A defesa da vida e os desejos mais profundos de nosso coração

No Brasil, a partir de uma iniciativa da CNBB, de 2005, o mês de outubro é tradicionalmente dedicado à defesa da vida. Assim, nesta edição do Caderno Fé e Cidadania nos debruçamos sobre este tema, sob um enfoque menos frequente. Nos perguntamos: Qual seria a postura humana mais capaz de se abrir para a defesa da vida?  Como estimular essa postura em nossos dias? A resposta a estas perguntas nos leva a um percurso, que começa da compreensão da nossa experiência humana, dos desejos mais profundos de nosso coração, até a acolhida concreta às pessoas em dificuldade. Um percurso que precisa, cada vez mais, ser iluminado pela fé.

Arte: Sergio Ricciuto Conte

A defesa da vida não é uma luta “confessional”. Todos os dias nos damos conta de como tendemos naturalmente a nos alegrarmos com as crianças, a nos enternecermos com nascituros mostrados em imagens de ultrassom, a planejarmos nossas vidas em função de nossos filhos, a nos comovermos com a sobrevivência dos idosos, a sentirmos empatia com as dores dos que sofrem e dos que estão às portas da morte. Todas essas vivências cotidianas nos mostram o quanto o amor e a defesa da vida correspondem à nossa natureza. Descobrimos a nossa própria humanidade diante da fragilidade da vida e da necessidade de acolhê-la e protegê-la.

Se é assim, por que a chamada “cultura da morte” se expandiu tanto em nossos tempos? Que estranha barbárie é essa, que faz com que nossa civilização, cada vez mais sofisticada e, aparentemente, autoconsciente, negue cada vez mais as nossas experiências mais humanas? Muitos sábios cristãos, particularmente ao longo do século XX, apontaram o problema. Segundo São João Paulo II (cf. Evangelium vitae, EV 22), o eclipse do sentido de Deus leva ao eclipse do sentido de nossa própria humanidade.

De fato, a luta pela vida não é confessional, está inscrita em nossa humanidade. Mas essa humanidade não se manifesta mecanicamente em nossa vida. Somos seres livres e contraditórios, precisamos empenhar adequadamente nossa liberdade para realizar plenamente nossa humanidade… Este empenho pode acontecer na vida de qualquer ser humano. Contudo, como observa Bento XVI no início da Conferência de Aparecida:

“Onde Deus está ausente, o Deus do rosto humano de Jesus Cristo, estes valores não se mostram com toda a sua força, nem se produz um consenso sobre eles. Não quero dizer que os não-crentes não podem viver uma moralidade elevada e exemplar; digo somente que uma sociedade na qual Deus está ausente não encontra o consenso necessário sobre os valores morais e a força para viver segundo a pauta destes valores, também contra os próprios interesses” (Discurso na sessão inaugural da V Conferência Geral do Episcopado da América Latina e do Caribe).

O encontro com Cristo desperta nossa humanidade, tantas vezes adormecida diante do cotidiano banalizado, das esperanças perdidas, dos sofrimentos e das injustiças. Quem olha, com coração sincero, para o mais íntimo de seu ser, descobre que optar pela vida é a posição mais condizente com seus desejos mais profundos. A realização da pessoa não coincide obrigatoriamente com a ausência da dor, mas sim com um amor que consegue ser maior do que a própria dor.

Tal amor não pode nascer da posição voluntarista e autocentrada típica de nossa cultura. Ele só pode nascer como resposta a um amor maior, um amor que, segundo o sugestivo neologismo do Papa Francisco (Evangelii Gaudium, EG 24), nos “primereia”, isso é, vem primeiro, nos alcança antes. Descobrir e anunciar esse amor é a forma mais radical, no sentido de estar nas origens, de uma verdadeira “cultura da vida”.

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