Um desastre socioambiental como este que se abateu sobre o Rio Grande do Sul é, sem dúvida, uma gigantesca tragédia humana. Mas, também, é um grande desafio à nossa consciência, uma oportunidade para nos descobrirmos capazes de ser melhores. Neste Caderno Fé e Cidadania, procuramos documentar algumas dessas experiências de solidariedade, protagonizadas por comunidades católicas. Que os muitos testemunhos que estamos vendo nestes dias ajudem a todos nós a fazer as escolhas certas e assumir os compromissos justos, iluminados pela solidariedade e o amor fraterno.
Grandes desastres e catástrofes, como as recentes inundações no Rio Grande do Sul, têm a força de nos despertar do sono de nossa distração e de nosso esquecimento cotidianos. Subitamente, a dor e a tragédia de outros nos alertam de que nossas dores não são as únicas, que o sofrimento e a morte continuam acompanhando a tantos nossos irmãos. Vislumbramos, então, toda a dimensão do drama humano na história.
Nesse despertar, a apatia diante das dores do outro é substituída pela empatia, pela capacidade de nos colocarmos, mesmo que de forma imperfeita, no lugar do nosso irmão. Damo-nos conta de suas dificuldades, imaginamos suas tristezas e suas lutas. A partir daí, a solidariedade tende a se manifestar, quase espontânea, nos mobilizando e nos congregando no esforço compartilhado de ajudar as vítimas da tragédia.
Nascemos para a solidariedade. A humanidade não teria sobrevivido ao longo da história se não fosse solidária – aliás, mesmo os animais irracionais, ainda que sem a elaboração intelectual que nos caracteriza, precisam desenvolver comportamentos instintivos que poderíamos chamar de “solidários”. Sem solidariedade, não há vida social possível – até mesmo entre animais!
A solidariedade e o amor fraterno foram temas centrais em encíclicas escritas por São João Paulo II (Sollicitudo Rei Socialis, 1987), Bento XVI (Caritas in veritate, 2009) e Francisco (Fratelli tutti, 2020). São elementos constitutivos da natureza humana, reflexos do amor de Deus, do qual somos imagem e semelhança – além de serem o caminho mais eficiente pra a superação de qualquer tipo de crise social. Por isso, com redobrada energia, a Igreja se solidariza com os que sofrem e nos exorta a irmos sempre mais além em nossos esforços para ajudá-los.
O povo brasileiro, ao mesmo tempo em que acompanha estarrecido os infortúnios de seus irmãos gaúchos, participa de incontáveis gestos de ajuda e solidariedade, vindos muitas vezes de apoiadores imprevistos. Em um tempo tão marcado por enfrentamentos ideológicos, os gestos concretos de solidariedade apontam um caminho possível de construção do bem comum, uma alternativa efetiva de participação social capaz de nos indicar e nos ensinar a praticar uma “política melhor”, para usar a expressão do Papa Francisco na Fratelli tutti (Capítulo V).
É verdade que o despreparo diante de uma crise climática que se tornou evidente já há algum tempo implica a responsabilização efetiva daqueles que a negaram, mas a cooperação solidária de todos é o que mais importa neste momento. Eventuais desvios e tentativas de uso político dos auxílios têm sido denunciados em certas redes sociais (frequentemente de forma mentirosa e alarmista). Assim como no caso anterior, as correntes solidárias não podem se deixar determinar por tais denúncias, ainda que as irregularidades sempre devam ser combatidas. Sempre existem aqueles que, até mesmo diante desse drama socioambiental, procuram obter lucros políticos ou fazer campanhas ideológicas, porém, cabe a cada um de nós ter discernimento para não nos deixarmos determinar pelos discursos partidários e nos comprometermos com a construção solidária do bem comum – sabendo que haverá forma e momento adequados para que cada um assuma sua responsabilidade social e política diante da tragédia.