Como a sabedoria monástica pode nos ajudar a ter uma posição mais adequada para enfrentar a desgastante realidade política de nossos dias? A pergunta pode parecer estranha para alguns, pois a vida monástica não é chamada tanto a falar sobre as coisas que proclama, mas a vivê-las, e vivendo-as, proclamá-las. Ao viver de um modo simples e humilde, por meio de sua oração que toca e modifica a realidade, o monge – aquele que busca viver em unidade com Deus – compartilha sua riqueza com o mundo. Quem conhece a sabedoria monástica constata que algumas das “descobertas” que acompanham sua intensa experiência de oração podem ser particularmente úteis para enfrentarmos os desafios político-sociais atuais. Assim, o Núcleo Fé e Cultura pediu que Ana Lydia Sawaya apresentasse algumas dessas descobertas e a forma como podem incidir no modo com que vivemos nossa vida social e política.
O VALOR DO SILÊNCIO
O mundo de hoje precisa reaprender o silêncio. Um silêncio que não é vazio, mas preenche, restaura, endireita, reordena a vida e o instante presente. No constante barulho da cidade, na correria da vida cheia de preocupações e afazeres, as pessoas se desumanizam, se esvaziam e se perdem. Não sabem mais quem são; tornam-se como bolhas vazias – ocupam espaço, mas são ocas por dentro e estouram fácil. Perde-se o rosto e perde-se si mesmo. Cria-se um vazio ruidoso, agora incrementado pelo uso desregrado das mídias digitais.
O silêncio é uma suspensão do falar, uma interrupção dos afazeres e do barulho, do contato direto com as pessoas, para viver um momento em que se entra em si, um tempo para conversar com Deus. Esse silêncio pode dar medo, mas é só no começo. Se mergulharmos nele, conseguiremos ouvir a voz de Deus (Dt 6,7): “Escuta Israel, o Senhor é o nosso Deus. Lembre-se Dele e fale Dele para os seus filhos, quando comeres e quando dormires, quando caminhares pela rua, quando te deitares e quando te levantares”.
Os momentos de silêncio servem para escutar a Deus que nos fala por meio do que está acontecendo fora e dentro de nós. O Espirito de Deus age sempre e é o único que nos pode dar o sentido das coisas e dos eventos. Só a partir do silêncio, saberemos o que é justo pensar e como agir. A sabedoria nasce em quem habita no silêncio.
É da experiência do silêncio que nasce a palavra. A palavra se nutre do silêncio, precisa do silêncio. O silêncio é deixar o espaço ao Outro e ao outro. É fazer o outro ser. É a origem da caridade. O silêncio é aquilo que permite a nudez e a transparência das coisas. É necessário habitar o silêncio para poder gerar e criar ambientes de vida. É o silêncio que impede que a vida seja gasta só com coisas a fazer. Só quem habita o silêncio experimenta a plenitude da vida.
A SÁBIA DISTÂNCIA DAS COISAS
De uma utilidade única, pois torna tudo mais doce e fácil na vida, a sábia distância das coisas é, em primeiro lugar, fruto do hábito da oração cotidiana, de procurar reservar um tempo para meditar sobre como se vive e age. O monaquismo antigo, que vinha da cultura grega, descreveu essa experiência usando as palavras gregas xenitèia e amerimnía.
Xenitèia significa agir como se fossemos sempre peregrinos e de passagem nessa terra. Essa lembrança permite que estejamos sempre no nosso próprio lugar, fiéis à discrição e sem querer aparecer, não procurando os primeiros lugares, mas estando sempre na condição de hóspede ou estrangeiro que acabou de chegar. Quem vive assim, aprecia falar das coisas que encontra e não de si mesmo. Não se relaciona com as coisas de modo a se justificar ou buscar subterfúgios para as próprias opiniões ou ações. Se está sempre de passagem e acabou de chegar, o que ele conhece a fundo ou totalmente? Não há sempre coisas novas e desconhecidas a serem descobertas?
O peregrino carrega poucas coisas, é cidadão das coisas essenciais, não pode carregar aquelas inúteis e muito pesadas. Está totalmente presente no lugar e no momento onde estiver, mas de passagem onde mora. Estando sempre de passagem e em viagem, toca a realidade onde vive com a delicadeza de quem está ali temporariamente, fugindo sempre da lógica de poder. Tem diante dos olhos o quanto é ridícula essa lógica, pois sabe quanto é efêmera. Sabe ser insensato qualquer tipo de posse e carreirismo. Quem tem a graça de ter vivido tempo suficiente para olhar a realidade na sua complexidade, com certeza teve a oportunidade de observar tantos chefes ou pessoas poderosas que, depois de no máximo algumas décadas, perderam seu esplendor.
