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Saúde mental e trabalho: uma preocupação corporativa, social e pessoal

Brasil registra anualmente 470 mil afastamentos trabalhistas relacionados ao problema; desde maio, empresas devem ter ações específicas para lidar com o tema

Relações tensas, sobrecargas de metas e longas jornadas são algumas das características de ambientes de trabalho prejudiciais à saúde mental
Yan Krukau/Pexels 

Aos 18 anos, Valéria Avallone Pinheiro viveu uma perda familiar que abalou profundamente sua saúde emocional. Tristeza intensa, choro constante, falta de concentração, insônia e sensação de angústia foram os sintomas que levaram ao diagnóstico de alto nível de estresse e ao consequente afastamento do trabalho por 30 dias. 

“No primeiro afastamento, prevaleceu o silêncio. Não houve comentários nem acolhimento. Quando retornei ao trabalho, fui direcionada para uma função mais simples, o que me fez sentir desvalorizada. Hoje, percebo que provavelmente não sabiam como lidar com a situação, mas, na época, o sentimento era de isolamento e de que o assunto era proibido. Isso apenas reforçou os sintomas que eu já enfrentava”, recordou a agora psicanalista, palestrante em saúde psicossocial e CEO de um espaço terapêutico em Valinhos (SP). 

Vanessa contou ao O SÃO PAULO que, à época, não teve acesso a apoio psicológico ou terapêutico adequado, e, assim, retornou ao trabalho sem estar plenamente recuperada. 

“A falta de clareza sobre o que estava acontecendo comigo me levava ao isolamento. Embora não tenha recebido críticas diretas, também não tive acolhimento. O distanciamento emocional das pessoas ao meu redor foi doloroso, quase como se ignorar meu estado fosse suficiente para me curar”, relembrou. 

TABU NO AMBIENTE DE TRABALHO 

Anos depois do primeiro episódio, Valéria enfrentou novamente um colapso emocional. Desta vez, ela própria decidiu pelo afastamento e trilhou uma nova etapa profissional: “Foi uma ruptura dolorosa. Além da sensação de vazio e de não pertencimento, enfrentei o desafio de ‘recomeçar do zero’ em uma época na qual transições de carreira não eram bem-vistas. Fiquei cheia de dúvidas e incertezas, mas, ao mesmo tempo, sentia que precisava buscar um propósito e reencontrar meu lugar”. 

Para a psicanalista, é essencial que as empresas estejam preparadas para lidar com as questões emocionais de seus colaboradores: “Aprendi, de forma dura, que a saúde psicossocial corporativa precisa ser tratada com seriedade. É fundamental que as empresas criem espaços contínuos de conscientização. Canais sigilosos de escuta também são indispensáveis”. 

Ela avaliou que ainda existe desinformação sobre transtornos emocionais no ambiente de trabalho, o que leva muitos profissionais a se calarem por medo de julgamento. 

Atualmente, Valéria, 56, dedica-se a ajudar empresas a construir uma cultura de saúde mental corporativa: “Meu retorno não foi simples. Passei por várias tentativas de me reencontrar profissionalmente até compreender que o caminho estava no autoconhecimento, no suporte terapêutico e no equilíbrio”. 

Ela mantém uma rotina que inclui meditação, alimentação equilibrada, momentos de lazer e hobbies. A quem está passando por este sofrimento, Valéria deixa um conselho: “Não tenha vergonha de pedir ajuda. Cuidar da mente é tão importante quanto cuidar do corpo”. 

UMA CRISE NACIONAL 

De acordo com dados do Ministério da Previdência Social, em 2024 quase meio milhão de pessoas (470 mil) precisaram se afastar do trabalho devido a questões de saúde mental, um crescimento de 68% em relação a 2023. 

As principais causas foram ansiedade (141.414 casos) e depressão (113.604 registros). Os maiores números de licenças ocorreram em São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro, mas, proporcionalmente à população, os índices mais elevados foram no Distrito Federal, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. 

O levantamento mostra que as mulheres lideram os afastamentos (64%), com idade média de 41 anos, geralmente acometidas por ansiedade ou depressão, permanecendo por até três meses afastadas de suas atividades profissionais. 

RESPONSABILIDADES DOS EMPREGADORES 

Desde 26 de maio, todas as empresas no Brasil devem adotar medidas específicas para promover a saúde mental dos trabalhadores. A determinação decorre da atualização da Norma Regulamentadora nº 1 (NR-1), feita em 2024 pelo Ministério do Trabalho e Emprego, incluindo a avaliação e gestão de riscos psicossociais no processo de gestão de Segurança e Saúde no Trabalho, avaliando questões como sobrecarga de trabalho, assédio e pressão por metas excessivas. 

As empresas precisam elaborar planos de gerenciamento de riscos ocupacionais, implementar ações de apoio psicológico e políticas contra assédio, além de monitorar o estresse no ambiente corporativo. Neste primeiro ano, a medida tem caráter educativo, mas a partir de 26 de maio de 2026, o descumprimento poderá resultar em multas às corporações. 

Giuliana Mordenteu, doutora em Psicologia, destacou que os primeiros sinais de problemas com a saúde mental dos funcionários são o aumento de afastamentos, alta rotatividade, relações tensas, sobrecarga de metas e jornadas longas, parâmetros que mostram que a própria estrutura está prejudicando as pessoas. 

“É essencial ‘desindividualizar’ o problema e analisar processos, condições de trabalho e fatores externos, como transporte, moradia e acesso à saúde. A saúde mental não pode ser instrumentalizada apenas para evitar prejuízos à empresa; precisa ser política permanente, com ações concretas”, sublinhou. 

Sobre a formação de líderes, a especialista observou que capacitar para o desenvolvimento da inteligência emocional ou para a administração de conflitos não basta: deve-se questionar as estruturas produtivas, compreender a vida do trabalhador e proteger a equipe de demandas abusivas: “É preciso reconhecer limites humanos, acolher falhas e valorizar a vida para além do trabalho. Isso protege a saúde mental”. 

PREVENIR, CUIDAR E ACOLHER 

Em 2025, a Nestlé lançou, em parceria com o Hospital Israelita Albert Einstein, o programa “Parceiros do B.E.M.” (Bem-Estar Mental), com o objetivo de fortalecer a saúde mental dos colaboradores. Cerca de 600 funcionários foram capacitados para atuar como agentes de apoio, promovendo ações de alerta sobre transtornos, burnout, vício em álcool e drogas, gestão de conflitos e autocuidado. 

O projeto envolve também a alta liderança, preparando profissionais para identificar, acolher e encaminhar colegas em sofrimento emocional. A iniciativa complementa a rede de apoio da empresa, incluindo o Programa Especializado de Apoio ao Colaborador (PEAC). 

Na esfera pública, o Instituto de Assistência Médica ao Servidor Público Estadual (Iamspe) lançou neste ano um plano de teleatendimento em saúde mental voltado a mais de um milhão de servidores públicos estaduais e seus dependentes, com oferta de atendimento psicológico e psiquiátrico on-line

O serviço é realizado para pacientes a partir de 14 anos, com sessões de 45 minutos. O plano oferece orientação 24 horas por dia sobre medicação e suporte em situações de crise. Mais informações estão disponíveis em www.iamspe.sp.gov.br

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