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Missão Belém: Padre Giampietro e Irmã Cacilda falam do resgate de 30 mil vidas do ‘inferno’ da rua e das drogas

Era uma tarde de sexta-feira, 3 de outubro. O calor e o ruído da Zona Leste de São Paulo mal alcançavam a viela número 6 da comunidade Nelson Cruz, no Belenzinho, onde se encontra a “casa-mãe” da Missão Belém. Mais do que um endereço, o “barraco” de madeirite, onde tudo começou em 2005, é a materialização da simplicidade que rege o carisma da comunidade. Neste ambiente austero, mas transbordante de fé, encontramos os fundadores, o missionário italiano Padre Gianpietro Carraro e a paulistana Irmã Cacilda da Silva Leste.

Fotos: Luciney Martins/O SÃO PAULO

O chão daquele “barraco” é o mesmo que sustenta a escolha radical de viver no meio dos mais pobres, oferecendo um testemunho vivo do Verbo que se fez carne para salvar a humanidade. Na Missão Belém, o Evangelho não é apenas pregado; ele é vivido no resgate diário de homens e mulheres da rua e da dependência química, restituindo-lhes a dignidade perdida.

Na entrevista concedida ao O SÃO PAULO, por ocasião da celebração dos 20 anos da Missão Belém, é possível conhecer um pouco mais daqueles que sentiram o chamado de Deus para iniciar essa obra de evangelização que é um eco concreto e atual do amor incondicional para com os pobres que trata a primeira exortação apostólica de Leão XIV, Dilexi te, sobre o amor que se dobra perante os mais necessitados. Leia a entrevista completa.

O SÃO PAULO – Para iniciar, quem é o Padre Gianpietro?

Padre Gianpietro Carraro – Eu nasci em uma pequena cidade perto de Veneza, pertencente à Diocese de Pádua. Desde criança, eu participava da igreja. Aos 4 anos, já era coroinha. Lembro-me de que não alcançava o altar, então eu o via de baixo, e dali também via toda a igreja. Na minha primeira Comunhão, olhando para o padre, veio um pensamento puramente de criança: “Eu vou ser padre”. Passaram-se 52 anos desse fato, e aqui estou. Nunca voltei atrás, nunca houve um dia em que me arrependi.

Fui para o seminário em Pádua. Em meu coração, porém, sempre esteve presente o pensamento missionário. Naquela pequena cidadezinha, havia uma igrejinha. Nela, havia uma pequena caixinha com uma imagem de ferro de uma criança com feições africanas. Diziam-nos: “Faça um pequeno sacrifício, coloque sua moedinha para o moreto”, que significa “pequena criança africana”. Eu me apaixonei pelo Brasil, pela Amazônia, porque havia um missionário que tinha vivido na Amazônia.

Eu me sentia feliz, caminhando em meio a todas as dificuldades da juventude, até que chegou o dia em que fui ordenado, em 21 de abril de 1987, em Chioggia, uma pequena diocese próxima a Veneza. Eu me preparava para ser missionário e partir da minha terra, pois, na minha mente, se eu fosse, não voltaria.

Em 1994, vim para o Brasil como missionário em Belo Horizonte (MG). Minha atividade era, sobretudo, em nível diocesano, trabalhando na dimensão missionária. Fiquei apenas três anos, mas sempre nas favelas. Fui enviado para São Paulo, mais precisamente à Diocese de Campo Limpo. Começamos uma paróquia que não existia, na periferia de Embu-Guaçu. Pela primeira vez, tive um grande choque com a realidade da delinquência. Isso foi em 1997. Naquela região, havia muito “pé-de-pato” – os justiceiros que matavam por dinheiro. Era uma área muito violenta.

Lembro que um dia, indo celebrar a missa da manhã, havia três jovens mortos no quintal da igreja. Ao lado, havia mais três. Durante a celebração, eu me perguntava: “Mas eu sou o padre de quem? Sou o padre destes ou dos que morreram?”. Eu não conhecia aquele mundo e fiz uma oração a Deus, pedindo que me ajudasse a entrar nesse mundo.