Amerimnìa significa não ter preocupações que nos dominem. É a consequência natural de sentir-se sempre de passagem e como estrangeiro. Depois que a percepção de que somos peregrinos retira de nós a ânsia de controlar, esta condição pobre e justa impele-nos a entregar a Deus cada preocupação para com as coisas, pessoas e a própria vida. Não somos mais dominados pela insegurança nas rivalidades, pelo medo do futuro, pelo que falam sobre nós (eu e eles não estamos de passagem?), pelos defeitos dos outros, pela ânsia de salvar o mundo, pela agitação típica do perfeccionista…
Não nos engana mais toda a percepção errônea e equivocada que temos da realidade, e que nos faz viver como pessoas que não conhecem nem a providência divina nem o senhorio de Deus sobre a história.
Pode ser que quem vive assim pareça passar desapercebido no ambiente. Não será sem dúvida aquele que se impõe e aparece (mas como dissemos antes, essa condição é, invariavelmente, enganadora, porque passageira). Não será, muito provavelmente, aclamado; pois não faz nada para atrair a atenção sobre si. Mas um olhar mais agudo, nos ensina que, com o tempo, o testemunho será cada vez mais apreciado. Mas, reconhecido ou não, já é cidadão do céu e construirá mais do que construiria buscando sucessos mundanos.
A SOBRIEDADE E A VIGILÂNCIA
A tradição monástica ensina ainda um modo de ser que nos permite agir em tudo que fazemos com inteligência e discernimento. É indicado pela palavra grega nêpsis, que pode ser traduzida como sobriedade ou vigilância.
Nêpsis é um modo de viver com qualidade todas as relações: consigo mesmo, com os outros e com as coisas. É viver os relacionamentos com atenção, de forma a não sermos excessivos em nada. A sobriedade nas relações contrasta com todo e qualquer abuso, excesso, perversão nas relações, de modo a descobrir a beleza das coisas simples e límpidas.
Quem vive a sobriedade respeita cada coisa, não abusa de nada, aprende a saborear as pequenas coisas. Quem vive com sobriedade é também hospitaleiro e capaz de acolher quem quer que seja. A nêpsis, então, nos ensina o equilíbrio, a medida justa, o modo harmônico de viver, sem sentir falta nem excesso, sem ter nem pouco nem demais.
É ter um olhar atento, vigilante, que procura discernir a relação com cada coisa. Na língua grega, o verbo népheim e o substantivo nêpsis que definem o estado de sobriedade e de vigilância são opostos ao estado de embriaguez e sonolência, indicado pelo verbo metŷhein.
A sobriedade ou nêpsis é também a resposta mais adequada para a nossa sociedade e sua voracidade no possuir. É de sobriedade que precisamos e não de aumento de consumo para vencer a pobreza. É falso que o aumento da riqueza econômica de um país é suficiente para acabar com a pobreza. É preciso sobriedade, porque só o exercício da sobriedade permite o desejo de partilhar; ao passo que a voracidade destrói a relação com si mesmo, com os outros e com as coisas.
A sociedade moderna nos ensina a ser consumidores vorazes, violentando as coisas e as pessoas. O Papa Francisco retoma esta antiga tradição monástica quando diz na Laudato si’ (LS 224): “A sobriedade e a humildade não gozaram de positiva consideração no século passado. Mas, quando se debilita de forma generalizada o exercício de alguma virtude na vida pessoal e social, isso acaba por provocar variados desequilíbrios, mesmo ambientais. Por isso, não basta falar apenas da integridade dos ecossistemas; é preciso ter a coragem de falar da integridade da vida humana, da necessidade de incentivar e conjugar todos os grandes valores. O desaparecimento da humildade, num ser humano excessivamente entusiasmado com a possibilidade de dominar tudo sem limite algum, só pode acabar por prejudicar a sociedade e o meio ambiente”
Nêpsis é o fruto natural da inclusão da oração diária em nossa vida; lendo e meditando a Bíblia, a vida dos santos, a Liturgia das Horas. A oração é a obra de purificação dos nossos desejos. É a oração que nos ensina a sobriedade, a justa medida nas relações com as coisas, a deixar que cada coisa tenha o seu valor, seja respeitada no seu “porque existe”, não seja abusada. Isso vale para roupas, sapatos, comida, bebida, música, computador, celular, jogos, corpo, sono, o outro, qualquer que ele seja. Tudo, enfim, que existe e tem motivo para existir.
