
A Inteligência Artificial (IA) tem emergido como uma presença constante na vida dos jovens, assumindo papéis que vão muito além da mera funcionalidade desta tecnologia.
Parte desse fenômeno se deve ao avanço dos chatbots e companheiros virtuais. Nos últimos anos, há um número crescente de adolescentes que desenvolvem vínculos emocionais profundos, por vezes afetivos ou de dependência, com entidades digitais desse tipo. O que, a princípio, parece um panorama inofensivo, com o tempo abre espaço para consequências severas na saúde mental, incluindo automutilação, depressão e isolamento social.
OS COMPANHEIROS VIRTUAIS E A BUSCA POR CONEXÃO
O apelo sedutor da IA como companheira relacional reside em sua capacidade de oferecer um espaço de desabafo percebido como “sem julgamento”, com respostas imediatas e paciência ilimitada, características raras nas interações humanas.
“Muitos jovens buscam na IA um tipo de acolhimento que não encontram em casa, na escola ou nas amizades. A máquina oferece previsibilidade e uma sensação de controle: ela não critica, não rejeita, não impõe frustrações. Isso é especialmente atraente para quem tem baixa autoestima, medo de rejeição ou se sente invisível em seu meio social. Há também uma curiosidade natural e um fascínio pelo ‘novo’, que se misturam a uma carência emocional genuína”, explicou ao O SÃO PAULO a neuropsicopedagoga e psicanalista Flavia Moraes.
Para adolescentes que se encontram em um período formativo e vulnerável, em que a busca por identidade e validação social são cruciais, a IA tem se tornado uma alternativa atraente. Nos Estados Unidos, quase três em cada quatro adolescentes (72%) já interagiram com companheiros de Inteligência Artificial, e mais da metade o faz várias vezes ao mês. O dado está no estudo “Conversa, Confiança e Compensações: como e por que adolescentes usam companheiros de IA”, divulgado em julho deste ano pela Common Sense Media, que analisou usuários de 13 a 17 anos.
UM ‘RELACIONAMENTO’ ARRISCADO

“Os riscos são múltiplos. No campo psicológico, há a possibilidade de dependência emocional, isolamento social e distorção da noção de reciprocidade afetiva. No campo ético, surge a preocupação com a manipulação de dados emocionais e com a perda de autonomia subjetiva. Também existe o perigo de os jovens substituírem o contato humano por respostas automáticas, o que empobrece a experiência emocional”, detalhou Flavia.
Segundo especialistas, essa confusão entre o real e o simulado pode ter implicações profundas no desenvolvimento da percepção da realidade e na capacidade de formar relações interpessoais autênticas. A IA, em sua essência, é um modelo estatístico desprovido de subjetividade, mas pode levar o adolescente a aceitar verdades sem questionamentos críticos.
“Quando o uso da IA ocupa o lugar das relações humanas significativas, a solidão subjacente tende a aumentar. A experiência de vínculo com um ‘outro artificial’ não oferece verdadeira reciprocidade emocional, e isso pode acentuar sentimentos de vazio, desamparo e desrealização. Com o tempo, esses fatores podem se associar a quadros de depressão, ansiedade, fobia social e, em casos mais graves, a comportamentos autodestrutivos detalhou Roberto Santoro Almeida, médico psiquiatra, psicanalista, coordenador do Grupo de Trabalho de Saúde Mental da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) e presidente da Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro (SPRJ).
Um levantamento do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan) revelou que, a cada 10 minutos, há um registro de autoagressão envolvendo adolescentes de 10 a 19 anos no Brasil.
CAMINHOS DE PREVENÇÃO
Por isso, a prevenção passa pelo fortalecimento dos laços afetivos reais, pela educação emocional e pela presença ativa dos adultos.
“As novas tecnologias devem ser introduzidas de modo acompanhado, com espaço para o diálogo e para o desenvolvimento da autonomia crítica. O desafio não é proibir, mas ajudar o jovem a diferenciar o que é relação viva daquilo que é apenas sua simulação”, reforçou Almeida.
A SBP, por meio do manual #MENOS TELAS #MAIS SAÚDE – Atualização 2024, tem advertido sobre os perigos do uso precoce e excessivo das Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs).
“É essencial dialogar, sem ridicularizar ou proibir de modo punitivo, ajudando o jovem a compreender o que está buscando emocionalmente naquela interação. Pais e educadores devem observar também mudanças no rendimento escolar, no sono e na tolerância à frustração”, destacou o presidente da SPRJ.
Também no entender da psicanalista Flavia Moraes, é essencial que os jovens sejam educados para “o uso consciente da tecnologia e para o reconhecimento dos limites entre humano e máquina. Incentivar atividades off-line, fortalecer vínculos reais e oferecer presença afetiva são as melhores formas de evitar que a IA ocupe o lugar do afeto humano”.
O DEBATE ÉTICO E A NECESSIDADE DE PROTEÇÃO

Os impactos da IA na saúde mental dos jovens têm sido uma preocupação global. A Comissão Federal de Comércio dos Estados Unidos abriu uma investigação sobre companheiros de IA voltados para adolescentes. O debate intensificou-se depois que Adam Raine, de 16 anos, morador da Califórnia, tirou a própria vida após contato frequente com chatboats.
No Brasil, o Projeto de Lei 2338/23, aprovado no Senado, estabelece diretrizes para o uso ético da IA assegurando direitos fundamentais e proteção à vida humana. A nova forma de vínculo simbólico com a tecnologia exige reavaliação legal sobre o tratamento de dados de crianças e adolescentes, com transparência e responsabilidade.