Uma vez, visitei a casa de uma senhora. Ela saiu, apontou com uma mão e disse: “São eles”. Eu olhei e havia lá seis ou sete jovens com capuz e com armas. Fiquei bastante chocado. Veio, então, aquela voz interior de Deus que me disse: “Eles são seus paroquianos, você não vai cumprimentá-los?”

Eu fui na direção deles, aproximei-me e estendi a mão. Um deles pegou na minha mão. Pouco depois, um deles avisou que eu estava ali. A senhora levou um jovem de 15 anos para dentro, e ele começou a gritar: “Fui eu que matei!” Pedi que se acalmasse e me contasse tudo. Perguntei se ele queria o perdão de Deus, e ele aceitou. Coloquei a mão na cabeça, e lhe dei a absolvição. Foi um momento muito forte. Entrou mais um, era o chefe deles. Ele também quis contar toda a sua história. Falei algo que, talvez hoje, eu não diria: “Gente, vocês vão para o inferno se não mudarem de vida”. Convidei-os para um retiro. Naquela noite, fui buscá-los de perua.

Lembro que o chefe se sentou ao meu lado. Ele levantou a camisa e mostrou uma arma. Tive que tirar três pistolas deles e deixá-las em um local seguro. O encontro começou. Tínhamos 100 jovens. Foi muito forte. Eles se deixaram tocar por Deus. A partir daí, começamos a ter louvor e oração todo sábado.

E quem é a Irmã Cacilda?

Irmã Cacilda da Silva Leste – Eu nasci em São Paulo. Inicialmente, eu pensava em ter uma vida considerada normal, como a de qualquer jovem: estudar, ter uma profissão, casar e construir uma família.

Contudo, a sensibilidade com os pobres me acompanha desde muito cedo, influenciada por minha mãe, que sempre acolhia irmãos da rua. Aos 15 anos, ao ler as Bem-Aventuranças (“Bem-aventurados os pobres”), senti uma forte comoção interior.

Após o falecimento repentino do meu pai, minha mãe passou por um período de depressão. Fomos convidadas para um grupo de oração, e a presença de pessoas simples e alegres me tocou. Ali, comecei a me engajar, ajudando em um projeto de acolhimento para famílias afetadas por drogas.

Irmã Cacilda e Dom Odilo com crianças no Haiti (foto: Missão Belém)

Em seguida, conheci a comunidade de missionários italianos. Ver uma missionária limpando o chão com alegria me impactou profundamente. Após uma experiência de 15 dias com eles, senti um forte impulso interior e iniciei um discernimento vocacional. Entendi que Deus me chamava para uma família muito maior.

Comecei minha experiência missionária na comunidade, intensificando a Pastoral de Rua. Com o Padre Gianpietro, começamos a buscar onde estava “Belém”, ou seja, quem eram os mais pobres. Fui a primeira jovem a coordenar um grupo para se aproximar do mundo da rua. Dormíamos nas ruas e nos viadutos para estar com eles. Foi uma “atração irresistível” que nos impeliu para o nascimento da Missão Belém.

O que motivou o início da Missão Belém?

Padre Gianpietro – Após ser incardinado na Arquidiocese de São Paulo, em 2001, eu fui trabalhar em uma área que se estava tentando iniciar uma comunidade paroquial em Taipas [Região Brasilândia]. Contudo, sempre que ia ao centro da capital, era impossível não se chocar com a realidade do povo de rua que vivia, sobretudo, na Praça da Sé. Fazíamos o que se chama Pastoral de Rua. Levávamos um cafezinho e criávamos um laço. Logo entendemos que era preciso mergulhar nesse mundo para viver com eles.

Assim, nos últimos dias de 2001 para 2002, começamos nossa missão de rua, morando e dormindo na rua. Eles começaram a pedir ajuda, que os acolhesse em minha casa. Eu vivia em um barraquinho em Taipas. Pensei: “Vou acolher vocês no meu barraco”, pois o pensamento era nunca dizer “não”. Comecei a receber três ou quatro em casa. Acabaram me roubando o barraco e eu fiquei para fora. Transformaram o lugar em uma “biqueira”. Quando voltei de uma viagem, tive que dormir na igreja.

