Tema é considerado pela Suprema Corte como de repercussão geral. Assim, o que for decidido será aplicado a processos similares nas instâncias inferiores da Justiça
A discussão sobre a permanência de símbolos religiosos em órgãos públicos ganha um novo e decisivo passo na Justiça brasileira. Na sexta-feira, 15, teve início no Supremo Tribunal Federal (STF) o julgamento virtual do recurso sobre uma ação civil pública do Ministério Público Federal (MPF), do ano de 2009, que pede a retirada de todos os símbolos religiosos (crucifixos, imagens etc.) ostentados em locais proeminentes, de ampla visibilidade e de atendimento público nos prédios públicos da União Federal, no estado de São Paulo.
A argumentação do MPF na ação é que, uma vez o Brasil sendo um Estado laico, seus órgãos públicos não podem manifestar preferência por uma religião. O MPF apresenta como fundamento o artigo 5º da Constituição federal para dizer que os cidadãos são livres para professar, ou não, uma religião, e que a presença de símbolos religiosos, segundo o órgão, ofenderia essa liberdade de crença.
AÇÃO IMPROCEDENTE
A ação foi rejeitada pela Justiça Federal em 1ª instância, que julgou improcedente o pedido, afirmando que a laicidade do Estado brasileiro não se traduz em oposição ao fenômeno religioso, mas sim que este é garantido como direito fundamental de liberdade de consciência, de liturgia e de culto e que, consequentemente, há “a possibilidade de convivência do Estado laico com símbolos religiosos – crucifixos, imagens, monumentos, nomes de logradouros ou de cidades etc. – ainda que em locais públicos, pois refletem a história e a identidade nacional e regional”.
Esse foi o mesmo entendimento da 2ª instância, em 2018, no Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF3). Em 2020, o caso foi levado ao STF, que reconheceu o tema como de repercussão geral, o que significa que o entendimento da Corte deverá ser aplicado em processos similares nas instâncias inferiores da Justiça.
Relator na época, o então ministro Ricardo Lewandowski concluiu que o tema tem relevância e vai além do caso concreto. “Com efeito, a causa extrapola os interesses das partes envolvidas, haja vista que a questão central dos autos (permanência de símbolos religiosos em órgãos públicos federais e laicidade do Estado) alcança todos os órgãos e entidades da Administração Pública da União, estados e municípios”, afirmou.
VALORES DA CONVIVÊNCIA
Em 2011, o Cardeal Odilo Pedro Scherer foi ouvido pelo TRF3 como uma das testemunhas do julgamento. Na ocasião, o Arcebispo de São Paulo ressaltou que o Brasil é um país de tradição católica e que “essa tradição explica a convivência hodierna entre os símbolos católicos e o princípio atual da laicidade do Estado”.
O Arcebispo afirmou, ainda, “que a presença de símbolos de qualquer religião teria certamente o condão de remeter positivamente aqueles que professam a fé representada ou algum valor, ou preceito religioso; que para os que não professam determinada fé, o símbolo pode não dizer nada, porém uma vez reconhecido como tal, independentemente da religião, teria o condão de remeter a valores que edificam a convivência humana; que pode exemplificar com a presença do crucifixo, que em um tribunal, por exemplo, representaria um exemplo de uma condenação injusta sem que tal exemplo necessariamente tivesse um viés religioso”.
PRIMEIROS VOTOS
Os ministros Cristiano Zanin, atual relator da ação, e Flávio Dino votaram contra a retirada de símbolos religiosos de prédios públicos.
Zanin afirmou que a presença desses itens não deslegitima a ação estatal, e que não fere a liberdade de ter, não ter ou deixar de ter uma religião. Ele discordou da premissa do MPF, ressaltando que crucifixos ou demais itens de simbologia cristã não são apenas expressões religiosas, mas também culturais. “O Cristianismo esteve presente na formação da sociedade brasileira, registrando a presença jesuítica desde o episódio do descobrimento e, a partir daí, atuando na formação educacional e moral do povo que surgia”, disse em seu voto.
Ainda segundo Zanin, para além da discussão em torno dos crucifixos, não há como desconsiderar que a influência religiosa transparece também em feriados, nomes de ruas, praças, avenidas, escolas e até estados brasileiros. “Entendo que a presença de símbolos religiosos nos espaços públicos, ao contrário do que sustenta o recorrente, não deslegitima a ação do administrador ou a convicção imparcial do julgador; não retira a sua faculdade de autodeterminação e percepção mítico-simbólica; nem fere a sua liberdade de ter, não ter ou deixar de ter uma religião”, prosseguiu.
O ministro propôs a fixação da seguinte tese de repercussão geral: “A presença de símbolos religiosos em prédios públicos, pertencentes a qualquer dos poderes da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios, desde que tenha o objetivo de manifestar a tradição cultural da sociedade brasileira, não viola os princípios da não discriminação, da laicidade estatal e da impessoalidade”.
Flávio Dino afirmou que a valorização da dimensão religiosa do ser humano pela Constituição reflete uma influência histórica do Cristianismo e, em particular, da Igreja Católica no Brasil. “Da mesma forma, a manutenção de símbolos e celebrações de diversas tradições religiosas, como o Círio de Nazaré e a Festa de Iemanjá, reforça a riqueza de nossa diversidade cultural e espiritual”, afirmou.
Dino acrescentou que os símbolos religiosos do Cristianismo transcendem o aspecto puramente religioso e assumem um valor cultural e de identidade coletiva, reconhecível por toda a sociedade. “O crucifixo, assim, possui um duplo significado: representa a fé para os crentes e a cultura para os que compartilham da comunidade. Proibir a exposição de crucifixos em repartições públicas seria instituir um Estado que não apenas ignora, mas se opõe a suas próprias raízes culturais e à liberdade de crença, transformando o princípio de laicidade em um instrumento de repressão religiosa, em desacordo com os valores constitucionais brasileiros”.
Os outros nove ministros têm até o dia 26 para registrar seus votos no sistema virtual do STF. Caso haja pedidos de vistas ou destaques que suspendam a votação, o julgamento passará ao plenário físico.