A amizade social, a oração e a conversão

O olhar dos verdadeiros místicos não nos afasta da realidade, mas nos permite vê-la a partir do nosso diálogo com Deus na oração

Arte: Sergio Ricciuto Conte

São 60 anos que a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), com a Campanha da Fraternidade (CF), organiza durante a Quaresma uma maratona espiritual e humana sobre aspectos sociais e religiosos da realidade sofrida do nosso povo. Deus não gostaria que sua Igreja ficasse “fechada’’ nas sacristias esperando o povo, dando bênção, recebendo ofertas, sem lançar sua luz sobre os problemas sociais. Nunca podemos esquecer as palavras que Deus dirige a Moisés no início do seu caminho libertador com o povo escravo no Egito: “Vi a aflição do meu povo no Egito, ouvi o seu clamor diante dos seus opressores e conheço os seus sofrimentos. Desci para libertá-lo’’ (Ex 3, 7-8). Essas palavras não fazem parte de um mundo passado, mas soam parte viva da história do povo que com ajuda de Deus e com a própria cooperação tenta se libertar dos novos faraós e das novas escravidões que o oprimem.

Como sugerem o tema (Fraternidade e amizade social) e o lema (“Vós sois todos irmãos e irmãs’’) da CF 2024, não pode haver divórcio entre fraternidade, amizade social e sermos todos irmãos e irmãs (cf. Mt 12, 50; Mc 3, 35; Gal 3, 28).

Construir a paz e a fraternidade, soa como um trabalho artesanal, do dia a dia, em que, superando os muros e as divisões, adquirimos uma nova ótica, que tem como base o amor, não os projetos de poder. Essa construção se realiza no diálogo autêntico. Sem diálogo, não há nem mesmo oração, pois a oração é ‘’um íntimo diálogo de amor, estando a sós, com aquele que sabemos que nos ama”, como diria Teresa d’Ávila.

Contemplar implica ver a realidade e iluminá-la com a palavra de Deus, agindo a partir daí. Sozinhos, não podemos ir ao paraíso, nem sermos felizes. Se a nossa oração não nos leva a descobrir que o outro não é um rival a ser “cancelado, deletado, eliminado’’, jamais chegaremos a ser todos irmãos e irmãs. Os meios de comunicação não geram comunhão e diálogo se os que estão por trás destes meios não têm dentro de si paz, harmonia e amor. Não se trata de aperfeiçoar os meios, mas sim de aperfeiçoar o coração e, a mente.

No mundo de hoje vive-se a cultura da agressividade e da destruição para sobreviver, em todos os campos, do teológico ao moral, do pastoral ao familiar. Vivemos num momento de noite, e, no escuro, damos golpes a esmo achando que os fantasmas são reais. Os místicos nos dizem que na noite é necessário parar, deixar as trevas se afastarem para tomar novos caminhos. O tema da Campanha da Fraternidade nos convida a parar e caminhar para a luz da Páscoa, deixando-nos iluminar para atuar segundo uma autêntica conversão de vida, rumo a uma cultura do diálogo, da escuta, das mãos dadas para caminhar juntos rumo à paz e à comunhão.

É a oração que pode “reumanizar” a vida social, criar a amizade social. Só com as leis humanas, podemos chegar a uma convenção de ordem e de medo. Só com o amor ensinado pelo Cristo, centro e luz de todo o nosso ser, podemos chegar a ser “irmãos e irmãs de todos’’. Só quem encontrou Deus no mistério da oração tem capacidade de viver uma amizade social que é verdadeiro amor ao outro. “Não há amor maior do que dar a vida por aqueles a quem se ama” (1 Jo 3, 16). A Campanha da Fraternidade parte de uma visão social, a ilumina com a Palavra de Deus, e convida a agir com a conversão não às ideologias do momento, mas à pessoa de Jesus de Nazaré.

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