OLHAR PARA O ALTO: A MIRADA CONTEMPLATIVA
A vida monástica tem uma função específica na sociedade: lembrar a todos que é preciso olhar para o alto e não só para os lados. Só a presença de algo, alguém, maior do que nós pode ordenar toda a realidade, criar harmonia e construir um mundo melhor.
Duas retas diferentes e paralelas nunca se cruzarão; porém, duas retas diferentes, mas inclinadas uma para a outra, se encontrarão. Onde? Num ponto mais alto. Assim é a reconciliação.
O encontro entre diferentes só pode ocorrer quando olham para um ponto mais alto do que o momento ou a circunstância atual. A reconciliação e o perdão verdadeiros não nascem da boa vontade e da generosidade (embora ambas possam ajudar). Necessitam de uma outra coisa, maior e mais magnânima do que a vontade humana, que nesse caso dificilmente conseguiria ultrapassar a barreira do voluntarismo.
No caso das desavenças entre os seres humanos onde estaria o ponto de inflexão e unidade? Na união que nasce de nos reconhecermos como seres humanos, criaturas amadas por Deus, nas quais o Espírito habita e, se deixarmos, age. Essa é a experiência contemplativa. Ver o que é invisível aos olhos.
É uma condição pobre e justa que nos impele a entregar a Deus cada coisa, cada preocupação. Nossa condição ontológica de criaturas nos irmana. Olhar para o alto, para a nossa origem, nos reúne. O diálogo é possível porque ambos pensamos, sentimos e falamos; mesmo que com linguagem, sensibilidade e história de vida diferentes. Não somos mais dominados pela rivalidade, pelos defeitos dos outros, pela ânsia de salvar o mundo…
Sabemos que cada ser humano vê um ângulo diferente, seu, que lhe é próprio, e que nenhum ser humano tem a visão do todo. Assim, ninguém pode se arvorar a dizer: a verdade está comigo, só eu a possuo. A visão mais ampla e, portanto, mais realista, será sempre a que abraçar, o melhor possível, os diferentes ângulos existentes na realidade.
A SABEDORIA NO USO DO TEMPO
A vida monástica tem, como características, viver bem o tempo, a sobriedade e a pobreza no uso do espaço. Reconhece que o tempo é superior ao espaço, como lembra o Papa Francisco (Evangelii gaudium, EG 222-225).
O livro do Eclesiastes diz que há um tempo que se pode medir (zman, em aramaico) para tudo e um tempo oportuno (et) para todo propósito debaixo do sol (cf. Ecl. 3, 2-8).
Não obstante Deus ter feito cada coisa bela e no momento oportuno (pois o instante para Deus é et e não apenas zman), e embora o coração do ser humano possua essa sombra de eternidade, não conseguimos ter a visão do todo. Vivamos, porém, o et com alegria, diz Eclesiastes (3, 12): “Não há felicidade para o homem a não ser a de alegrar-se e fazer o bem durante a vida”.
Pode-se dizer que o modo cristão de viver o tempo, no tempo, é sintetizado em outra palavra grega: hypomoné (perseverança ou paciência). A hypomoné é aceitar o tempo próprio de cada ser, viver adequadamente nosso tempo pessoal, aceitar o tempo de Deus e o tempo do outro. “É pela vossa perseverança (paciência) que ganhareis a vida” (Lc 21,19), diz Jesus já próximo à sua prisão e crucifixão. Quanta paciência Ele precisou ter… Até com seus amigos que não o compreendiam… São Paulo diz que a primeira característica do amor é a paciência (cf. 1Cor 13,4).
De onde nasce essa sabedoria? Da capacidade de perceber a eternidade presente no instante. Se meu próprio limite, uma outra pessoa ou uma situação nos irritam, nos enfurecem ou nos desencorajam e deprimem, paremos um pouco e busquemos reconhecer a eternidade presente naquele momento. Há algo além, acima, das coisas que vejo, ouço, toco ou sinto que governa tudo. As minhas sensações e percepções não são tudo. Além das coisas que vejo, ouço, toco ou sinto, que estão na dimensão do espaço (no caso, sufocante…), há uma outra dimensão: o tempo.
Para não ficarmos presos apenas à dimensão do espaço sufocante, é preciso pararmos para reconhecer a eternidade do instante e dar tempo ao tempo.
Belíssima e bem proveitosas essas reflexões.
Agradeço a simplicidade e sabedoria de sua autora e a todos que contribuíram para que chegassem a nós.