Compreendemos, então, que era preciso uma casa de acolhida, um ambiente e uma metodologia específicos. Assim, decidimos iniciar a Missão Belém em 1º de outubro de 2005. Entendemos que era preciso começar algo específico para acolher este povo. Começamos aqui, exatamente neste barraco onde você está agora [Comunidade Nelson Cruz, no Belenzinho].

Arquivo Missão Belém

Irmã Cacilda – No início, nossa vida estava cada vez mais envolvida por eles. Começamos a acolher nos nossos barracos, depois tentamos buscar trabalho ou fazer alguma coisa. Fomos conhecendo mais gente e apanhamos bastante até encontrar o jeito certo de lidar com eles. A rua não é de flores. Todo mundo poetiza, mas a rua não tem nada de poesia; é muito duro, muito concreto. Porém, era ali que Jesus pedia para nos encarnarmos.

Vendo o povo encostado no paredão do vale, sobretudo as crianças, ele nos falou. As crianças foram um sinal para nós. Tínhamos essa interrogação no coração: “Como alcançar esse povo? Como alcançar esse mundo?” Atravessando o Viaduto do Chá por cima, um grupo de meninos de rua veio na nossa direção e logo se atraíram pelos crucifixos. Começaram a puxar, a grudar na gente, e fomos entendendo: “Deus está falando”. Tivemos muitas experiências, como dormir com um grupo deles lá embaixo. Numa manhã dessas, um dos meninos, o Rafaelzinho, virou para o Padre e disse: “Padre, você vai me levar para sua casa, né?” Ele me chamou e disse: “Cacilda, será que a gente pode, de repente, abrir uma casa, fazer uma casa com esses meninos?” Eu olhei e disse: “Meu Deus, vamos!” Havia uma senhora que sempre emprestava o sítio para nossos retiros de jovens. Explicamos, e ela autorizou. Assim começamos.

Quando chegamos no período de 2005, eu estava fazendo uma experiência na Favela do Moinho. Lá, fizemos muitas experiências profundas com os pobres: pessoas muito sofridas, muitos jovens envolvidos com o tráfico e a bandidagem, e as crianças no meio disso tudo. Foi lá que tomamos a consciência mais profunda de que Deus estava nos direcionando a dedicar todas as forças aos pobres. Na oração, pedindo a Deus luz, e em tantas experiências que não dá para falar agora, chegamos à conclusão no primeiro de outubro: esse era o caminho que deveríamos seguir e ver o que Deus faria.

Por que Belém?

Padre Gianpietro – O nome Belém remete ao lugar onde Jesus nasceu. Belém é uma gruta, um estábulo. É ali que vemos Jesus nascer pobre no meio dos pobres. Deus se encarna pobre no meio dos pastores, que eram marginalizados. Isso conquistou o nosso coração, pois sempre quisemos ir ao encontro dos pobres no meio dos pobres. É por isso que você vê este barraco de madeirite; quisemos que ele ficasse o mais parecido possível com o dia em que chegamos. Nosso pensamento é sempre nos encarnar no meio dos pobres para evangelizar a partir deles.

O que é evangelizar com e para os pobres?

Padre Gianpietro – É possível tocar com a mão a força do Evangelho: Jesus é o Salvador de verdade. Ele salva do lixo, da droga, do desespero. Quando eles vêm para a Missão, descobrem, antes de tudo, uma vida nova. Essa vida nova se manifesta na cama, na comida, no banho e na acolhida familiar calorosa que oferecemos. Eles sentem que Deus os está amando.

Um acolhido da Sé me contou que acordava à noite e se dava beliscões para ter certeza de que não era um sonho. “Eu não estou sonhando. É verdade. Eu estou neste lugar. Estou dormindo na cama. Estou comendo. Estou feliz”.

Não existe alegria na rua. Quando alguém vem para a Missão, pode haver pobreza, mas há muita fraternidade, espiritualidade e acolhida. Eles meditam o Evangelho do dia, escolhem um propósito, escrevem-no na mão e tentam vivê-lo. Isso os faz entrar em uma nova dimensão.

Irmã Cacilda – É para os pobres, com eles. É, de fato, falar de Jesus, testemunhar o amor de Deus. Mas sentimos que Jesus nos pediu essa evangelização de uma maneira bem concreta: encarnar-se, assumir na própria carne a vida dos pobres. Fazer as escolhas pessoais e comunitárias sempre em vista dos pobres.

