULO, o Padre Pedro Paulo Pereira Funari, do clero arquidiocesano e doutorando em Teologia Espiritual em Roma.
Não deve ser confundida com a Confissão
A direção espiritual difere do sacramento da Reconciliação, já que neste se busca de maneira imediata o perdão sacramental dos pecados, enquanto na direção espiritual o que se almeja é crescer espiritualmente.
“Vais ao confessor para que te perdoe os pecados e preparas-te sobre os pecados; vais ao diretor espiritual para lhe dizeres as coisas que sucedem no teu coração, as moções espirituais, as alegrias, as irritações, aquilo que se passa dentro de ti. Se te relacionas só com o confessor e não com o diretor espiritual, não saberás crescer: não dá certo! Se te relacionas só com um diretor espiritual, um acompanhador, e não vais confessar os teus pecados, também isso não dá certo”, lembrou Francisco no referido colóquio de 2022.
Como é realizada e por quem?
O Catecismo da Igreja Católica, no parágrafo 2690, aponta que “O Espírito Santo concede a certos fiéis dons de sabedoria, de fé e de discernimento, em vista deste bem comum que é a oração (direção espiritual)”.
Desse modo, não necessariamente o diretor espiritual precisa ser um sacerdote. Leigos batizados e religiosos consagrados – seja homem, seja mulher – também podem ser diretores espirituais, desde que capacitados para tal.
Padre Pedro Funari ressalta que as três qualidades essenciais de um diretor espiritual são a ciência – deve ter profundos conhecimentos sobre as verdades da fé e sobre Teologia –; a experiência – a partir de sua própria vida espiritual e do conhecimento sobre as Sagradas Escrituras e do contato com outras almas, incluindo a vida dos santos –; e a prudência – deve saber que conselho dar conforme cada situação em que se apresente na vida da pessoa.
Não há uma periodicidade estabelecida para a direção espiritual, mas a frequência mais comum é a cada duas semanas ou uma vez por mês.
“A direção espiritual existe para que você vença as tentações, deixe de uma vez por todas o pecado, abandone o velho homem e viva a vida do novo homem regenerado em Cristo, que é a vida da graça. E é sempre crescendo nas virtudes que você pode viver esta vida. E o desenvolvimento das virtudes é este processo de santificação. A direção espiritual nos ensina o que são as virtudes, como elas se desenvolvem em nós, como fazemos para que cresçam e quais são os desafios a este respeito”, detalha Padre Pedro Funari.
Caminho de evolução à santidade
Na já mencionada Catequese de janeiro de 2023, o Papa Francisco lembrou que se o processo de acompanhamento espiritual for dócil ao Espírito Santo, “permitirá desmascarar equívocos, até graves, na consideração de nós mesmos e na relação com o Senhor”.
Padre Pedro Funari lembra que o desenvolvimento da graça tem exigências e obstáculos próprios nas diferentes etapas da vida espiritual: “A direção espiritual é útil justamente para compreender esses momentos, superar esses obstáculos e para que a alma seja sempre mais generosa, que não desanime no meio da escuridão, que não ceda à tentação, e que, de modo positivo, busque sempre as virtudes, o crescimento no amor”.
Por fim, o Sacerdote enfatiza: “Não se deve fazer direção espiritual para resolver um ‘probleminha’ da vida, pois não é como ir ao médico quando se está com um problema de saúde. A direção espiritual é para aqueles que querem se santificar, que querem viver a vida da graça. É, realmente, a busca de uma vida santa”.
Introdução à vida devota
Ao longo da história, muitos santos se dedicaram a mostrar que a santidade é a meta de vida do cristão. Assim o fez São Francisco de Sales (1567-1622), santo e doutor da Igreja, que publicou em 1608 o livro “Introdução à vida devota”, um compilado das cartas de direção espiritual que ele escrevera a Louise Duchâtel, a senhora de Charmoisy, representada no livro pela personagem Filoteia.
Ao longo da obra, o Santo indica uma série de práticas para a santificação da vida no cotidiano.
Em um dos trechos, por exemplo, aponta que “o exercício de purificação da alma não pode nem deve se interromper senão ao término de nossa vida. Não nos atribulemos então, com nossas imperfeições, pois nossa perfeição consiste em combatê-las, e não poderíamos combatê-las se não as víssemos, nem vencê-las se não as encontrássemos; nossa vitória não consiste em não senti-las, mas em não consenti-las”. Em outro, ressalta que a oração “coloca nosso entendimento sob a claridade e a luz divina, e, ao expor nossa vontade ao calor do amor celeste, não há nada que purifique tão bem nosso entendimento de suas ignorâncias e nossa vontade de suas afeições depravadas”.
“Enquanto Santa Teresa de Jesus, São João da Cruz e outros doutores da Igreja sobre a vida espiritual bem descreveram as leis universais no processo de santificação, São Francisco de Sales soube aplicá-las de uma maneira extraordinariamente profunda para as almas, de modo concreto, e o fez com tal doçura, mansidão e radicalidade interior, que as almas se tornavam santas seguindo seus conselhos, porque ele compreendia a universalidade desses mesmos conselhos. Por isso, este livro é tão importante”, detalha Padre Pedro Paulo Pereira Funari, doutorando em Teologia Espiritual em Roma, tendo como tema de sua tese “A Direção Espiritual aos Cônjuges nas Cartas de São Francisco de Sales”.
Sobre o fato de esse livro ser uma referência muito atual mesmo tendo sido escrito há mais de 400 anos, o Sacerdote lembra que os desafios que as almas encontram na vida espiritual não mudam de uma época para outra: “O que muda é a materialidade, as circunstâncias exteriores, mas o ser humano continua o mesmo e chamado à mesma santidade”.
Belíssimo texto!