A comunidade beneditina e suas obras como modelos para a sociedade: acertos e perigos de uma intuição

Não é preciso muita observação para perceber a busca mística e a falta de paz interior que assola nossa sociedade, transformada num deserto espiritual frenético. Por mais que as religiões sejam atacadas, às vezes até com razão, o fato é que a necessidade de um Outro e da paz que Ele pode infundir nos corações é evidente. Diante dessa realidade, a vida monástica beneditina pode — e deve ser — tanto um espaço privilegiado para as almas extenuadas quanto um modelo de convivência e desenvolvimento pessoal. Contudo, essa intuição, para corresponder a um verdadeiro espírito cristão precisa ser adequadamente compreendida em sua contribuição para a sociedade, evitando certos esquematismos que podem até se afastar de uma visão realmente monástica e católica.

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Alasdair MacIntyre, um dos mais importantes pensadores católicos contemporâneos, em seu livro Depois da virtude: um estudo sobre teoria moral (Campinas: Vide Editorial, 2021), originalmente publicado em 1981, defende que o catolicismo precisa subsistir, nos tempos atuais, em pequenas comunidades, que buscam a excelência moral, orientando-se pelo cultivo da verdade e das virtudes. Seguindo essa intuição, Rod Dreher, um jornalista conservador norte-americano, consagrou a ideia de uma “opção beneditina” como alternativa que permitiria algo como uma recristianização de um mundo considerado pós-cristão (A Opção Beneditina: uma estratégia para cristãos no mundo pós-cristão. Campinas: Ecclesiae, 2021).

Esse não é o espaço para uma análise aprofundada desses autores, mas deve-se observar os limites de uma certa interpretação, muito comum, dessas obras. Elas retomam, com razão, a ideia de que a cristandade europeia medieval foi construída a partir das pequenas comunidades beneditinas, que superaram a barbárie circundante e conservaram os valores da Antiguidade e da civilização. Para essa visão esquemática, de modo análogo, nos tempos atuais, pequenas comunidades que cultivam a própria vida comunitária e os valores da tradição teriam a capacidade de vencer a sociedade pós-cristã em que vivemos e reimplantar os valores fundamentais trazidos pelo Cristianismo.

Ora, essa concepção, em primeiro lugar, padece de uma concepção his- tórica equivocada. Na Idade Média, as pequenas comunidades monásticas se disseminaram em um mundo não cristianizado. Numa analogia militar, eram como pequenas fortalezas que iam se espalhando em território hostil. Hoje, o mundo ocidental já foi cristianizado, nossas pequenas comunidades cristãs, como são os movimentos e novas comunidades, se vistos sob essa ótica, serão como fortalezas onde nos refugiamos ao perdermos um território que era nosso. Não é um avanço, é uma capitulação. Frequentemente, esse tipo de postura acaba nos enclausurando em “bolhas”, cada vez mais sectárias e incapazes de dialogar. Acabamos caindo num fechamento que, historicamente, levou justamente à perda da capacidade dos cristãos interagirem positivamente com a modernidade – e ao consequente declínio do Cristianismo como critério de discernimento cultural para nossos tempos.

O mal deve ser vencido, primeiro, em nosso coração. Em segundo lugar, essas visões, quando assim esquemáticas, partem de uma concepção errônea do que seja a verdadeira opção monástica. O monge não vai para o deserto ou para o mosteiro para fugir do mal do mundo, acreditando que lá encontrará o bem. Ele sai do mundo para escapar da distração, é verdade, mas vai de encontro ao mal, para enfrentá-lo e, com a graça de Deus, vencê-lo. Na concepção monástica, o mal não está – em primeiro lugar – no mundo, mas em nosso coração (cf. Mc 7, 14-23). A verdadeira opção monástica não é fugir do mundo para escapar do mal, mas dirigir-se conscientemente para a arena onde a batalha contra o mal é mais renhida, que é o nosso coração.

Toda a reflexão sobre os logismoi (palavra grega que pode ser traduzida por “tentações”), clássica no catolicismo oriental e na patrística, passa justamente pela ideia dessa luta contra o mal que está em nós. Mas grande parte das alardeadas “batalhas culturais” do Cristianismo atual – justas no desejo de fazer prevalecer a verdade – colocam o mal como um perigo que está no mundo, fora de nossas comunidades e de nossas posições culturais. Com isso, pode-se acabar cultivando o mal que está escondido no próprio coração. É o que vemos nas muitas formas de manipulação da fé, com fins políticos ou mesmo financeiros, tanto à direita quanto à esquerda.

Comunidades abertas ao mundo. As comunidades monásticas que geraram a cristandade medieval, bem como as irmandades e guildas medievais que engendraram a sociedade mercantil capitalista ou as missões jesuíticas que criaram a verdadeira experiência intercultural latino-americana (apesar de destruídas pelos interesses dos poderosos da época – mas essa é outra história), são comunidades abertas para o mundo. Não são feitas para proteger-nos dos valores do mundo, mas, sim, para abraçar o mundo.

Nesse processo, as comunidades monásticas inclusive se afastam de um projeto político. Os monges antigos, com certeza, não estavam pensando no projeto de uma cultura de mil anos, como Hitler e seu Reich, mas estavam abertos à interação com seus vizinhos – e por meio dessa interação foram transmitindo uma cultura e seus valores. É a interação construtiva, não a denúncia conflitiva, que cria o novo.

As obras não mudam rapidamente o mundo, nossa recompensa não vem de grandes mudanças sociopolíticas, mas, sim, do encontro com Deus e da satisfação que nos vem de constatar o bem do irmão. Essa liberdade do êxito pode parecer uma debilidade, mas é justamente a força que permite superar – no tempo – as armadilhas da realpolitik, o realismo político que diz que tudo é definido pela força dos poderosos e acaba de um modo ou de outro consentindo com o poder (cf. Fratelli tutti, FT 193-197).

A comunidade aberta ao mundo nasce de um coração tomado pelo amor a Cristo. As obras católicas se abrem para o mundo, com liberdade e gratuidade, na medida em que são orientadas, de fato e não só em teoria, pelo desejo de amar a Deus e aos irmãos. Não se trata de uma questão de proposições conceituais, normas ou estruturas. É uma questão de onde está nosso coração, qual a nossa busca real. Como lembra o Papa Francisco, a Igreja não pode se deixar confundir com uma ONG sócio-caritativa, não pode deixar que o anúncio apaixonado por Cristo ressoe em suas obras (cf. Querida Amazonia, QA 64)

A sociedade contemporânea, com suas complexas relações de poder, exige uma consciência de si e uma projetualidade que geralmente faltam às obras sociais católicas. Na verdade, esse é um problema de todo o Terceiro Setor, que sabe vencer com eficiência os desafios do micro, do local e do pessoal, mas tem dificuldade em se articular no nível macro, no qual acaba aderindo a programas e posições políticas que muitas vezes nem se coadunam com suas práticas. Contudo, o desenvolvimento de uma visão política das obras sociais ou mesmo da defesa da fé não pode ocupar o lugar do amor de Deus – erro comum em cristãos militantes tanto à esquerda quanto à direita.

Esse é o caminho não para um novo projeto hegemônico de cristandade, mas para o nosso próprio bem e para o bem de todos aqueles aos quais Deus ama.

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