A amizade social é uma tarefa conjunta

Min An/Pexels

Quaresma exige conversão. O conceito de conversão, como metáfora do trânsito urbano, significa mudança de rumo. Converter é virar para um lado ou outro. No caminho rumo ao mistério pascal, a mudança tem duas dimensões: uma espiritual, no sentido de aprofundar a intimidade com Deus, deixar-se guiar por sua Palavra viva; outra sociopastoral, na tentativa de estender a mão aos irmãos e irmãs pobres e mais necessitados. Esta segunda dimensão, no Brasil, ganha maior relevo devido ao tema da Campanha da Fraternidade deste ano, Fraternidade e amizade social, que lembra sermos “todos irmãos e irmãs”.

O País foi sacudido por ondas de ódio, mentira e mútua desconfiança. Ameaças públicas semearam violência dentro de instituições que vão desde a prática política até o interior das famílias, passando pela Igreja e comunidades, sem poupar os laços sagrados que tecem as relações humanas. Daí a fragmentação e a polarização sociopolíticas. Disso resultou o fatal e letal rompimento do fio da confiança, o qual tece o xadrez da vida social. Sem a confiança, por mais tênue que seja, tampouco haverá ligações vitais de amizade no ambiente familiar, religioso, comunitário ou político-cultural. Esgarça-se o tecido social, junto com a falta de referências sólidas para orientar a conversão em relação a Deus e à caridade solidária. Passam a bater à porta os espectros da crise, do caos e do medo.

Duas são as bases para as referências que orientam nossas frágeis embarcações: um berço sadio, revestido de ternura, estima e reconhecimento, que só a família, a casa e o lar podem oferecer; e instituições como a escola e a Igreja, entre outras, que procuram traçar as balizas, a bússola e o rumo em direção ao porto seguro. Nos dias atuais, porém, grande parte das famílias – em especial na base da pirâmide social – não possuem as condições mínimas para oferecer um berço saudável e, ao mesmo tempo, os limites da liberdade. Ocupadas com a sobrevivência, intável e precária, não lhes sobra tempo nem energias para “fazer da necessidade uma virtude”.

A sociedade moderna, com gritantes disparidades sociais, ao retirar das famílias vulneráveis o direito e o dever de criar berços sadios e estabelecer regras ao bem viver, deixou uma lacuna intransferível. Como pode outra instituição assumir esse compromisso, se ele foi postergado a uma idade em que prevalece a “formação das ruas”? Sem o substrato familiar de amor, presença, carinho, autoestima e reconhecimento, como esperar das pessoas um comportamento responsável? Os estigmas da exclusão social, há séculos impressos no corpo e na alma, leva-as aos becos sem saída do trabalho informal, da droga, do álcool, da prostituição, da violência!…

Aqui, quem vai cuidar dos limites e regras serão as forças policiais, os juízes e os tribunais!… Então, será tarde demais, e a vida pode terminar numa famigerada cracolândia!

Entra aí o gigantesco desafio da Igreja e das instituições similares. Trata-se da recomposição do fio da confiança! Não é fácil religar o que foi irresponsavelmente rasgado nos palanques, nas praças públicas e nas ruas, mas sobretudo na mídia e nas redes sociais. Sem esse cimento que une os tijolos das relações sociais, nada poderá ser feito com eficácia. A confiança, e somente ela, consiste no único instrumento para refazer ligações íntimas e amizades rompidas. E o caminho desse processo passa, necessariamente, pela proposta sinodal de “caminhar juntos”. A conclusão lógica é que a amizade social é uma tarefa conjunta.

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