Logo do Jornal O São Paulo Logo do Jornal O São Paulo

Solidão conectada: quando a melhor amizade do jovem é a IA, algo não está bem

Tyli Jura/Pixabay

A Inteligência Artificial (IA) tem emergido como uma presença constan­te na vida dos jovens, assumindo papéis que vão muito além da mera funcionali­dade desta tecnologia.

Parte desse fenômeno se deve ao avanço dos chatbots e companheiros vir­tuais. Nos últimos anos, há um número crescente de adolescentes que desenvol­vem vínculos emocionais profundos, por vezes afetivos ou de dependência, com entidades digitais desse tipo. O que, a princípio, parece um panorama ino­fensivo, com o tempo abre espaço para consequências severas na saúde mental, incluindo automutilação, depressão e isolamento social.

OS COMPANHEIROS VIRTUAIS E A BUSCA POR CONEXÃO

O apelo sedutor da IA como compa­nheira relacional reside em sua capaci­dade de oferecer um espaço de desabafo percebido como “sem julgamento”, com respostas imediatas e paciência ilimita­da, características raras nas interações humanas.

“Muitos jovens buscam na IA um tipo de acolhimento que não encontram em casa, na escola ou nas amizades. A máquina oferece previsibilidade e uma sensação de controle: ela não critica, não rejeita, não impõe frustrações. Isso é especialmente atraente para quem tem baixa autoestima, medo de rejeição ou se sente invisível em seu meio social. Há também uma curiosidade natural e um fascínio pelo ‘novo’, que se misturam a uma carência emocional genuína”, expli­cou ao O SÃO PAULO a neuropsicope­dagoga e psicanalista Flavia Moraes.

Para adolescentes que se encontram em um período formativo e vulnerável, em que a busca por identidade e valida­ção social são cruciais, a IA tem se tor­nado uma alternativa atraente. Nos Es­tados Unidos, quase três em cada quatro adolescentes (72%) já interagiram com companheiros de Inteligência Artificial, e mais da metade o faz várias vezes ao mês. O dado está no estudo “Conversa, Confiança e Compensações: como e por que adolescentes usam companheiros de IA”, divulgado em julho deste ano pela Common Sense Media, que analisou usuários de 13 a 17 anos.

UM ‘RELACIONAMENTO’ ARRISCADO

Huwani Zulu/Pixabay

“Os riscos são múltiplos. No campo psicológico, há a possibilidade de de­pendência emocional, isolamento social e distorção da noção de reciprocidade afetiva. No campo ético, surge a preo­cupação com a manipulação de dados emocionais e com a perda de autonomia subjetiva. Também existe o perigo de os jovens substituírem o contato humano por respostas automáticas, o que empobrece a experiência emocional”, detalhou Flavia.

Segundo especialistas, essa confusão entre o real e o simulado pode ter impli­cações profundas no desenvolvimento da percepção da realidade e na capaci­dade de formar relações interpessoais autênticas. A IA, em sua essência, é um modelo estatístico desprovido de subje­tividade, mas pode levar o adolescente a aceitar verdades sem questionamentos críticos.

“Quando o uso da IA ocupa o lugar das relações humanas significativas, a solidão subjacente tende a aumentar. A experiência de vínculo com um ‘outro artificial’ não oferece verdadeira recipro­cidade emocional, e isso pode acentuar sentimentos de vazio, desamparo e des­realização. Com o tempo, esses fatores podem se associar a quadros de depres­são, ansiedade, fobia social e, em casos mais graves, a comportamentos autodes­trutivos detalhou Roberto Santoro Al­meida, médico psiquiatra, psicanalista, coordenador do Grupo de Trabalho de Saúde Mental da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) e presidente da Socieda­de Psicanalítica do Rio de Janeiro (SPRJ).

Um levantamento do Sistema de In­formação de Agravos de Notificação (Si­nan) revelou que, a cada 10 minutos, há um registro de autoagressão envolvendo adolescentes de 10 a 19 anos no Brasil.

CAMINHOS DE PREVENÇÃO

Por isso, a prevenção passa pelo for­talecimento dos laços afetivos reais, pela educação emocional e pela presença ati­va dos adultos.

“As novas tecnologias devem ser introduzidas de modo acompanhado, com espaço para o diálogo e para o de­senvolvimento da autonomia crítica. O desafio não é proibir, mas ajudar o jo­vem a diferenciar o que é relação viva daquilo que é apenas sua simulação”, re­forçou Almeida.

A SBP, por meio do manual #MENOS TELAS #MAIS SAÚDE – Atualização 2024, tem advertido sobre os perigos do uso precoce e excessivo das Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs).

“É essencial dialogar, sem ridicula­rizar ou proibir de modo punitivo, aju­dando o jovem a compreender o que está buscando emocionalmente naquela inte­ração. Pais e educadores devem observar também mudanças no rendimento esco­lar, no sono e na tolerância à frustração”, destacou o presidente da SPRJ.

Também no entender da psicanalista Flavia Moraes, é essencial que os jovens sejam educados para “o uso consciente da tecnologia e para o reconhecimento dos limites entre humano e máquina. Incentivar atividades off-line, fortalecer vínculos reais e oferecer presença afetiva são as melhores formas de evitar que a IA ocupe o lugar do afeto humano”.

O DEBATE ÉTICO E A NECESSIDADE DE PROTEÇÃO

Ribhav Agrawal/Pixabay

Os impactos da IA na saúde mental dos jovens têm sido uma preocupação global. A Comissão Federal de Comér­cio dos Estados Unidos abriu uma in­vestigação sobre companheiros de IA voltados para adolescentes. O debate in­tensificou-se depois que Adam Raine, de 16 anos, morador da Califórnia, tirou a própria vida após contato frequente com chatboats.

No Brasil, o Projeto de Lei 2338/23, aprovado no Senado, estabelece diretri­zes para o uso ético da IA assegurando direitos fundamentais e proteção à vida humana. A nova forma de vínculo sim­bólico com a tecnologia exige reavalia­ção legal sobre o tratamento de dados de crianças e adolescentes, com transparên­cia e responsabilidade.

Deixe um comentário