Lembro que estávamos na rua, logo no primeiro ano de comunidade. Eu me afastei, virei e vi a cena: nós todos no meio deles. A palavra que Deus me inspirou foi: “Encarnem-se. É isso que eu quero de vocês. Não é tanto o que vocês falam, mas é o que vocês vivem com eles. Entrem no meio sem medo, mergulhem”. Essa também foi uma palavra-chave para o Padre João Pedro no início e para mim, ao abrir a missão no Haiti.

Somos chamados a encarnar a pobreza de Deus no meio desse povo e assumir a vida deles. É como se Deus nos pedisse para experimentar um pouco dessa experiência que Jesus fez. Entrar nessa realidade, abraçando a vida de pobreza. Por isso, a Missão Belém procura os pobres nos “bolsões infernais de pobreza”. Poderíamos morar em um lugar mais tranquilo, mas sentimos que Deus nos pede isso: “Venham para uma favela”. Compartilhamos com eles a agonia da polícia e do tráfico, o susto de viver em um ambiente assim. Sentimos que Deus nos tira os aspectos da nossa humanidade, e passamos a sentir as dores deles, que agora são nossas também.

A evangelização que Deus nos pede, através do carisma Belém, é essa primeira identificação de se encarnar. É buscar um jeito humilde de viver na alimentação, no vestuário, no ambiente e assumir essa vida dos pobres. A partir daí, vem o anúncio, com a catequese e tudo o mais, mas, sobretudo, descer na pobreza. Sentimos muito isso. Ir para a rua é sentar-se na calçada e escutar, acolher o coração daquele homem, mulher ou criança que sofre, que às vezes só quer deitar-se no seu colo e chorar.

Nossa evangelização sempre se resumiu nesses longos períodos na rua. Chegamos a viver seis meses na rua direta, eu e Padre João Pedro. Depois, criamos uma fraternidade itinerante na rua, justamente para estar com os pobres e acolher o coração deles, pois eles são a “pupila dos olhos de Deus”, o coração sofredor de Jesus. Portanto, Belém é a encarnação. A evangelização de Belém é encarnar a vida dos pobres, assumi-la para si e viver, mesmo com nossos limites, essas dores.

Vemos na história da Missão Belém muitas pessoas que têm o coração tocado e convertido para a dimensão da pobreza a partir da realidade da qual fazem parte, como empresários e benfeitores. Gostaria que vocês falassem um pouco sobre essa forma de participação.

Padre Gianpietro – É importante entender que Deus nos chama a ser família, e cada um faz o máximo. Existem pessoas pobres, na Missão Belém percebe-se isso: muitos pobres que vieram da rua hoje sustentam as casas de acolhida.

É claro que há pessoas com melhores condições econômicas que sentem o desejo de se unir a nós. Elas têm o coração apaixonado pelos pobres e fazem tudo o que podem. É claro que o Evangelho está aí: “Quem tem bens neste mundo e fecha o seu coração a quem precisa, como o amor de Deus pode habitar nele?” Essa frase norteia a Missão Belém. Outro princípio: “Enquanto existir um pobre sobre a Terra, rico será quem pode fazer algo por ele e não faz.” Isso está escrito em nossas constituições.

O que vemos é que há pessoas que realmente querem ajudar. Por exemplo, há uma pessoa em Jundiaí que tem uma rede de supermercados e se aproximou da Missão Belém. Ele perguntou: “Como posso ajudar a Missão Belém?” Anos atrás, eu o respondi: “Seu dízimo será dar 10% das vagas de trabalho que você tem para a Missão Belém, para aqueles que saem da missão.” Ele tem mil funcionários e deu 100 vagas para a Missão Belém. Na verdade, hoje são 150. A estrutura da empresa dele está se transformando, praticamente, para acolher quem sai da Missão Belém depois da restauração. Ele está abrindo mais um supermercado, pensando que poderia empregar mais pessoas da Missão Belém.

