Projeto de lei que autoriza tal atividade no Brasil pode ir à votação no Senado e há temor pelos impactos negativos às famílias e a toda a sociedade, como já se observa após a regularização das apostas on-line no País
Aprovado em junho na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado, o projeto de lei 2.234/2022, que propõe regulamentar a instalação e operação de cassinos, bingos, caça-níqueis e a exploração de jogos e apostas em todo o Brasil poderá ser apreciado pelos senadores nas próximas semanas. Na Câmara dos Deputados, a matéria foi aprovada em fevereiro de 2022 como o PL 442/91.
Em carta ao episcopado brasileiro no começo deste mês, a presidência da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), retomando posicionamentos da instituição nos últimos anos sobre esse tema, ressaltou que “o jogo de azar traz consigo irreparáveis prejuízos morais, sociais e, particularmente, familiares”, afetando especialmente as pessoas que têm compulsão por jogos; e que os argumentos de que a regulamentação seria benéfica para as finanças do País e a geração de empregos desconsideram “a possibilidade de associação dos jogos de azar com a lavagem de dinheiro e o crime organizado”.
Essa também é a preocupação do economista e tributarista Edison Farah, 80, ex-juiz do Tribunal de Impostos e Taxas do Estado de São Paulo, e que tem se empenhado para que o projeto não se torne lei, assim como já fizera em 2009, quando a pauta foi discutida na Câmara dos Deputados, mas não avançou.
“Regulamentar o jogo de azar será a oficialização da lavagem de dinheiro do crime organizado”, enfatiza Farah. “Não há como controlar quem ganha, por mais que digam que se possa fazê-lo”, insiste, alertando que as organizações criminosas poderão cooptar os ganhadores e oferecer-lhes valores para “lavar o dinheiro” ilícito a partir do montante ganho nas apostas.
DESCONTROLE
Um indício de que autorizar os jogos de azar não é algo benéfico para a sociedade já está sendo vivenciado. Em 29 de dezembro do ano passado, o presidente Lula sancionou a lei 14.790/2023, que regulamentou o mercado de jogos e apostas on-line, a chamada “Lei das Bets”, pela qual se proíbe, por exemplo, que menores de 18 anos sejam apostadores, bem como as pessoas diagnosticadas com ludopatias. Na prática, porém, qualquer um, em qualquer idade, consegue se cadastrar nas plataformas de jogos on-line.
“Basta você instalar um aplicativo destas apostas no celular, cadastrar um cartão de crédito ou fazer um pix e já poderá ficar apostando. E há também a facilidade para burlar as regras que impedem os jogos aos menores de idade”, garante, ao O SÃO PAULO, Rodolfo Canônico, diretor-executivo do Family Talks, instituição voltada à defesa dos direitos e das famílias nas esferas civis e governamentais.
UM PROBLEMA DA SAÚDE PÚBLICA
O transtorno do jogo compulsivo – ou jogo patológico – é uma doença catalogada pela Organização Mundial da Saúde e se caracteriza pela perda de controle das ações, assim como acontece com outras dependências.
Durante a live “O vício em apostas. O perigo disfarçado de diversão”, realizada pela Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), em julho, a médica Carla Bicca, mestre em Ciências Médicas e especialista no tratamento de dependências químicas, falou sobre alguns dos impactos desses jogos à saúde mental, como o aumento dos riscos para a depressão e outros comportamentos classificados como enfermidades que afetam diretamente as emoções e criam no indivíduo a condição de dependência.
“As pessoas que se tornam dependentes destas apostas com o tempo vão precisar de tratamento psiquiátrico, pois isso se tornará um transtorno mental. E hoje está mais facilitada essa dependência pela via on-line”, observou a médica. A íntegra da live pode ser vista clicando aqui .
ESCALADA DE DÍVIDAS
O vício em jogos também têm levado mais pessoas a endividamentos. Uma recente pesquisa do Instituto Locomotiva apontou que 86% dos que apostam nos jogos on-line possuem dívidas, e que a maioria dos apostadores, 79%, pertence às classes C, D e E.
Outro levantamento, feito pelo Banco Itaú, indicou que entre junho de 2023 e junho deste ano, os brasileiros perderam R$ 23,9 bilhões em apostas esportivas.
O cenário tem se tornado ainda mais preocupante pelo fato de muitas pessoas usarem o cartão de crédito para isso, entrando, assim, em uma escalada de dívidas. No dia 12 deste mês, Isaac Sidney, presidente da Federação Brasileira de Bancos (Febraban), manifestou que tal situação poderá levar ao comprometimento da renda dos correntistas e se refletir em juros mais altos para a concessão de crédito, em razão do aumento da inadimplência.
PUBLICIDADE OSTENSIVA
Canônico destaca que o crescimento exponencial das bets no Brasil é impulsionado pela publicidade ostensiva, incluindo o fato de essas marcas patrocinarem clubes e campeonatos de futebol e programas de rádio e TV, levando, assim, a uma maior aceitação social sobre o hábito de apostar.
O diretor-executivo do Family Talks enfatiza, ainda, que após a “Lei das Bets” aumentou a procura pelas apostas on-line no Brasil. “Quando não era permitido, este mercado era dezena de vezes menor do que hoje. Atualmente, estima-se que ele movimente R$ 100 bilhões, o equivalente a 1% do PIB brasileiro”, detalha, lembrando, porém, que a maior parte do que se arrecada vai para outros países ou paraísos fiscais.
“A sociedade brasileira não ganhou nada com a ‘invasão das bets’. Pelo contrário, perdemos muito e ainda perderemos mais, porque esse mercado vai amadurecer e está para ser liberada a construção de cassinos no Brasil [proposta do PL 2.234/2022]. É um caminhode difícil retorno”, avalia Canônico.
RISCOS ÀS CRIANÇAS E AOS ADOLESCENTES
Ainda de acordo com o diretor-executivo do Family Talks, as crianças e os adolescentes estão altamente expostos: “Aqui em Brasília (DF), as escolas particulares de classe média já mandaram uma circular para os pais, informando que há muitos alunos do ensino fundamental apostando on-line, inclusive durante as aulas. Apesar de ser proibido, têm se disseminado vários jogos de uma forma clandestina, como o jogo do Tigrinho, e, lamentavelmente, muitas famílias – talvez por pressão social ou por ver que outros garotos estão jogando – vão sendo convencidas a deixar suas crianças apostarem”.
Canônico recomenda que os pais monitorem o uso dos smartphones e da internet pelos filhos, os orientem sobre os riscos das apostas on-line e que conversem com a escola e os demais pais sobre como agir conjuntamente perante o crescente problema.
Algumas “lições de casa” também são fundamentais. “A família precisa criar um ambiente de convivência em que o entretenimento tenha menos espaço na vida familiar, e que se aumente o tempo das relações reais, para que crianças e jovens tenham menos interesse em ficar no mundo virtual e mais vontade em se relacionar com as pessoas. E, certamente, o exemplo do estilo de vida dos pais é fundamental, reduzindo o consumo de conteúdos em plataformas de streaming e na tevê e o tempo gasto nas redes sociais”, conclui Rodolfo Canônico.
E é sempre válido este alerta do Catecismo da Igreja Católica: os jogos de azar e apostas “tornam-se moralmente inaceitáveis quando privam a pessoa do que lhe é necessário para as suas necessidades e as de outrem. A paixão do jogo pode tornar-se uma grave servidão” (CIC 2413).