A experiência na qual nos reconhecemos como pessoas

O que está em jogo nas grandes questões que interessam à bioética não se resolve somente com um eficaz acesso à informação científica. É necessário sempre resgatar o significado do que vem a ser a pessoa humana em todo o seu valor e dignidade. Buscar conhecer a integralidade da experiência de ser pessoa é um aspecto central na reflexão bioética.

A ciência e a caridade (Picasso, 1897). O médico diagnostica o doente, sem olhar para ele, enquanto a freira lhe oferece chá e carrega seu filho: a complementariedade entre ciência e amor, necessária para a justa compreensão do sofrimento humano.

Quando o tema de reflexão é a pessoa humana, como acontece na bioética, tratamos de uma realidade que cada um de nós já conhece de alguma forma, pois cada um de nós é pessoa. Mas o que significa ser pessoa? Como podemos conhecê-la, superando a subjetividade de cada um e criando uma visão compartilhada e coerente? As ciências, tais como a biologia, a medicina, a sociologia ou a psicologia, podem e devem ser empregadas, mas não são suficientes. Não é, por exemplo, a genética ou a fisiologia que me dizem quem sou eu. Também existem muitos conceitos de pessoa espalhados pela filosofia, pela teoria do direito e pelas ciências humanas – mas que não chegam a um consenso.

Intuímos que ser pessoa vem antes de ser cidadão. Enquanto a dignidade e os direitos do cidadão dependem do corpo social e da submissão do indivíduo às normas da sociedade, a pessoa tem dignidade e direitos inerentes a seu existir. Qual será essa experiência que nos leva a perceber essa dignidade que não depende de nossas ações nem nos pode ser tirada; que antecede, inclusive, nosso pertencer a um corpo social? 

A experiência elementar. Conhecemos a realidade a partir de nossas experiências e da elaboração intelectual que fazemos delas. Contudo, vivenciamos muitas coisas sem percebermos seu significado – por exemplo, só nos damos conta da importância da respiração quando nos falta o ar. A experiência implica, pois, uma inteligência do sentido das coisas, de sua relação com a totalidade de nossa vida, de nosso destino.

Se observamos com atenção para nós mesmos e para aqueles que nos cercam, veremos que existe uma “experiência elementar” que está na base de todo gesto ou posicionamento humano: são exigências (como a de felicidade e justiça) e evidências fundamentais (como a própria existência e a da realidade). Esse ímpeto original está na base tanto da religiosidade (GIUSSANI, L. O senso religioso. São Paulo: Companhia Ilimitada, 2023) quanto de toda a interioridade humana (cf. MAHFOUD, M. Experiência elementar em psicologia: aprendendo a reconhecer. Brasília: Universa, 2012).

Em sala de aula. Não é o propósito aqui fazer aprofundamentos teóricos. Prefiro exemplificar mostrando como costumo apresentar essa questão a meus alunos na universidade. Existe, na prática clínica dos profissionais de saúde, uma tendência de desnivelamento e poder entre eles e seus pacientes, levando a situações de distanciamento e/ou instrumentalização – no jargão da bioética, de desumanização.

Como, enquanto professor de bioética, posso ajudar a despertar um respeito verdadeiro – que não esteja à mercê de um sentimento, ainda que generoso e prudente, ou de um instante passageiro – mas que nasce do fato do outro ser uma pessoa, irredutível a opiniões, reações ou vontades? Provocando os meus alunos a julgar tudo a partir das exigências do próprio coração, suscitando sua “experiência elementar”. Não se trata de apontar para um sentimentalismo, uma emotividade, que poderia receber muitas críticas. Trata-se de resgatar experiências, mesmo que intuitivas, do significado antropológico, ontológico, do que significa ser pessoa humana.

Costumo propor aos estudantes um problema: como deve agir um profissional da saúde que diagnostica em seu paciente una doença grave, que implica em tratamentos invasivos e dolorosos, de risco, como cirurgias ou quimioterapias? Os alunos, imbuídos das melhores intenções, propõem que o profissional seja atencioso e esclareça adequadamente o paciente, oferecendo-lhe todas as informações necessárias para entender a doença e o tratamento proposto.

Neste ponto, proponho um aditivo ao problema: mesmo esclarecido, o paciente declara que se recusa a se submeter a tais tratamentos. Os alunos, então, falam em insistir com os argumentos, mas, se ele continuar não concordando, concluem que o profissional tem de respeitar a opinião do paciente. Cada um seguirá seu caminho, afinal existem muitos outros pacientes a serem atendidos, e o profissional já fez sua parte.

Nessa etapa da discussão, incorporo um terceiro elemento: o paciente não deverá ser concebido como uma pessoa qualquer, mas como um parente ou um amigo muito querido. Além disso, o aluno deverá se imaginar como o profissional da questão. E aí se instala o caos na sala de aula. Surgem comentários do tipo: “não sei como lidar com essa situação” ou “melhor que procure outro profissional”. Inseguranças à parte, destaco para os alunos que, a partir do reconhecimento do outro num rosto que identifico com as minhas próprias experiências de vida, a realidade revela-se em outra dimensão, muito mais abrangente.

Surge um inevitável incômodo, pois não se pode deixar de reconhecer nesse outro (paciente, parente ou amigo) um valor e uma dignidade diante da qual já não posso mais aceitar, com a mesma passividade, a eventual recusa ao tratamento. Crescerá o empenho nos mesmos processos anteriormente indicados, como o esforço em explicar e esclarecer. Os alunos não conseguem mais ficar indiferentes aos desdobramentos da recusa do paciente em aderir ao tratamento.

Mesmo tratando-se de um exercício teórico, quero que meus alunos aprendam a julgar tudo tendo como critério a própria experiência. A realidade se torna evidente na experiência. Partamos, para um segundo passo.

O embrião e toda a realidade. Uma das mais debatidas e importantes questões da bioética é “o que é o embrião?”. Somente um aglomerado de células, que podemos eliminar ou usar para múltiplas finalidades, até mesmo para salvar outras vidas humanas? Ou uma nova vida humana cuja dignidade se deve respeitar e proteger?

A ciência pode descrever os diferentes momentos da vida do embrião, informando-nos sobre os fenômenos biológicos – e é bom que assim o faça, porque nos permite diagnósticos precoces e intervenções terapêuticas. No entanto, com base nessas informações, podemos apenas conhecer aspectos dessa realidade, que se chama embrião humano, mas não podemos, só com elas, interpretar o que vem a ser verdadeiramente o embrião. Podemos entender um pouco como ele é, mas só com isso, não podemos dizer qual é seu significado, a verdade sobre ele. E essa realidade, o embrião humano, não pode prescindir dos significados oriundos de fontes diversas da científica, como os valores que lhe são atribuídos.

Encontraremos, é claro, uma diversidade de opiniões e concepções. As mais consistentes serão aquelas que incorporarão, em suas considerações, o maior número de fatores envolvidos e que não se deterão em um ou outro aspecto. Para conhecer a realidade de forma realmente humana, não basta a ciência, precisamos da interpretação que só podemos fazer a partir das mais profundas experiências humanas, do envolvimento do nosso “coração”. 

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