Outro exemplo é o do nosso engenheiro Antônio Walter. Ele é uma pessoa que construiu 200 prédios na vida. Um grande empresário de Alphaville. Tem uma incorporadora e é um grande engenheiro. Hoje ele é o engenheiro que acompanha as obras do edifício. Precisávamos de uma pessoa muito experiente como ele, e ele está se doando totalmente. Basicamente, ele fica seis a oito horas por dia conosco, conduzindo nossos trabalhos. São dois exemplos, sem contar milhares de outros.

Quando se fala em acompanhamento de pessoas em situação de dependência química, todas as obras e projetos, ligados ou não à igreja, são imediatamente entendidos como uma clínica de recuperação. Recentemente, vocês tiveram de explicar ao Supremo Tribunal Federal (STF) a natureza da Missão Belém. É um desafio fazer com que compreendam essa obra?

Membros da Missão Belém com o ministro Gilmar Mendes (arquivo Missão Belém)

Padre Gianpietro – De fato, fomos lá duas vezes nos últimos meses devido a processos. A Missão Belém é confundida por alguns promotores que dizem que somos uma clínica clandestina. Clandestino não somos, pois todos sabem onde estamos. Inclusive, hoje temos 700 doentes acolhidos, e eles são relatados ano a ano ao Ministério Público do Estado de São Paulo. Não existe nada escondido. Defendemos o direito de viver a nossa fé e a liberdade religiosa desta forma: como uma família de fé que acolhe quem deseja se unir a nós.

E não foi fácil. A primeira sentença do ministro Gilmar Mendes foi a condenação da Missão Belém. Quando a condenação chegou às nossas mãos, percebemos que ele não tinha entendido. Naquela noite, resolvemos mandar dois missionários para Brasília para tentar entrar no STF e clarear a situação para o juiz. Os milagres existem: eles conseguiram passar a primeira e a segunda barreira no STF e chegaram até a assessora principal do ministro.

O ministro Gilmar Mendes não estava no Brasil, mas a assessora escutou os dois missionários por uma hora inteira, soube o que era a Missão Belém e assistiu ao vídeo institucional. Ela disse: “Não é possível, precisa reverter esta sentença”. Ela nos pediu para escrever 200 páginas de memoriais, explicando o que é a Missão Belém, o equívoco, a tese e mostrando fotos. Fizemos isso em dois dias, foi uma loucura, mas conseguimos mandar as 200 páginas.

Acreditamos que o juiz as recebeu, pois ele respondeu com 14 páginas de jurisprudência. Ele demonstrou que a Missão Belém e nossas casas estavam no pleno direito de fazer o que fazemos. Isso está em destaque no site do STF. Depois, Gilmar Mendes nos chamou para nos conhecer, e nós fomos. No dia anterior, ele anulou a própria sentença e emitiu essa nova de 14 páginas, que está no site.

Outro processo foi parar nas mãos do Ministro André Mendonça, que pesquisou sobre a Missão Belém. Ele viu o que fazíamos, se impressionou e também escreveu 16 páginas de jurisprudência, mostrando o direito que a Missão Belém tem de ter as casas do jeito que são: casas religiosas. Hoje, temos praticamente 30 páginas de jurisprudência escritas pelo STF, o que é um presente de Deus, pois não sabíamos como proceder.

É claro que o bem que fazemos é imenso: acolhemos 110 mil pessoas nestes anos. Acreditamos que somos a instituição que mais acolhe o povo de rua no Brasil, segundo dizem. Pelo menos 50 mil dessas pessoas aceitaram uma restauração, e 30 mil conseguiram ter um sucesso de 60% entre os que fazem o processo. É lógico que, para alguns, somos classificados como uma grande clínica de recuperação. Nós contamos com o auxílio de cerca de 80 médicos voluntários, pois os doentes que acolhemos necessitam. Cuidados são necessários. Mas isso não significa que somos uma clínica, nós somos um Evangelho vivido que transforma vidas.

