Festividade que une fé e cultura há mais de dois séculos foi recentemente reconhecida como Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil
Em dezembro, o município de Bragança, no estado do Pará, torna-se cenário para uma das mais antigas tradições devocionais do Norte do Brasil: a Festividade do Glorioso São Benedito e Marujada de Bragança, tendo seu ponto alto nos dias 25, Natal, e 26, quando é solenemente festejado o ‘Santo Preto’, filho de pais escravos, nascido há 500 anos, em 1524, na Itália.
Os primórdios desta festividade que mescla expressões artísticas e manifestações da fé católica data de 3 de setembro de 1798, quando os escravos da vila de Bragança criaram a Irmandade do Glorioso São Benedito para celebrar solenemente o Santo.
“Na época em que começou a festa, Bragança, uma comunidade rural, só tinha missa uma vez por ano, no dia 25 de dezembro, a missa de Natal. E já no dia seguinte, se celebrava São Benedito, com todos se unindo para a confraternização”, explicou, ao O SÃO PAULO, o capitão José Maria Santiago. Nessa festividade, o principal papel de liderança, porém, é de uma mulher: a capitoa, que desde 2013 é Maria de Jesus. Ela e o capitão estiveram em São Paulo, em julho, para participar da ExpoCatólica.
“No dia de Natal, a marujada se veste de branco e azul, para festejar o nascimento do Menino Jesus. Já no dia 26, de vermelho e branco, em homenagem a São Benedito”, explicou à reportagem Carlos Figueira, da Secretaria de Turismo do Pará, detalhando, ainda, que a Irmandade cuida de toda a parte cultural da festa, enquanto a dimensão religiosa fica a cargo da Igreja de São Benedito, da Diocese de Bragança.
COMITIVAS VÃO A COMUNIDADES
Os ritos que envolvem a Festividade do Glorioso São Benedito e Marujada de Bragança começam bem antes de dezembro. Em abril, três comitivas, após serem abençoadas em uma missa, partem com três imagens do Santo para destinos diferentes de Bragança: os campos, as praias e as colônias.
A tarefa principal das comitivas é fazer a esmolação, visitas às comunidades para orações e angariamento de donativos à festividade. “É, em muitos casos, a única presença religiosa nas localidades mais distantes da sede do município. Cada comitiva de esmoleiros leva uma imagem de São Benedito, instrumentos musicais e bandeiras, e executa um conjunto de canções orantes em latim, ladainhas e folias em homenagem a São Benedito, de acordo com um calendário de visitas nas casas de devotos, que pagam suas promessas hospedando e alimentando os esmoleiros”, detalha o professor e historiador Dário Benedito Rodrigues, no artigo “Marujada de São Benedito: joia cultural de Bragança e Patrimônio do Pará”.
Após meses de esmolação, as comitivas retornam a Bragança, sendo recebidas com muita festa e orações às margens do rio Caeté. As três imagens do Santo são hospedadas por mais alguns dias nas casas de promesseiros antes de retornarem à Igreja de São Benedito para o início da novena, em 18 de dezembro, período em que o munícipio com 123 mil habitantes recebe um público visitante ainda maior: foram 136 mil pessoas em 2023, conforme dados da Secretaria de Turismo do Pará.
UMA ALEGRE MANIFESTAÇÃO DE FÉ
Até o fim de dezembro, Bragança se torna um misto de cores, sons, danças e manifestações da fé católica. No já referido artigo de Dário Benedito, há detalhes sobre algumas das tradições desta festividade.
Entre as danças executadas pelos marujos e marujas estão a Roda, Retumbão – ritmo do lundu de origem afro-brasileira –, Chorado, Bagre, Arrasta-Pé, Xote, Mazurca e Valsa, estas duas últimas de origem europeia.
Tanto no dia 25 quanto no dia 26, o juiz ou juíza da festa oferecem o almoço a todos da marujada, em sinal de gratidão por uma graça alcançada.
Na tarde do dia de Natal, acontece a Cavalhada, um jogo que remete à luta entre cristãos e mouros, marcado pelas velozes arrancadas com os cavalos. Acontece também o Arraial, com shows de músicos locais e feiras de artesanato.
No dia 26, há o “Leilão do Santo”, com os donativos obtidos ao longo dos meses de esmolação. “Este acontecimento dentro da festividade corresponde a um cerimonial de trocas entre o promesseiro e São Benedito, em favor de graças alcançadas. Os devotos, durante o ‘serviço de esmolação’, comprometem-se a levar sua ‘esmola’ para o leilão… são leiloados desde cachos de pitomba até animais de porte como garrotes, porcos, cabras etc”, detalha Dário em seu artigo. Os valores obtidos no leilão ajudam a manter as atividades da Igreja de São Benedito.
Um momento significativo de manifestação da fé é o Bendito, com louvores a Deus e a São Benedito, “em agradecimento pela alegria e fartura das refeições ou de qualquer outro ritual. Faz-se o canto ‘Benedictus’, em latim, tirado da tradição da Igreja Católica. É também cantado após as ladainhas e folias nos dias 18, 25 e 26 de dezembro e em 1º de janeiro, em eventos de agradecimento e na chegada das comitivas nas casas.
No dia 26, acontece o ponto alto da festividade: a Procissão, “iniciada pelo cruciferário (o que carrega a cruz), membro da Irmandade, do Santíssimo Sacramento e pelas enormes filas de marujos e marujas nas laterais, entremeadas de mais de seis estandartes em tons de vermelho e branco com a insígnia de São Benedito e o Menino Jesus, levado por marujos e marujas escolhidos… Na procissão, observa-se a necessidade de se tocar ou até de se carregar o andor, beijar a fita de São Benedito, pagar promessa e agradecer ao Santo pela graça alcançada”, detalha Dário.
PATRIMÔNIO CULTURAL IMATERIAL DO BRASIL
Ao completar 226 anos, as Marujadas de São Benedito do Pará e de outras adjacências do Rio Caeté foram registradas como Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil, em 4 de setembro, durante a 105ª Reunião do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural, realizada no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), em Brasília (DF).
A cerimônia de certificação ocorreu em 6 de dezembro, no Museu da Marujada, em Bragança, após a missa realizada na Igreja de São Benedito.
“Este é o reconhecimento de uma longa vivência cultural, religiosa, social, antropológica e que se reflete na beleza plástica dessa festa. Cumprimento a todas as marujadas”, declarou, na ocasião, Dom Raimundo Possidônio, Bispo de Bragança.
Com a certificação, os organizadores das marujadas projetam que essa tradição estará preservada para as próximas gerações e que será possível impulsionar o desenvolvimento de políticas de divulgação, preservação, educação patrimonial e promoção da cultura local.
Saiba mais sobre a festividade pelo Instagram: @saobeneditobraganca