Irmã Cacilda – A Missão é uma obra de evangelização. O bonito e a novidade, como conversávamos, é que o Evangelho realmente cura. Se a pessoa abre o coração, ele muda a vida. Esse anúncio de Jesus Cristo, por meio do carisma da Missão, toca os corações, e os resultados surpreendem. Estamos sempre fazendo pesquisas para ver como estamos. Dificilmente o resultado é menos que 60%, chegando a 62%. Calculamos que o número de pessoas que passaram por nós e alcançaram a restauração é de 30 mil. São 30 mil pessoas que saíram da rua e das drogas, que voltaram a ter vida social, se casaram, trabalharam e se mantêm. Esse é o resultado de 20 anos de trabalho. O perfil da Missão é este: somos uma obra de evangelização que anuncia Jesus com esse amor. O que toca muito os irmãos no começo é ouvir: “Você é meu irmão”. O acolhido diz: “Eu cheguei aqui, ninguém me perguntou se eu tinha documento, quem eu era, ou me julgou. Me abraçaram, me deram de comer, me deram um banho e me ofereceram um caminho de restauração”.

De 2005 para cá, a Missão Belém cresceu. De repente, vocês chegaram ao Haiti, logo após o terremoto que o devastou. Como isso aconteceu?

Foto: Acervo Missão Belém

Padre Gianpietro – Foi o Dom Odilo que, espontaneamente e por inspiração divina, enquanto ia celebrar a missa dos votos dos missionários, perguntou: “Por que vocês não vão para o Haiti?”. E assim foi. Nós nem sabíamos bem onde ficava o Haiti, tivemos que pesquisar no computador como se chegava lá. Em maio, fomos visitar, vimos uma realidade terrível e decidimos voltar. Em 6 de novembro de 2010, o primeiro grupo partiu para o Haiti.

Desde o começo, foi um desafio terrível. Morávamos no que chamaríamos de favela, praticamente na beira do oceano. Somos a última casa antes do mar. Porto Príncipe parte do alto, onde há a região rica, e desce: quanto mais desce, mais pobre fica. Vivemos no lixão, criado pelos canais de esgoto.

Lá, Deus nos permitiu abrir uma escola/centro para 3 mil crianças e jovens de 0 a 18 anos, que fica aberto do nascer ao pôr do sol. O desafio é grande, porque hoje o Haiti está nas mãos dos bandidos. Quem desgoverna o Haiti são esses bandidos, e cada bairro tem o seu. É muito difícil, pois eles não têm lógica, princípio, palavra, coração ou sensibilidade. Nossos missionários estão recebendo ameaças claras. Às vezes, parece que não conseguimos mais continuar.

Além da escola, temos um pequeno hospital (que seria uma UPA), que atende cerca de 100 consultas por dia. Encontramo-nos neste apuro, com o coração na garganta. Muitas vezes, é uma faca no coração, pois há cinco missionários da Missão Belém que arriscam a vida todos os dias e dizem seu “sim” continuamente. Os trabalhos continuam. Esta semana a escola abriu de novo. O ano letivo começa agora, e ficou fechada por duas semanas.

Irmã Cacilda – No período de férias, os missionários organizam o “candetê” para que as crianças frequentem outras atividades. Procuramos deixar aberto porque é o único local de paz e alegria que eles têm. As crianças vão, são muitas, elas brotam, inclusive crianças de rua ou que perderam os pais na loucura dos bandidos.

Na Praça da Sé, o Projeto Vida Nova é um marco do Jubileu Extraordinário da Misericórdia. O que representou para a Missão Belém a inauguração desse espaço de acolhida?

Irmã Cacilda – Sempre desejamos ter uma casa no centro de São Paulo para ter mais facilidade de estar junto aos irmãos, sobretudo na Cracolândia, e ter mais meios para ajudá-los a sair rápido daquela situação. Esse lugar foi um presente.

Ele surgiu por meio de um frade que conhecia nossos irmãos. Era o Du, um acolhido que já faleceu. Ele comentou que havia um prédio da Terceira Ordem do Carmo que havia sido ocupado e que eles não sabiam o que fazer. Ele perguntou se não serviria para a Missão Belém. Eu até pensei: “Meu Deus, já temos tanta coisa, vamos enlouquecer com tanto trabalho!”. Contudo, sempre pedimos à Nossa Senhora por esse lugar. Chegamos lá, e o edifício se chamava Nazaré. Achamos interessante: Belém e Nazaré.

O prédio estava todo pichado, sujo. Subimos. Já tínhamos até mandado dois irmãos das casas para cuidar um pouco, pois estavam desesperados por causa da invasão. Subindo, o Du estava todo feliz: “Olha, quem sabe aqui a gente pode acolher, fazer isso, fazer aquilo”. A alegria dele era contagiante. Pensei: “Acho que Nossa Senhora está querendo alguma coisa mesmo”.

Lá, encontramos uma Bíblia aberta esquecida. O texto era o Magnificat, de Nossa Senhora. Pensei: “Acho que ela está querendo”, e não tivemos coragem de dizer não. Reunimos nossas forças e começamos a acolher antes mesmo de iniciar a restauração do prédio. Mandamos três rapazes, e eles limparam, ajeitaram o que dava, colocaram água e luz, e começamos a acolher os irmãos.

Padre Gianpietro – Depois, foi organizada a iniciativa da Arquidiocese para a arrecadação de recursos, que permitiu a restauração de todo o prédio, como ele é hoje. Se você calcula 50 a 70 pessoas por dia, são 2 mil por mês, ou 20 mil por ano. Ele funciona há pelo menos cinco anos, e hoje é muito conhecido.

Irmã Cacilda – Esse local é muito importante porque permite o acolhimento ininterrupto, 24 horas por dia. A notícia se espalhou, e hoje a polícia e todos conhecem: “Vai naquele prédio amarelo, Missão Belém”. Ele se tornou uma referência para o povo de rua no centro de São Paulo, sobretudo na Cracolândia. Fazemos as missões e a evangelização, mas hoje os irmãos estão vindo ao nosso encontro. Dizemos que a “rua entrou na nossa casa”. Muitas vezes, a pessoa se dá conta da sua situação, jogada na calçada à noite, expressa sua oração a Deus, e Deus a faz lembrar desse lugar. Ela vem, porque há acolhida à noite também, por isso não podemos interromper. Tornou-se uma grande graça de Deus, uma “gruta” aberta o tempo todo para acolher o pobre que chega, para acolher o Jesus chagado e sofrido. É um presente saber que a Arquidiocese quis que essa obra se tornasse o marco da Misericórdia na Arquidiocese, um pedido do Papa Francisco. Os responsáveis por lá são os próprios acolhidos e restaurados, que ficam muito felizes por essa presença. É o povo de rua acolhendo o povo de rua. São os restaurados que agora evangelizam, acolhem e dão a mão. É uma mão estendida, 24 horas, para esses irmãos.

Nesses 20 anos de história, qual foi o momento de maior dificuldade? Imaginamos que a pandemia tenha sido complexa e marcado a comunidade, inclusive com a partida do Padre Gilson, vítima da COVID.

Padre Gianpietro – É difícil dizer… A ida do Padre Gilson para o céu foi um momento muito, muito difícil e inesperado. A comunidade era nova: éramos cinco padres e ficamos quatro, e hoje somos cinco de novo. O Padre Gilson era importante por ser o “velho da rua”, um dos fundadores da Cracolândia em 1993/94. Foi muito chocante durante a pandemia, que não se entendia nada. Foi difícil e muito duro, mas fomos em frente na fé em Deus, sabendo que Ele sabe o motivo e que é o melhor.

Continua sendo muito duro no Haiti, pois os missionários estão em perigo constante. Os bandidos ameaçam e querem coisas impossíveis. Eles estão em risco de vida continuamente, e isso é muito duro de saber.

Irmã Cacilda – Você pode perguntar por que eles não voltam ou dão um tempo. Chegamos a dizer a eles: “Se vocês querem voltar, digam”. Mas eles decidiram não voltar, porque se voltarem, as crianças não terão para onde ir. Então, eles escolheram ficar, arriscando a própria vida. Isso é muito forte. Só Deus dá essa coragem e força interior para sustentar.

Por outro lado, como ele disse, é uma faca no coração. A cada momento difícil na missão haitiana, nos unimos em intercessão. Na pandemia, houve o problema da chuva e o grande problema com o porto: os bandidos bloquearam tudo e não deixavam entrar água ou comida no bairro. A água lá é comprada, e eles chegaram ao ponto de ficar apenas com bolacha salgada, um pouco de arroz e feijão. As doações não conseguiam chegar. Água, que é primordial, faltava para eles, para as crianças, e para as quase 300 pessoas que trabalham lá no hospital e na escola. Toda a Missão, Dom Odilo e pessoas próximas fizeram uma corrente de oração, e Deus deu a chuva. Encheu o que era preciso, e eles conseguiram sobreviver. Depois, as ameaças se tornaram mais fortes e frequentes. A oração é o que sustenta e dá força para viver a vontade de Deus. Sabemos que Deus está com a mão sobre aquela missão.

Além disso tudo, há os 700 doentes que são nossos filhos e que nunca mais vão sair de nossa casa. Esse é um mundo desafiador que estamos desbravando. O projeto Nova Guadalupe é para aprimorar, melhorar e ampliar a acolhida desses doentes espalhados em todos os sítios. São 700, e os mais graves estão aqui na Casa Guadalupe, mas há outros que chegam com sequelas da vida de rua, de drogadição e de bebida. Esses irmãos não têm ninguém por eles. Somos muito criticados e confundidos com um hospital camuflado por conta disso.

Nessa perspectiva, o projeto Nova Guadalupe é uma das prioridades para o futuro. Do que se trata?

Padre Gianpietro – Em primeiro lugar, é importante explicar: não é um hospital propriamente, porque não depende do SUS nem da Anvisa. É uma enfermaria familiar. Queremos oferecer a esses doentes que estão no final da vida, sem muita perspectiva ou em estado terminal, uma acolhida familiar confortável com tudo o que podemos oferecer.

Hoje, são 50 na Casa Guadalupe, e é uma loucura. Queremos oferecer uma estrutura não só para esses 50, mas para 200 pessoas, que é a capacidade do prédio. Eles receberão uma acolhida familiar com os cuidados de saúde que você daria ao seu pai ou sua mãe se estivessem falecendo em casa. É nesse sentido. É uma estrutura muito grande, de 12 mil metros quadrados, que está surgindo perto da estação Belém do metrô. Será um complexo para acolher 200 doentes, serão necessárias cerca de 500 a 700 pessoas trabalhando na sustentação, limpeza, cozinha, lavanderia e condução. A realidade é que não há estrutura para eles. Fizemos isso pelo amor, porque essas pessoas abandonadas na rua, doentes e sem ninguém, estavam em uma situação deplorável. Este prédio também será uma casa da Missão Belém, uma casa acolhedora. Terá todos os cuidados que uma família pode dar ao seu pai que está falecendo. Portanto, será sempre familiar.

As obras começaram e tiveram todo o trabalho no subsolo, que é feito primeiro. Estamos no quarto andar, e serão 19 andares. A caminhada é longa, mas estamos dando um passo por vez.

Houve momentos em que o senhor sentiu medo a ponto de pensar: “Meu Deus, vou morrer” ou “O que eu estou fazendo aqui?”

Padre Gianpietro – O medo de morrer existe, mas o pior não é isso, e sim pensar que outros podem morrer, como os missionários no Haiti, que estão sob constante ameaça. No mês passado, os bandidos entraram em nossa igreja, onde estavam 600 crianças, e começaram a metralhar o teto. E as balas caíam em cima das crianças. É isso que dá medo. Sobre o risco de morte: várias vezes tivemos que intervir para parar linchamentos. Precisamos ir lá, no meio, onde estão espancando uma pessoa, e temos que separar. Isso aconteceu três ou quatro vezes comigo. É uma situação que pede muita oração.

O que o sustenta objetivamente nesta missão?

Padre Gianpietro – O que me sustenta é a adoração e o relacionamento com Deus. É o sabor da vida, que é muito difícil e muito dura. O que me sustenta, me dá força e alegria de viver, é o relacionamento com Deus e a adoração eucarística, que considero ser o único momento de paz e sustento durante o dia.

Além disso, sou sacerdote e tenho responsabilidade na Missão Belém, que é uma associação privada de fiéis. Teria sido impossível caminhar sozinho. Como diz a Bíblia: “Se alguém cai, não tem ninguém que o levante”. Deus nos concedeu a vida de Belém, de conduzir este barco juntos.

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